quarta-feira, 31 de março de 2010

A maior crise da Igreja Católica dos últimos 100 anos

(Ilustração: Marc Chagall, A Crucifixão Branca, 1938)

O texto a que o anterior post faz referência está no site do Público; como corresponde a uma sintese de vários debates sobre a questão dos abusos sexuais por parte de membros do clero fica agora aqui também à disposiçao dos leitores do Religionline. Mas devo chamar a atenção também para o post anterior e para as várias questões que ali se levantam. Não há mais margem para continuar a ignorar os debates necessários e a importância da participação dos crentes (e que não sejam os mesmos de sempre). Fica aqui então o texto, que saiu também (numa versão um pouco mais curta) na edição de domingo passado do jornal:

A Igreja Católica atravessa a mais profunda crise do último século. Para encontrar algo de dimensão semelhante, devemos recuar até ao início do século XX, com o anti-modernismo do Papa Pio X. Ou antes, a 1870 e ao Concílio Vaticano I, com o dogma da infalibilidade papal, o cisma dos velho-católicos e o fim dos Estados Pontifícios. Há uma diferença: esta crise atinge um catolicismo universal, ao contrário do de há um século, quando ainda era uma realidade pouco mais que europeia.
Há várias questões à volta deste tema que, de repente, coloca um Papa académico perante um dos mais graves problemas pastorais da Igreja. Será ele capaz de afrontar o problema com a coragem necessária?
Ratzinger é um teólogo notável no diálogo cultural, mesmo com filósofos não-crentes como Jürgen Habermas ou Paolo Flores d’Arcais (como se pode perceber em Existe Deus?, editado na Pedra Angular). Eleito para um pontificado de transição, cuja marca seria afirmar a importância do facto cristão no diálogo multicultural contemporâneo, Bento XVI tem o desafio de “limpar a Igreja” da sua sujidade, como ele próprio afirmou na Via-Sacra de Sexta-Feira Santa de 2005, poucos dias antes da morte de João Paulo II.

1. Esta crise, como diz o étimo da palavra, pode ser uma oportunidade de mudança. A começar pela relação entre catolicismo e sexualidade – que o teólogo Hans Küng definiu como uma “relação crispada”. Não para dizer que o celibato é a causa da pedofilia. O celibato como opção voluntária pode ser dedicação extraordinária a uma comunidade. Como disciplina obrigatória (com excepções nas Igrejas Católicas orientais ligadas a Roma e, agora, com os anglicanos que decidiram aderir ao catolicismo), poderá ser revisto.
É certo que a esmagadora maioria de casos de abusos acontece com pais e familiares próximos das crianças. Como escrevia o Papa na carta aos católicos irlandeses, a pedofilia não é um problema que se restringe aquele país nem à Igreja Católica. Bem pelo contrário. Mas encarar a questão da sexualidade significa afrontar, desde logo, a formação nos seminários, tantas vezes castradora de afectos. E que é uma das causas profundas da pedofilia entre membros do clero.
A Igreja tem, na sua base bíblica e evangélica, uma fonte harmónica e integral que séculos de moralismo esconderam. Ao contrário do que diz Saramago, a Bíblia não é um manual de maus costumes. Mas, ao contrário do que pensam e dizem muitos católicos, ela tão pouco é um manual de bons costumes. A Bíblia é sobretudo uma proposta de relação – do ser humano com Deus e entre os seres humanos como imagem de Deus.
Aqui reside uma primeira dificuldade no exercício que a Igreja terá de fazer: muitos responsáveis católicos insistem numa abordagem dualista, legalista e pecaminosa (numa perspectiva greco-romana) da sexualidade. E que tem sido geradora de hipocrisias.

2. A crispada relação com a sexualidade reflecte-se também no modo como a doutrina católica olha a contracepção – e o preservativo, nomeadamente. Há quatro décadas, a encíclica Humanae Vitae interditou os métodos “artificiais” de planeamento familiar, apenas porque alguns cardeais da Cúria Romana não aceitavam a mudança doutrinal proposta por uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais.
Se o Papa Paulo VI (que encarava a possibilidade de mudar a posição oficial) não tivesse cedido à pressão da Cúria, o preservativo não seria hoje um tabu doutrinal (mesmo se distribuído aos milhares por freiras e padres comprometidos na luta contra a sida, por exemplo). E o catolicismo das últimas décadas teria sido bem diferente.
Esta relação difícil do catolicismo oficial com a sexualidade tem manifestações visíveis como os abusos sexuais cometidos por padres sobre religiosas, em África, conhecidos há uma década; ou o padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, de quem se sabe que teve filhos de várias mulheres às quais ocultava a sua identidade, foi pedófilo, incestuoso e toxicodependente.
A instituição por ele fundada é exemplo dos grupos católicos que hoje, na Igreja, insistem na perspectiva moralista e para os quais a vida só importa quando se fala de aborto, preservativo ou homossexualidade.
Não é de estranhar que mais se condene quem mais moralismo apregoa e acaba por ter tantos pecados (ou crimes) no seu interior. Com uma agravante: as pessoas que confiavam os seus filhos a responsáveis da Igreja eram, em grande parte, membros da própria comunidade cristã. Para elas, o sentimento de terem sido traídas por aqueles em quem confiavam é esmagador.

3. A acusação de encobrimento atinge agora o próprio Papa. Na carta que escreveu aos irlandeses, há oito dias, Bento XVI acusa vários bispos de terem falhado “por vezes gravemente”. Seria estranho que o Papa tivesse escrito o que escreveu, se tivesse telhados de vidro. De outra forma, estaria agora sob escrutínio e sem autoridade perante os seus “irmãos bispos”.
Pode haver aqui duas coisas diferentes. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), Joseph Ratzinger conhecia, obviamente, vários casos. Mas pode ser forçado dizer que os encobriu. O mais emblemático, noticiado pelo “New York Times” esta semana, revela que nem os poderes públicos agiram sobre o padre que abusou de 200 crianças – tal como aconteceu na Irlanda. E que Ratzinger só conheceu duas décadas depois dos factos.
O célebre documento de 1962 (que Ratzinger, então um padre com 35 anos, não escreveu, ao contrário do que muita ignorância afirma por aí), que defendia o secretismo, foi depois substituído em 2001, não para prosseguir a mesma orientação, mas para dar um passo em frente: o de obrigar os bispos a comunicar os casos de pedofilia ao Vaticano. Só nessa ocasião Ratzinger e a CDF passam a tomar conta destes casos, quando a questão já era um escândalo nos Estados Unidos (dois anos depois, João Paulo II chamaria vários bispos dos EUA para enfrentar a crise, pela primeira vez, de forma dramática). Só o total esclarecimento do papel do Papa em cada caso poderá aclarar de vez a sua quota-parte de responsabilidade – isso mesmo já foi pedido há dias pelo “National Catholic Repórter”.

4. O encobrimento e a tolerância social da pedofilia era a atitude normal até há três ou quatro décadas – o caso Polanski reapareceu a recordá-lo.
Durante séculos, a Igreja Católica entendeu-se como sociedade perfeita, sem necessidade de instâncias civis: tinha os seus tribunais, as suas penas, chegou a ter as suas prisões.
Também sabemos que a comunicação social é mais severa com a Igreja Católica do que com outros. E desproporcional: dá-se sempre mais dimensão aos escândalos do que aos caminhos de solução ou aos resultados, omite-se que o fenómeno atinge uma pequeníssima minoria do clero (embora bastasse um caso para que fosse grave). Sabe-se que os números aparecidos na Alemanha nas últimas semanas são resultado do trabalho iniciado pela Conferência Episcopal quando surgiram os casos nos Estados Unidos – mas isto também quase não é dito.
Mas desde 1990 há uma avalanche de casos. O que se passou na Irlanda, que durou até há poucos anos, mostra que não se atalhou o problema logo que ele começou. Em 1993, os bispos do Canadá publicaram um extenso documento com uma reflexão profunda sobre o tema e propostas de solução – que tiveram sucesso. O caminho deveria ter sido seguido em outros países.
Por isso não se entende a lamentável e infeliz declaração do cardeal Saraiva Martins: a Igreja é pela “tolerância zero”, mas não lava a “roupa suja” em público. Há mais de 60 anos, o Papa Pio XII dizia que a opinião pública é “vital” para a Igreja. Entenda-se, portanto, que a lavagem de “roupa suja” em público mais não é que uma desafortunada expressão para referir o debate interno, que está na matriz genética do cristianismo. E foi pela falta de tolerância zero que se chegou aqui.

5. A mês e meio da viagem de Bento XVI a Portugal, percebe-se que a crise continuará a revelar mais casos. Como em todas as histórias, percebe-se que também há interessados em atingir a credibilidade da Igreja. Mas esta tem que ser a primeira a reflectir o porquê dessa aversão e a procurar razões no seu interior – uma atitude própria desta Semana Santa que os cristãos hoje começam a viver. O cerco à volta de Ratzinger também continuará. Será, por isso, um Papa ferido aquele que virá a Portugal. Talvez rodeado por grupos interessados prioritariamente em defender a instituição dos “ataques” – já correm textos nesse sentido na Internet, em blogues, em mails…
Convém não esquecer que foi a preocupação pela defesa da honra da instituição que levou ao actual estado de coisas. Só uma atitude purificadora e aberta à mudança permitirá à Igreja recuperar a credibilidade perdida nesta crise. Os cristãos chamam a esse acontecimento ressurreição. E celebram-na no próximo domingo.

1 comentário:

  1. Caro António Marujo,

    Viva!
    Você escreveu:
    «a encíclica Humanae Vitae interditou os métodos “artificiais” de planeamento familiar, apenas porque alguns cardeais da Cúria Romana não aceitavam a mudança doutrinal proposta por uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais.»

    Porque razão faz uma afirmação destas? Qual a sua base?
    O texto da Humanae Vitae, muito criticado mas raramente lido, tem lá as razões todas.

    O Papa Paulo VI tomou uma decisão soberana e legítima ao interditar a contracepção artificial. Fê-lo na continuidade com todo o magistério da Igreja, que sempre tinha condenado a esterilização temporária ou definitiva, bem como todo o tipo de método que visa interferir com a fertilidade humana.

    Se Paulo VI tivesse dado ouvidos às decisões dessa Comissão (aliás, não isentas de polémica interna), seria o primeiro papa da história da Igreja a criar uma ruptura doutrinária grave com os seus predecessores.

    A condenação da contracepção artificial é matéria de doutrina moral, pelo que está sob a alçada da infalibilidade do magistério ordinário da Igreja. Um Papa não pode, só porque uma Comissão assim o entende, contrariar ensinamento anterior da Igreja em matéria sob a esfera da infalibilidade.

    Esse é só o aspecto "legal" do problema. Mas o mais importante é compreender as razões teológicas da condenação. Elas estão plasmadas na Humanae Vitae. Seria bom lê-las, e não procurar justificações fáceis em teorias conspiratórias baseadas em boatos "diz que disse" acerca dos bastidores da Cúria.

    Cumprimentos,

    Bernardo Motta

    ResponderEliminar

Por princípio, neste blogue só se publicam comentários identificados, que respeitem as regras da boa educação e do respeito pela opinião alheia.