Vale a pena regressar à discussão sobre os minaretes e os crucifixos, a partir de textos dos últimos dias. No Público desta segunda-feira, dia 7, Rui Tavares escrevia sobre "Os Novos Anti-Semitas" e recordava a inspiração islâmica do World Trade Center (na foto, copiada daqui):
Mohammed Atta, o terrorista que espetou o primeiro avião contra as Torres Gémeas de Nova Iorque, era diplomado em urbanismo, com uma tese de mestrado sobre uma das cidades mais antigas do mundo — Aleppo, na Síria — e discretamente detestava os arranha-céus “ocidentais” que ali eram construídos.
Quando decidiu passar à acção, assassinando milhares de pessoas num dos edifícios mais conhecidos do mundo, Mohammed Atta sabia muito bem o que estava a destruir.
Minoru Yamasaki, o arquitecto que projectou as torres gémeas, era um apaixonado pela arquitectura islâmica. O seu edifício preferido era a Mesquita do Xá em Ispaão (ou Isfahan) no Irão. Um dos países onde trabalhou mais foi na Arábia Saudita, ao serviço da família real (talvez tenha mesmo chegado a usar os serviços de Muhamad bin Laden, o pai de um certo adolescente chamado Osama, futuro estudante de engenharia).
E em diversas ocasiões escreveu sobre o seu interesse pela arquitectura islâmica. Na sua autobiografia, o arquitecto descrevia as Torres Gémeas como “uma Meca de tranquilidade na Baixa de Manhattan”.
Aposto o meu diploma em História da Arte em como o complexo do World Trade Center era todo ele influenciado pela arquitectura islâmica, a começar pela Grande Mesquita de Meca. Desde a escultura central, evocando a pedra sagrada da Caaba, aos delicados pilares de alumínio cujas nervuras se unem em arcos mouriscos, até ao pavimento do pátio interior desenhado radialmente como as filas dos peregrinos na hajj. (Escrevi sobre isso uma peça de teatro e ensaio chamado O Arquitecto, para quem estiver interessado). E a maior pista de todas estava, naturalmente, nas duas Torres Gémeas — os maiores minaretes do mundo.
Um dos melhores cronistas do mundo é um israelita chamado Uri Avnery. Ele sabe bem o que é o antisemitismo. Quando nasceu na Alemanha o seu nome era Helmut Ostermann, mas a sua família teve de fugir do nazismo em 1933, estabelecendo-se na Palestina.
Ao saber do resultado do referendo na Suíça que proibiu a construção de minaretes nas mesquitas, Uri Avnery escreveu o seguinte: “Parece que o anti-semitismo se deslocou de um povo semita para o outro. Na Europa do pós-Holocausto é difícil ser antijudeu, e por isso os anti-semitas se tornaram antimuçulmanos. É como dizemos em hebraico: a mesma senhora num vestido diferente.”
Uri poderia ter acrescentado que até as manhas do velho anti-semitismo antijudeu e do novo anti-semitismo antiárabe se assemelham. Nos anos 30, os suíços tentaram afugentar os judeus proibindo alguns rituais de preparação de alimentos prescritos pela religião judaica.
Os novos anti-semitas podem até usar alguns dos argumentos que o Mohammad Atta usava antes de se tornar terrorista – que lutam contra a “descaracterização” das suas culturas, etc. Mas por detrás esconde-se a raiva a uma cultura em particular: Mohammed odiava os ocidentais, os novos anti-semitas odeiam árabes e muçulmanos. Nem o tentaram disfarçar proibindo outros edifícios, outras torres, outros templos de outras religiões.
Mas se quiserem ver a marca da arquitectura islâmica no seu país, basta olhar para as muitas igrejas góticas: foi apenas depois de verem as mesquitas de Jerusalém que os cristãos começaram a fazer edifícios altos, esguios, com os seus pilares nervurados, arcobotantes e torres pontiagudas. Os novos antisemitas não conhecem sequer a sua própria cultura.
No mesmo dia, no La Stampa, Enzo Bianchi, prior da Comunidade de Bosé, retomava também o tema. O texto integral está aqui, mas reproduzem-se a seguir os dois parágrafos finais:
Reconhece-se que a Igreja – dos bispos suíços à Conferência Episcopal Italiana, ao L’Osservatore Romano – percebeu e denunciou este uso instrumental da religião da parte de quem nutre interesses ideológicos e políticos e não cuida do bem do conjunto da colectividade, mas continua a ser verdade que nestes últimos anos assistimos a uma progressiva erosão dos valores do diálogo, do acolhimento, da escuta do outro: à força de querer afirmar a própria identidade sem os outros, acaba-se por usá-la e ostentá-la contra os outros. Se a cruz é brandida como uma espada, é Jesus que é blasfemado por causa de quem talvez se adorne com o sue nome, mas contradiz o evangelho e o seu anúncio de amor. A verdadeira força do cristianismo é, em vez disso, a vida de homens e mulheres que, com a sua caridade, humanizaram a sociedade, movidos pelo convite de Jesus: “Quem quer ser meu discípulo, abrace a cruz e siga-me” e pelo seu anúncio: “Reconhecer-vos-ão como meus discípulos se tiverem amor uns pelos outros.” Quando os cristãos se mostrarem capazes de ser solidários com os seus irmãos e irmãs em humanidade, quando renunciarem a guerras santas e permanecerem entretanto firmes em dar testemunho de Jesus, com palavras e actos, então poderão ser reconhecidos como discípulos do seu Senhor mansos e humildes de coração.
Sim, a disputa sobre os crucifixos e os minaretes não deveria fazer esquecer que a visibilidade mais eloquente não é a de um elemento arquitectónico ou de um objecto simbólico, mas o comportamento quotidiano ditado pela adesão concreta e operativa aos princípios fundamentais do próprio credo, seja ele religioso ou laico.
No 2 Dedos de Conversa, há uma outra reflexão, também a propósito de arquitectura, que merece igualmente ser lida. E ainda no Público, pode ler-se a entrevista de Sofia Lorena ao sociólogo das religiões Stefano Allievi.
Quando se confunde laicização do Estado com privação da identidade das gentes, o resultado é, a prazo, a fragilização das políticas de separação entre o temporal e o espiritual e o reforço das alas mais conservadoras do campo religioso-identitário. Banir a presença do religioso no espaço público - seja por crucifixos ou por minaretes - é um boomerang.
ResponderEliminarlido no post de José Manuel Pureza
Não consigo condenar a proibição da construção dos minaretes na Suiça. Sabemos que os minaretes são sinal do poder religioso (assim como as torres das igrejas) de domínio do sagrado sobre o temporal. Ninguém impede que os muçulmanos construam mesquitas (lugar de oração e reunião) mas apenas os minaretes. Tendo em conta que os muculmanos não separam a esfera religiosa da esfera sócio-política os minaretes não são um simples símbolo religioso.
ResponderEliminarFrancisco: Quanto a afirmações de poder, temo-las em muitos grupos, não só religiosos; quanto a terrorismos (que esse medo está por trás da recusa da Suíça) temo-lo (ou tivemos) em grupos organizados de "brancos" ocidentais na Alemanha, Itália, Irlanda, Estados Unidos, Espanha, etc; quanto à Suíça, sabemos da sua recentíssima permissão do voto universal e da "neutralidade" do país na II Guerra Mundial que tanto jeito deu para entregar judeus, resistentes ou comunistas aos nazis. O que está em causa é uma grave violação da liberdade religiosa e a falta de percepção de que a democracia só vence a tirania quando não utiliza os mesmos comportamentos. O que está em causa é a grave violação de um princípio de convivência básico, a pretexto, veja-se só!, da arquitectura. E já agora: há 4 minaretes em quase 200 mesquitas na Suíça; é ísso a terrível afirmação de poder religioso sobre a sociedade? E os edifícios-sede de bancos e grandes grupos finaceiros, esses sim com uma presença no país bem marcada (mas cujos movimentos são bem escondidos, como sabemos...)?
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