Uma das histórias que se contavam repetidamente a seguir ao 25 de Abril de 1974 era sempre apresentada como verídica. Pouco importava, no entanto. O que contava era a clareza com que servia para expor dois projectos políticos distintos, um, social-democrata; outro, muito mais à esquerda. Os protagonistas eram Olof Palme, na altura primeiro-ministro da Suécia e líder do Partido Social Democrata e Otelo Saraiva de Carvalho. O enredo praticamente não existe e a versão mais curta pode resumir-se a uma brevíssima troca de palavras.
O essencial é isto: Otelo vai à Suécia explicar o que pretendem os militares portugueses que derrubaram o fascismo. Quando encontra Olof Palme, depois das iniciais palavras de circunstância, diz-lhe que o objectivo da revolução portuguesa é acabar com os ricos. O primeiro-ministro sueco testemunha-lhe um programa diferente: “Nós, os sociais-democratas suecos, queremos acabar com os pobres. O que mais nos incomoda é a pobreza”.
Olhando, hoje, para grande parte dos dirigentes políticos europeus, é difícil não julgar que o que desejam com a sua acção é, sobretudo ou apenas, manter-se no poder, permanecendo nas graças dos muito ricos que, zelosamente, servem e de quem, de facto, dependem. O que promovem é o empobrecimento cada vez mais generalizado, designadamente das pessoas mais ou menos remediadas, o reverso, afinal, do projecto social-democrata, que tinha em Olof Palme um generoso inspirador.
Ao mesmo tempo que se empreendem políticas para empobrecer a maioria dos cidadãos, é fabricado e difundido um imaginário ideológico que apresenta os pobres como um grupo parasitário, absolutamente avesso ao que prescreve a doxa vitoriosa dos doutrinários do empreendedorismo. Estranha gente, que fabrica pobres e lhes destrói a reputação.
Mas também, helás, os pobres têm quem escreva livros para os defender. Com o objectivo de desmontar os mais vulgares preconceitos contra os mais pobres dos pobres, explicando que a estigmatização de que são alvo assenta não em factos, mas numa ideologia que mascara as verdadeiras causas da miséria, uma Organização Não-Governamental francesa, a ATD Quart Monde, publicou este mês uma obra intitulada Acabar com as ideias falsas sobre os pobres e a pobreza (Ivry-sur-Seine: Éd. de l’Atelier, 2013).
“No nosso mundo em crise, os pobres e os estrangeiros tornam-se os bodes expiatórios de uma sociedade em que as relações não param de se endurecer”, disse à revista La Vie Bruno Tardieu, dirigente de ATD Quart Monde e um dos autores do livro. Não basta, afirma ele, que as pessoas tenham direitos, é preciso também que sejam reconhecidas pelo que são.
É verdade que há gente com opiniões à prova dos factos, mas há também quem acredite em ideias falsas apenas porque não sabe das provas que as desmentem. Quem quiser ver, que veja, poderia muito bem ser o propósito de Acabar com as ideias falsas sobre os pobres e a pobreza.
O livro tem um modelo simples: cita quase uma centena de afirmações sobre os pobres ou a pobreza; indica, a seguir, se são falsas, verdadeiras ou se as coisas não são tão simples quanto se diz; e, por fim, justifica. Bastam três exemplos para se compreender melhor o alcance e mérito desta iniciativa.
Diz-se: “os pobres fazem tudo para aproveitar todas as ajudas ao máximo”. É “falso”, garantem os autores da obra, argumentando: “Pelo contrário, muitos não solicitam as ajudas a que têm direito. Por diferentes razões (vontade de não depender da ajuda pública, complexidade dos procedimentos administrativos, falta de informação, desejo de não serem controlados)”. A seguir, são indicadas as percentagens – de facto, muito elevadas – de apoios que não são reclamados.
Há quem denuncie que “se quiserem, não falta trabalho”. “Falso, a situação não é assim tão simples”, contra-argumenta-se, “as pessoas em situação de pobreza esperam maior
itariamente encontrar um emprego e melhorar o seu nível de vida, tornando-se autónomas. No entanto, muitas defrontam-se com muitos obstáculos para o conseguir: formação insuficiente, problemas de saúde ou de mobilidade, crianças a cargo, ou finalmente – e sobretudo – ausência de empregos acessíveis localmente”.
Outra acusação é a de que “os pobres são defraudadores”. “Falso”. Para a ATD Quart Monde, “eles são menos defraudadores do que outros. Não se trata de negar que há fraudes nas prestações sociais, nem a necessidade de lutar contra elas. A verdade é que ela é muito reduzida em relação a outros tipos de fraudes – particularmente a fraude fiscal –, em relação aos quais os discursos estigmatizantes se interessam muito menos”. A afirmação é acompanhada por uma contabilidade eloquente: em 2009, o montante das fraudes no Rendimento de Solidariedade Activo, uma prestação social equivalente ao rendimento mínimo, é o correspondente ao pagamento anual de mais 30 euros a cada beneficiário. Como notou em 2011 o Conselho de Estado francês, que o livro cita, “a fraude dos pobres é uma pobre fraude”. Nunca se pode dizer o mesmo das fraudes dos muito ricos. Aliás, as fraudes dos ricos nem sequer são, tantas vezes, consideradas fraudes porque são eles que ditam as leis que as legalizam.
Há pessoas que ganham muito mesmo, e quando lhes reduzem o ordenado já ficam todas chateadas, e começam a lamentarem-se, esquecem-se é que há pessoas que nem de comer tem, entre outras coisas isso sim é alarmante.
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