O "Diário do Minho" publica hoje um texto de Eduardo Jorge Madureira, na sua coluna dominical "Os dias da semana", intitulado "Contra as agências de notação de risco". Pela sua importância e pertinência neste espaço, transcrevemo-lo com a devida vénia:
"Podia ser apenas mais uma série televisiva com grande audiência, como Anatomia de Grey, CSI, Dexter, House, Lost ou Prison Break. Mas não. É regularmente exibida à hora de jantar nos principais canais generalistas portugueses, oferecendo ao imaginário nacional novos protagonistas e, é verdade, um enredo de difícil entendimento, mas, para mal de quase todos, não é de ficção que se trata, embora a muitos tal possa parecer. Se fosse uma série, que apresentasse as aventuras dessas entidades míticas, chamadas Fitch Ratings, Moody’s e Standard & Poor’s, recentemente conhecidas pelos portugueses, poder-se-ia, sem esforço imaginativo, intitular The Credit Rating Agencies.
Se os programadores televisivos quisessem traduzir o título e consultassem, por exemplo, a Wikipédia, teriam de resolver uma primeira dificuldade. É que as traduções possíveis são abundantes. Mais de uma dezena. Antes de explicar o que fazem essas criações do capitalismo, a Wikipédia apresenta uma lista com as formas como podem ser designadas: “Uma agência de notas de crédito (do inglês credit rating agency de sigla CRA), chamada agência de rating, empresa de rating, agência de classificação de risco, agência de classificadora de risco (denominação usada pelo Banco Central do Brasil), agência classificadora de risco de crédito, agência de análise de risco, agência de avaliação de risco, agência de avaliação de risco de crédito, agência avaliadora de risco, agência de notação financeira, agência de notação de risco, ou agência de risco é uma entidade que avalia, atribui notas e classifica países ou empresas, segundo uma nota de risco, a qual expressa o grau de risco de que essas empresas ou países não paguem as suas dívidas no prazo fixado”.
Às dúvidas sobre o nome que melhor lhes calha, corresponde uma certeza quanto à fiabilidade muito reduzida do trabalho que fazem. No diário Le Monde (“A quoi jouent les agences de notation ?” 10.5.2010), recordavam-se, a esse propósito, alguns factos mais ou menos recentes, assaz elucidativos. Há cerca de uma década, quatro dias depois de a Standard & Poor’s e a Moody’s recomendarem o investimento na Enron, uma importante companhia de energia dos Estados Unidos da América, a empresa ia à falência. Mais recentemente, em 2008, a Lehman Brothers recebia a nota máxima (os famosos AAA) no exacto momento da sua bancarrota. Há outras falhas não menos eloquentes (quem viu o documentário Inside Job não as esquecerá), mas estas duas são suficientes para se perceber a qualidade do que fazem estas empresas.
O modo como elas estavam, há cerca de um ano, a proceder em relação à dívida grega, justificava, no artigo citado, assinado por Patrick Jolivet, um comentário útil. Não é muito recente, mas não perdeu pertinência. Dando-se o caso de as agências de notação de risco, que não foram particularmente brilhantes pela perspicácia nos tempos recentes, poderem desestabilizar um Estado e, portanto, o conjunto da zona euro, deve levar-nos a interrogar se o desenvolvimento (durável) das nossas economias depende realmente dos ratings mais ou menos independentes emitidos por actores que são pagos pelos mercados financeiros. O texto reclama uma intervenção dos políticos europeus tendo em conta que a avaliação do domínio dos riscos a longo prazo é coisa demasiado complexa para depender das opiniões emitidas pelas agências de notação.
Os políticos europeus têm feito muito pouco ou nada, mas um grupo de economistas portugueses promoveu uma acção de enorme relevância, entregando, na passada segunda-feira, na Procuradoria-Geral da República, uma denúncia contra as três maiores agências de notação pelo comportamento adoptado relativamente ao Estado português e aos bancos sediados em território nacional.
A economista Manuela Silva, que, com José Reis, José Manuel Pureza e Manuel Brandão Alves, dinamizou a iniciativa, escrevia na terça-feira, no blogue A Areia dos Dias, do Grupo Economia e Sociedade da Comissão Nacional Justiça e Paz, que nem a crise política, nem a evolução da capacidade produtiva do País (“que não se altera em 24 ou 48 horas”) justificam os cortes drásticos nas recentes notações de risco. Há, pois, que procurar outras causas e ver o que está por detrás destes comportamentos.
Para Manuela Silva, há três razões objectivas que justificam dúvidas em relação ao procedimento da Fitch Ratings, da Moody’s e da Standard & Poor’s: “o elevado grau de concentração das três maiores agências de rating, todas americanas e que, no conjunto, detêm mais de 90% do seu respectivo mercado; a possível conflitualidade de interesses, devida à presença de empresas de gestão de fundos na estrutura do capital accionista em duas dessas empresas de rating (num caso, em posição de accionista maioritário) e a falta de transparência por ocultação de critérios em que se baseiam as notações”.
“A quem aproveita a severidade nos ratings da dívida da República e dos bancos portugueses?”, pergunta Manuela Silva, considerando simples a resposta: “em primeiro lugar, serve os interesses dos especuladores que vêem as suas possibilidades de lucro aumentadas pelo simples facto da subida dos juros; serve também a uma estratégia de enfraquecimento do euro face ao dólar ou mesmo ao propósito de ressuscitar a moeda americana como único meio de pagamento internacional, conveniente, entre outras razões, para fazer face à elevada dívida pública americana contraída no exterior”.
Sucede, todavia, que, e isso, como sublinha a economista, é o mais grave, estas notações de risco “têm efeitos devastadores sobre o acesso ao crédito por parte das pessoas, do Estado e das empresas do nosso País e constituem também uma rampa de lançamento para justificar políticas de austeridade que impedem um desenvolvimento humano sustentável”.
Como nas séries com um final aberto, que será escrito em função da preferência das audiências, nada está previamente definido quanto ao que se passará nesta narrativa protagonizada pelas agências de notação de risco. São os cidadãos que têm de ditar os próximos capítulos. Contrariando a complacência dos governos e dos organismos internacionais perante a nocividade da actuação da Fitch Ratings, da Moody’s e da Standard & Poor’s, muitos cidadãos portugueses associaram-se à denúncia judicial contra o modo com elas têm procedido em relação a Portugal, subscrevendo a petição que se encontra em http://www.peticaopublica.com/?pi=denuncia. Mas muito haverá ainda para fazer para que esta história não prossiga da pior maneira.
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