terça-feira, 15 de agosto de 2017

Fátima, 100 anos, de Maio a Outubro (4) – Maria: factor de unidade ou perturbação no catolicismo e no diálogo ecuménico?

Depois de Maio, podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.

Hoje, dia em que a liturgia católica assinala a Assunção de Nossa Senhora e a Igreja Ortodoxa festeja a Dormição de Maria, trago aqui dois textos sobre a figura da mãe de Jesus: um, publicado no Público de 7 de Maio (e que, por isso, tem uma referência final datada); o outro, um texto publicado no número de Maio/Junho da revista Bíblica. Em ambos, procuro apresentar alguns elementos sobre o modo como Maria é olhada e venerada e de que modo isso influencia ou não a fé de tantos crentes (incluindo o Papa Francisco, cuja relação com Nossa Senhora é também tratada no primeiro texto.

Este é o quarto trabalho desta série, que incluirá mais dois textos, nos dias 13 de Setembro e 13 de Outubro. Os textos já publicados podem ser lidos nestas ligações:



PAPA FRANCISCO: DEVOTO DE MARIA, MAS NÃO MARIANO

Maria é importante no cristianismo? E a que ponto? Há uma forte presença da mãe de Jesus na teologia, na vida dos crentes – e dos Papas. Mas o entendimento do seu lugar no dogma cristão tem sido objecto de debates e muitas polémicas. Aqui se recordam alguns desses episódios e se tenta perscrutar o entendimento do Papa Francisco sobre a figura da mãe de Jesus.



O Papa Francisco no Santuário de Fátima, a 12 de Maio último 
(foto reproduzida daqui)

Na primeira metade do século VIII, São João Damasceno, um dos mais importantes teólogos cristãos do primeiro milénio cristão, escrevia que “Maria é a primeira das novas criaturas”.
Com essa afirmação, queria destacar o papel da mãe de Jesus na configuração da fé cristã. Mãe de Cristo e irmã dos crentes, primeira seguidora e discípula do seu filho, protectora e advogada de quem a ela recorre, Maria de Nazaré pode ser também arquétipo da figura da mãe, da presença do feminino na antropologia e figuração da deusa-mãe. A sua personalidade é, desde o início do cristianismo, venerada em diferentes graus, a ponto de ter sido proclamada pelo Concílio de Éfeso, em 431, como Theotokos – literalmente, “portadora de Deus”, ou seja, mãe de Deus.
O catolicismo e o cristianismo ortodoxo (predominante no leste europeu e no Médio Oriente) herdaram esse entendimento e essa veneração. Ao contrário do protestantismo, que se afastou daquilo que considerava os desvios e exageros da tradição católica.
Característica da identidade católica, a veneração a Maria é, no entanto, objecto de debates, divergências, opiniões diferentes – mesmo no interior do catolicismo. Esses diversos graus de adesão e as distintas expressões de linguagem utilizadas manifestam também, quase sempre, modos de ver e de se relacionar com a mãe de Jesus muito díspares.
O Papa Francisco não foge à regra: devoto da figura de Nossa Senhora, ele afirma, desse modo, a sua absoluta identidade católica. Mas, vindo da América Latina, ele dá a essa devoção uma configuração que não coincide completamente com algumas tradições. E que, se acentua a dimensão popular da irmã e companheira que apoia e auxilia os crentes, também afirma em permanência a centralidade de Jesus e do seu evangelho como fundamentos da fé cristã. Maria é, nesta perspectiva, tomada como a primeira seguidora de Jesus e a referência dos crentes.

A desatadora dos nós e a ternura para ajudar

No modo como Francisco se relaciona com a figura de Maria contam, desde logo, os gestos iniciais: na primeira manhã depois de eleito, o novo Papa dirigiu-se à basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Ali, Inácio de Loiola, fundador dos jesuítas, a ordem a que pertence Jorge Mario Bergoglio, celebrara a primeira missa de Natal, em 1538. Mas Bergoglio, agora Francisco, não foi lá por causa do fundador da sua ordem, antes para rezar e colocar um ramo de flores. Era a sua forma de saudar a imagem conhecida como Salus Populi Romani, a protectora do povo de Roma.


Nossa Senhora Desatadora dos Nós, 
a imagem preferida do Papa Francisco

A invocação que Bergoglio/Francisco prefere, no entanto, é outra: Nossa Senhora Desatadora dos Nós, uma representação pictórica que ele viu na Igreja de St. Peter am Perlach, em Augsburgo (Alemanha), quando lá viveu, a partir de 1986, para fazer a tese em teologia. Numa pagela que o então padre e, depois, bispo Bergoglio passou a distribuir às pessoas, a imagem de Nossa Senhora Desatadora dos Nós era apresentada como alguém capaz de desfazer “todos os nós do coração, todos os nós da consciência”, todos os nós “da vida pessoal, familiar e profissional, da vida comunitária” que “as mãos bondosas de Maria vão desatando um a um.”

domingo, 13 de agosto de 2017

Fátima, 100 anos, de Maio a Outubro (3) – Segredos, contextos e linguagens

Depois de Maio, podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.
Neste mês, trago aqui um texto que publiquei no número de Maio/Junho da revista Brotériaonde procuro analisar o Comentário Teológico sobre o “segredo de Fátima”, publicado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em Junho de 2000. Este é o terceiro trabalho da série e que incluirá mais dois textos, nos dias 13 de Setembro e 13 de Outubro, além de outros dois sobre a figura de Maria, a publicar no próximo dia 15.


FÁTIMA: SEGREDOS, CONTEXTOS E LINGUAGENS

A afirmação do então cardeal Joseph Ratzinger é uma das que marca o Comentário Teológico acerca do “segredo de Fátima”: “A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé”, escrevia, em Junho de 2000, o futuro Papa Bento XVI (2005-2013).
A linguagem do segredo e a linguagem relacionada com a experiência católica e crente da época em que se dão os acontecimentos de Fátima, e dos seus desenvolvimentos posteriores, ajudam a entender muito do que foi a construção do fenómeno ao longo deste século. Fátima surge num contexto religioso e político determinado e desenvolve-se, depois, também em relação com a espiritualidade e os acontecimentos políticos das últimas décadas.


Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI

O texto do Comentário Teológico (que pode ser lido aqui, onde também se pode encontrar o texto da terceira parte do segredo escrita por Lúcia e o relato da conversa do então arcebispo Tarcisio Bertone com a irmã Lúcia e outros documentos relativos ao “segredo”) pode ser lido como um olhar crítico do fenómeno tradicionalmente designado como “aparições” – que, claramente, para Ratzinger, não deve ser designado como tal. O texto aponta para caminhos diferentes dos da linguagem mais tradicional usada em relação a Fátima, embora o faça através de uma proposta positiva, que tenta retirar da mensagem o que de melhor nela se pode ler: a proximidade de Deus através da ideia do coração imaculado e da atenção maternal de Maria de Nazaré; o apelo à conversão permanente ao evangelho de Jesus; a centralidade do objectivo de “crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade”, pois “tudo o mais pretendia apenas levar a isso”; e “a importância da liberdade do homem”, orientando-a “numa direcção positiva” e mobilizando “as forças da mudança em bem”.
Esse olhar positivo, que pretende confirmar a integração da mensagem de Fátima na mensagem evangélica mais autêntica, pode perceber-se, por exemplo, quando o futuro Papa Bento XVI escreve que o “triunfo do Imaculado Coração de Maria”, de que fala o texto do segredo, significa que aquele “Coração aberto a Deus, purificado pela contemplação de Deus, é mais forte que as pistolas ou outras armas de qualquer espécie”. Ou ainda quando refere as palavras-chave da primeira e segunda partes do “segredo” (a frase “salvar as almas”) e a da terceira parte (“o tríplice grito: ‘Penitência, penitência, penitência!’”), o que o leva a afirmar: “Volta-nos ao pensamento o início do Evangelho: ‘Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.’ Perceber os sinais do tempo significa compreender a urgência da penitência, da conversão, da fé.”

Paz – presença e ausência

Estranhamente, o Comentário do cardeal Ratzinger deixa de lado a questão da paz, que é outro tema central da mensagem e da prática pastoral de Fátima, bem como da adesão das populações. Aliás, essa ideia vem sendo sublinhada desde há décadas pelos responsáveis do santuário, por estudiosos do fenómeno, bispos e papas.
Quando veio a Fátima, em 1967, o Papa Paulo VI anunciou a visita dizendo que viria, como peregrino, para invocar a intercessão da mãe de Jesus “a favor da paz da Igreja e do mundo”. E, na homilia que pronunciou no santuário, sublinhava esse objectivo: “O mundo, a paz do mundo”, bem como o desejo de “paz interior” para a Igreja. Em 2010, o próprio Bento XVI sublinharia, na sua homilia em Fátima, que os videntes “fizeram da sua vida uma doação a Deus e uma partilha com os outros por amor de Deus” e que “só com este amor de fraternidade e partilha construiremos a civilização do Amor e da Paz”.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Pedofilia: Francisco ainda precisa de fazer mudanças na Igreja

Kieran Tapsell, advogado público aposentado e autor de “Potiphar’s Wife: The Vatican’s Secret and Child Sexual Abuse”.
[Artigo publicado no National Catholic Reporter, de 28-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa e foi publicada na Newsletter o Instituto Humanitas da Unisinos].

«O editorial do National Catholic Reporter, intitulado “A Igreja mudou em relação aos abusos sexuais, mas não o suficiente”, corretamente identifica a cultura clerical essencialmente masculina como um fator fundamental nos escândalos de abuso sexual, mas erra ao não apontar para o fracasso do Papa Francisco em mudar partes doDireito Canônico que incorporam tal cultura.
O Papa Francisco pode se ver impedido pela teologia no tocante a ter mulheres ordenadas ao sacerdócio. Mas os Cânones 478 e 1420 exigem que os vigários gerais, vigários episcopais e judiciais também sejam sacerdotes. Estes, portanto, não podem ser mulheres, exceto com uma autorização concedida por homens em Roma. Uma regra assim pode ser alterada com o simples uso de uma caneta.
Um exemplo mais grave do clericalismo é a imposição, no Direito Canônico, do segredo pontifício contra todas as acusações e informações relativas a abusos sexuais infantis cometidos pelo clero. A única exceção que permitiria reportar-se às autoridades civis foi dada aos EUA em 2002 e ao resto do mundo em 2010, e limitou-se a valer onde existem leis civis aplicáveis que exigem que este tipo de informação seja repassado. Pouquíssimas jurisdições têm leis abrangentes nesse sentido. Nos Estados Unidos, somente a metade dos estados obriga que o clero informe os casos à polícia.
As tentativas de Francisco em responsabilizar os bispos significaram muito pouco, pois a capacidade dele de assim fazer está limitada pelo Código de Direito Canônico. Os três bispos que ele forçou renunciar – Dom John Nienstedt e seu bispo auxiliar, Dom Lee Piché, de St. Paul-Minneapolis, e Dom Robert Finn, de Kansas City-St. Joseph, no estado do Missouri – violavam o Direito Canônico em vigor nos EUA desde 2002, o qual exigia que obedecessem às leis civis de informar à polícia as acusações de abuso.
Desde 1996, os bispos irlandeses, ingleses, australianos e americanos quiseram que a obrigação de relatar às autoridades civis fosse regra no Direito Canônico, independentemente de haver, ou não, a obrigação segundo o direito civil local. A Santa Sé tem reiteradamente rejeitado a ideia.
Em 2012, a Conferência dos Bispos Católicos da Austrália enviou ao Vaticano para aprovação o seu protocolo contra abusos sexuais, intitulado “Toward Healing 2010”. O texto exigia que fosse obrigatório relatar às autoridades civis sempre, em todos os casos. Em 22-02-2013, a Congregação para a Doutrina da Fé informou a conferência que tal obrigação poderia se aplicar a todos os demais na Igreja, exceto aos clérigos.
Em 2014, a Conferência Episcopal Italiana (da qual Francisco é o bispo mais importante, embora não seja o seu presidente) anunciou que seus bispos não iriam relatar à polícia as acusações de abuso sexual clerical porque as leis italianas não os exigiam – postura coerente com o Direito Canônico. Em 2015, a Conferência dos Bispos da Polônia fez o mesmo anúncio.
Em 2014, duas comissões das Nações Unidas – sobre os direitos da criança e contra a tortura – solicitaram a Francisco que abolisse o segredo pontifício para permitir que se relatassem às autoridades civis os casos de abuso sexual infantil sempre que ocorrerem e que tornasse esta prática um elemento obrigatório segundo o Direito Canônico. Não era outra coisa senão um pedido para que a Igreja voltasse à prática centenária que existia antes de 1917. Em setembro de 2014, o papa recusou o pedido, com a desculpa extraordinária segundo a qual tornar obrigatória a prática de relatar casos de abuso dentro do Direito Canônico iria interferir na soberania dos Estados independentes. O Direito Canônico interfere em tal soberania tanto quanto interferem as regras do futebol.
Em 15-02-2016, o Cardeal Sean O’Malley, da Arquidiocese de Boston, presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, afirmou que os bispos têm uma obrigação ética e moral de relatar às autoridades civis todas as acusações de abuso sexual clerical, independentemente se há ou não leis civis nesse sentido. A sua afirmação era um bom indicativo de que o Direito Canônico seria alterado. Em 06-12-2016, a mesma comissão publicou as suas orientações para as conferências episcopais nacionais. A declaração de O’Malley não foi incluída.
Francisco vem dizendo que ele e seu antecessor, o Papa Bento, adotaram uma política de “tolerância zero” em casos de pedofilia. No contexto profissional, tolerância zero significa um desligamento permanente. No entanto, os números que Francisco apresentou às Nações Unidas em 2014 mostravam que menos de 25% de todos os padres acusados de pedofilia foram desligados da Igreja. Temos aqui uma tolerância de 75%, não de zero por cento.
Em 2017, Dom Mark Coleridge, de Brisbane, na Austrália, contou a uma Comissão Real que o Vaticano concordara em desligar apenas um dos 6 padres condenados por crimes sexuais. Isto representa uma tolerância de 83%.
Pode-se expressar melhor o desempenho de Francisco pegando o exemplo de Marie Collins, que renunciou da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores em 1º de março deste ano:

Quando aceitei a nomeação para a Comissão em 2014, disse publicamente que se achasse que o que ocorria atrás de portas fechadas estivesse em conflito com o que estava sendo dito ao público, eu não permaneceria. Esse momento chegou. Sinto que não tenho escolha senão renunciar caso queira manter a minha integridade”