A Igreja deve ouvir mais o mundo de hoje
Joana Rigato, 31 anos, professora
1 – Creio que a experiência religiosa se tornou simultaneamente mais individual e mais livre, o que traz grandes vantagens e também grandes riscos.
Nas sociedades ocidentais, talvez pela primeira vez na História, as pessoas passaram a não ser “obrigadas” a professar uma determinada fé nem a ter de pertencer a uma determinada religião. Isto provoca um certo desnorteamento, na medida em que há muita gente que não é educada na fé e não desenvolve a sua espiritualidade, embarcando muitas vezes em preconceitos superficiais acerca da religião dominante e vivendo a sua vida sem explorar todas as suas dimensões (o que conduz ao “deserto espiritual”). Simultaneamente, quando sentem a falta de uma dimensão transcendente na sua vida, muitas pessoas procuram-na sem grande critério, explorando propostas frequentemente incoerentes e até contraditórias entre si, misturando formas de terapia fácil com pseudo-religiões orientais, superstições camufladas de descobertas new age, etc. Isto é sinal de uma busca que não deixa de ter lugar nas sociedades modernas (e que, na minha opinião, deve ser empreendida com toda a liberdade) mas que nem sempre conduz a uma verdadeira profundidade.
Estes riscos são o “preço” a pagar pela fundamental conquista da liberdade religiosa. As igrejas estão mais vazias hoje – mas quem as frequenta fá-lo com muito mais verdade. Há muita confusão entre os vários caminhos possíveis, podendo perder-se de vista o património sapiencial de séculos de vida religiosa colectiva – mas a procura de Deus deixa de ser vivida exterior e passivamente, por fiéis que pouco se questionam e consideram que a Verdade não é descoberta mas aprendida, passando a ser assumida como um caminho e um compromisso. Tudo isto, a meu ver, torna o balanço francamente positivo. A busca é mais sincera e, multiplicada por milhões de pessoas, também muito mais rica.
2 – Sem dúvida que a secularização pode e deve ser vista como um sinal dos tempos. Tudo o é. Para que a Igreja possa ler esses sinais, deverá olhar o mundo sem pré-conceitos e sem superioridade. Não creio que a Igreja seja o “local” onde Deus habita e que a sociedade seja a realidade profana que recusa Deus e onde o espírito de Deus deixou de soprar. Deus atravessa toda a realidade, mesmo de formas inicialmente pouco compreensíveis. A Igreja deve perguntar-se: como é que Deus se manifesta nos jovens de hoje? Nos desempregados? Nos ateus? Naqueles que criticam a Igreja? Nas pessoas que fazem ioga?
A Igreja deve procurar perceber o que é que os caminhos que afastam as pessoas de si lhe revelam sobre a forma como ela própria fala de Deus. O que é que as pessoas procuram noutros sítios, que aqui não estão a encontrar? Como é que podemos revelar Deus de forma mais clara?
E assim, procurar compreender: aonde nos quer conduzir Deus actualmente? Como quer Deus que conduzamos a nossa acção?
3 – Penso que a última destas perguntas está a procurar orientar a resposta e a “forçar” a expressão em causa. Não creio que a “nova evangelização” deva ser vista nem como “uma forma de a Igreja sair das suas crises” nem como “desafio a repensar-se a estrutura eclesial”.
“Evangelizar” refere-se a levar a boa nova aos outros, ao mundo. O mundo precisa de Deus, a Igreja considera-se caminho privilegiado de descoberta de Deus e por isso assume como missão evangelizar. A meu ver, a “nova evangelização” é a evangelização do “novo mundo”, do mundo que mudou. A Igreja considera que deve repensar o modo de levar a boa nova ao mundo actual, ou seja, deve actualizar a sua forma de comunicar a mensagem. Eu concordo. Penso que, de facto, é necessário renovar a forma de evangelizar e que é fundamental pensar sobre isto.
Infelizmente, porém (e retomando o que respondi à pergunta anterior) o “re-pensamento” que a Igreja faz é frequentemente superficial. Como o “mundo” é visto como algo de exterior e oposto à Igreja (como se estivessem em duas frentes opostas de batalha: nós e os outros), a atitude é quase sempre de superioridade e não de escuta. Por isso, torna-se difícil “evangelizar” aquilo que não se percebe e com que não se “empatiza”. É uma espécie de atitude “colonizadora” e que já não funciona, nem voltará a funcionar (porque o “povo” emancipou-se e exige mais autonomia e mais respeito).
4 – Sem dúvida. Uma das grandes lacunas da Igreja enquanto testemunha de Cristo é, a meu ver, a sua tendência a apegar-se a questões acessórias, perdendo a credibilidade quando, depois, pretende pregar o essencial. O caminho de cada pessoa no seu encontro com Cristo tem de ser respeitado, e a Igreja deveria ser luz nesse caminho, uma ajuda no estabelecimento do diálogo e da intimidade entre cada pessoa e a pessoa de Jesus. Pelo contrário, ao longo da História e, infelizmente, ainda hoje, a Igreja actua como uma espécie da “mestre de cerimónias”, que pretende dizer a cada pessoa “como” percorrer o tal caminho.
Lembro-me, a esse propósito, das palavras de John Locke (protestante e muito anti-católico, é certo) referindo-se ao absurdo da falta de liberdade de religiosa que se vivia em Inglaterra na sua época (séc. XVII): «Se estou marchando com máximo vigor pelo caminho que, segundo a geografia sagrada, leva diretamente para Jerusalém, por que sou espancado? Será, talvez, pelo facto de não usar sandálias; porque não me deram o banho baptismal de maneira correcta ou meu cabelo não foi cortado como deveria; porque como carne na estrada ou qualquer outro alimento mais favorável para o meu estômago; porque evito certos atalhos que parecem conduzir-me a precipícios; porque, entre as várias sendas da mesma estrada e que levam para a mesma direção, escolho aquela que me pareceu ter menos vento ou barro; porque evito a companhia de certos viajantes menos graves e de outros mais impertinentes do que deveriam ser; ou, enfim porque sigo um guia que está ou não está coroado de mitra e vestido de branco? Certa¬mente, se ponderarmos devidamente, verificaremos que, na maior parte, são assuntos tri¬viais como estes que criam inimizades implacáveis entre confrades cristãos, apesar de todos concordarem com os aspectos essenciais da religião. Tais ninharias, porém, se não acompanhadas de superstição ou hipocrisia, podem ser observadas ou omitidas, sem qualquer prejuízo à religião e à salvação das almas.» (Carta sobre a Tolerância)
Creio que a Igreja é guardiã de uma Verdade revelada, mas que não pode ter a pretensão de ser a única nem de não se enganar ao procurar decifrar essa Verdade. Deus revela-se de muitas formas e, acredito, a toda a gente. A Igreja, através da sua sabedoria milenar, tem a missão de ajudar o povo a procurar, descobrir e aproximar-se de Deus em Jesus Cristo. Mas deve fazê-lo com humildade e no respeito da relação que se estabelece entre cada um e essa Verdade que se revela repetidamente. Deus deu a Razão e a luz da Fé a todos e a cada um, por isso seria até ofensivo que os fiéis se abstivessem de usar essas suas capacidades para se tornarem somente ovelhas.
5 – Antes de mais, há que pôr em prática algo fundamental e que remonta ao Concílio: o pleno envolvimento dos leigos na pastoral. Os padres são poucos e nem sempre têm uma formação mais profunda do que os próprios leigos. Por isso, os leigos devem ser vistos como um auxílio imprescindível na evangelização, no trabalho paroquial, na tomada de decisões.
Outro aspecto muito importante é a linguagem – frequentemente envelhecida, conotada, não só nas palavras como nas imagens, no estilo. Dou um exemplo que me é familiar: no âmbito da acção dos jesuítas, há imensas vocações, imensos jovens, um dinamismo que não se encontra noutros lados. Acredito que muito do mérito desta frescura está na linguagem. Veja-se o site da pastoral juvenil dos jesuítas: www.essejota.net
Penso que a Igreja em Portugal deve ouvir mais o mundo de hoje. Os seminaristas deveriam “misturar-se” mais com os jovens da sua idade para lhes conhecerem os gostos, as preocupações e haver mais afinidade entre uns e outros. A minha experiência como professora testemunha isto mesmo: muitas vezes aquilo que procurei transmitir aos meus alunos era exactamente aquilo que outros professores procuravam transmitir mas com menos sucesso. E porquê? Não porque eu fosse melhor em nada! Mas só porque era mais jovem, usava uma linguagem mais apelativa, menos datada, transmitia a imagem de alguém “normal”, que partilha gostos com os alunos em termos de música, ou roupa, enfim. Essa minha “normalidade” deu-me credibilidade para poder aconselhar, sugerir, ser levada a sério. Ora, se um padre acabado de sair do seminário hoje se veste da mesma forma que um padre saído do seminário há 50 anos, só ouve música religiosa, usa a segunda pessoa do plural nas homilias, etc… certamente que não será levado a sério pelos jovens da sua paróquia. Que fique claro: não estou a dizer que devemos mitigar a mensagem, torná-la mais light, de forma alguma! O que acho é que, compreensivelmente, as pessoas se deixam tocar e desinstalar por aqueles com quem se identificam, porque lhes “dão crédito”.
Também em termos de conteúdo há muito a mudar. Raramente ouço homilias que sejam realmente desafiadoras em termos sociais, onde a leitura do jovem rico não seja imediatamente acompanhada de uma palavra apaziguadora: “Claro que Jesus não estava a falar a sério quando disse que mais depressa entra um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico no reino dos céus! Não se assustem nem se ponham em causa, era uma metáfora! Estava só a falar do apego que temos às coisas, não se referia às posses que realmente temos!”
Ao contrário daquilo que encontrei na América Latina e em Itália (numa certa facção da Igreja italiana, que é tudo menos homogénea), raramente ouço palavras corajosas de crítica social na Igreja em Portugal ou padres que procurem envolver os seus paroquianos em movimentos cívicos, tomadas de posição concretas, denúncias, etc. Na sua maioria, a Igreja tem medo de tomar posição, de ser conotada politicamente com alguma ideologia, e então abstém-se e limita-se à assistência. A meu ver, isto tem-na feito perder terreno na sociedade. E para além de a prejudicar em termos de “marketing”, creio sobretudo que é lamentável que a Igreja “saia à rua”, em bloco, para questões como o aborto (questão relativamente à qual a posição oficial da Igreja tem a minha total concordância, não é isso que eu ponho em causa), não o fazendo da mesma forma quando há escândalos sociais dramáticos em Portugal e no mundo. Claro que, oficialmente, as posições da Igreja a nível de doutrina social são radicais e coerentes, mas não lhes é dado o devido eco na comunidade cristã, pelo que não têm visibilidade. Ou seja, ao contrário daquelas que eram as prioridades de Jesus, a catequese e a formação dos cristãos assenta ainda muito mais na moral dos costumes e na prática de ritos e regras, do que na ética social.
Por último, creio que a liturgia também deve sofrer uma grande revisão. Numa sociedade cheia de pressas, de ruído, de solicitações, deveria haver mais espaço para o silêncio e a introspecção nos momentos de encontro com Deus propostos pela Igreja. Depois de uma semana tão cheia de palavras gastas, de fórmulas automáticas, de exterioridade, seria muito importante que a oração comunitária de domingo fosse uma ocasião para parar realmente e deixar entrar o nosso coração em repouso, para podermos criar nele espaço para a palavra de Deus e o Seu sussurrar.
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