"Que venho procurar a Taizé?"
Pau Ricoeur (1925-2005)
cit. por Bento Domingues, in Público, 2.6.2005
"Que venho procurar a Taizé? Eu diria uma espécie de experimentação com aquilo em que acredito mais profundamente, nomeadamente que aquilo a que geralmente se chama religião tem que ver com bondade. Isto está um pouco esquecido, em particular em várias tradições do cristianismo. Quero dizer que há uma espécie de restrição, de fechamento na culpabilidade e no mal. Eu não subestimo de forma nenhuma este problema, que muito me ocupou durante várias décadas. Mas aquilo que, de alguma forma, tenho necessidade de verificar é que, por muito radical que seja o mal, não é tão profundo como a bondade. E se a religião, as religiões, têm um sentido, é precisamente o de libertar o fundo de bondade dos homens, de o procurar onde ele está completamente escondido. Ora, aqui em Taizé, eu vejo irrupções de bondade na fraternidade entre os irmãos, na sua hospitalidade tranquila, discreta e na oração onde vejo milhares de jovens que não têm nenhuma articulação conceptual do bem, do mal, de Deus, da graça, de Jesus Cristo, mas que têm um tropismo fundamental em direcção à bondade."
"Nós andamos sobrecarregados pelos discursos, pelas polémicas, pelo assalto do virtual; hoje há como que uma zona opaca, e existe esta certeza profunda a libertar, a resgatar: a bondade é mais profunda que o mal mais profundo. Não basta sentir isto. É preciso dar-lhe uma linguagem. A de Taizé não é a linguagem de uma filosofia nem de uma teologia. É a linguagem da liturgia. Para mim, a liturgia não é simplesmente uma acção. É um pensamento. Na liturgia encontra-se uma teologia escondida, discreta que se resume nesta ideia: "A lei da oração é a lei da fé.""
"Diria que a questão do pecado foi como que deslocada do centro por outra que é, sob determinado aspecto, ainda mais grave: pela questão do sentido e do sem-sentido, do absurdo. (...)
"Pertencemos à civilização que efectivamente matou Deus, isto é, que fez prevalecer o absurdo e o sem-sentido sobre o sentido. Eu penso que há nisso um protesto profundo (...) Em Taizé caminha-se do protesto para a atestação: o nada, o absurdo, a morte não são última palavra. Por aí voltamos à questão da bondade, que não é só uma resposta ao mal, mas também a resposta ao sem-sentido. O protesto situa-se ainda no pólo negativo: diz não ao não. O movimento do protesto para a atestação passa pela oração. Esta manhã os cânticos, as orações tinham a forma do vocativo: "Ó" no exortativo e na aclamação. Penso que aclamar a bondade é o hino fundamental."
"Gosto muito da palavra felicidade. (...) Ultrapassei, ou melhor dizendo aprofundei, o meu pudor em falar de felicidade. Tomo-o na variedade das suas significações. Diria que a fórmula da felicidade é esta: "Feliz aquele que..." Saúdo-a como um "re-conhecimento", nos três sentidos da palavra: reconheço-a como sendo minha, aprovo-a no outro e tenho gratidão por aquilo que dela conheci, essas pequenas felicidades, entre as quais as da memória para me curar das grandes desgraças do esquecimento.
"É precisamente aí que funciono simultaneamente como filósofo, alimentado nos gregos, como leitor da Bíblia e do Evangelho, onde se pode seguir o percurso da palavra felicidade, mas nesses dois registos. Porque o melhor da filosofia grega é a reflexão sobre a felicidade, a palavra grega eudeimon - falou-se do eudemonismo filosófico em Platão, em Aristóteles - e eu reencontro-me aí muito bem com a Bíblia. (...) As bem-aventuranças são o horizonte de felicidade de uma vida sob o signo da bondade, porque a felicidade não é simplesmente aquilo que não tenho, o que espero ter, mas também aquilo que saboreei."
"Reflectia recentemente sobre as três figuras da felicidade na vida. Diria que, em relação à criação - essa bela paisagem diante de mim -, a felicidade é a admiração. A segunda vem do reconhecimento dos outros e, no modelo nupcial do Cântico dos Cânticos, é o júbilo. A terceira está orientada para o futuro - eu ainda espero alguma coisa da vida - é a da "espectação", a da aspiração no sentido da 1Cor. 13 sobre a caridade: "aspirai, aspirai"..."
"Em Taizé vivi a ausência completa das relações de dominação. Tenho a impressão de que toda a gente obedece sem que ninguém comande. Daí a sensação de um serviço alegre, como dizer, da obediência do amor. É o contrário de uma submissão e o contrário de uma errância. (...) A comunidade não impõe um modelo intimidante, mas uma espécie de exortação amigável. (...) É a tranquilidade partilhada que para mim representa a felicidade da vida junto da Comunidade de Taizé."
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