terça-feira, 15 de março de 2011

Inquérito Nova Evangelização (4) - Rui Silva Pedro

A secularização faz parte do processo de inculturação da mensagem cristã

Padre Rui M. da Silva Pedro, 49 anos, membro da Congregação dos Missionários Scalabrinianos, missionário de comunidades migrantes na Europa

1 – No mundo plural e “global”, marcado sempre mais pela diversidade religiosa num mesmo território, graças à mobilidade humana de povos e culturas, é possível encontrar em todas as religiões pessoas que, mesmo aparentando grande devoção, observância, fervor, solidariedade e apologética das suas crenças, não demonstram ter chegado a uma madura e libertadora “experiência religiosa”. Em Portugal, sempre mais ecuménico e inter-religioso, professando a liberdade religiosa como conquista da democracia, este fenómeno é também observável quer no seio da maioritária religião católica, quer noutras que padecem da mesma falta de convicção. A Nova Evangelização deverá conduzir a uma experiência pessoal da fé partilhada com a comunidade.

A relação pessoal com Deus, com a transcendência do outro, com os “mandamentos” codificados nas Escrituras, com a ética vai-se tornando-se assunto meramente privado. Segue-se uma vida espiritual(izada), discípula da própria consciência, individual e não inserida na comunidade, Igreja, omissa das consequências práticas e sociais da oração: fonte de toda e qualquer experiência religiosa. Esta tornou-se um facto não observável, sem mediações, alheia, que não seguindo a lei da objectividade assenta em ideias e não práticas, em sentimentos e não regras, em medos e não na memória porque é experiência do homem e não de Deus.

As mudanças de que fala o Santo Padre têm criado no homem de hoje a consciência do “Deus débil” que não exige exclusividade ao seu povo e que parece não ter mais poder sobre a história, a ciência, o universo e coração humano. Para que serve um Deus assim?

O “vazio interior” é uma das numerosas expressões da busca solitária, fragmentada e frustrada do homem hodierno empenhado em procuras “sensuais”, “psicológicas” e “desalinhadas”, com aparência de espiritualidade, onde Deus nunca habitou, mas por onde, nos modernos olimpos, veraneiam deuses ociosos e manipuláveis porque criados por mão humana.

Nas religiões monoteístas, como fruto das mudanças civilizacionais em acto, parece que a beleza da salvação se encontra apenas em percursos alternativos de espiritualidades desincarnadas, não institucionalizadas, e em militâncias subjectivas sem “sinais”, sem “ritos”, sem “templos” nem “pobres” que, desde sempre, são a via de familiarização do homem com Deus e suas alianças reveladas ao povo na historia.

2 – As mudanças culturais e transformações sociais não param. Elas vão acontecendo com uma rapidez impressionante ao ponto de provocar nas nossas estruturas de leitura (permanentes, como universidades e hierarquias, ou carismáticas, como as congregações religiosas e movimentos laicais) um desajuste e adiamento nas suas respostas pedagógicas, económicas, sociais, técnicas e religiosas.

Muitas vozes em muitos continentes têm apresentado suas leituras e decifrado os sinais de Deus no clamor de quem sofre e na beleza de quem acredita. Porém, mesmo se todas são ouvidas, nem todas são acolhidas, algumas são até silenciadas. No entanto, há que continuar a alfabetizar as comunidades para que todos aprendam a ler os sinais na co-responsabilidade baptismal.

Em geral, as hierarquias religiosas são óptimas nos diagnósticos, nas análises, na crítica, até política, mas insuficientes na terapia, na prática consequente, na proposta concreta. As respostas têm de ser por natureza e fidelidade à mensagem, respostas comunitárias em que todos, animados pela Palavra e pelos valores do Reino, religiosos e leigos participem no inteiro processo.
Desde o Vaticano II, autêntico “sinal dos tempos”, muitos outros “sinais” foram individuados na história como apelos de Deus à “conversão” das pessoas e das estruturas. Alguns foram mediatizados pela boca de iminentes teólogos, mas a Igreja adiou o debate sobre a leitura eclesial dos sinais, acomodando-se numa cristandade em declínio, reproduzindo modelos.

A secularização sempre acompanhou a relação do sagrado com o profano ao longo dos tempos. É uma lei do diálogo religião-mundo, Igreja-sociedade. O próprio Jesus secularizou uma certa ideia de Deus em voga no seu tempo, nos templos da altura, como também uma certa forma de viver a Lei e os Mandamentos. Ele revelou e ensinou caminhos novos para o homem se relacionar bem com Deus e com o próximo. E fê-lo, sem anular a interligação intrínseca que existe entre o sagrado e a vida, pois não há vida, nem cultura sem transcendência. Jesus segredou a todos que a felicidade é auto-transcendência mediante o amor e as bem-aventuranças.

A secularização faz ainda parte do processo de inculturação da própria mensagem cristã simplificando e emancipando símbolos, linguagens e costumes de determinada cultura para atingir uma nova expressão – purificada e evangelizada – dos conteúdos da fé, de forma mais acessível e compreensível para os homens de um particular contexto, tempo e situação.

3 – Missão “ad gentes” é o que fazem hoje os missionários sacerdotes, religiosas e leigos cristãos no norte de África ou no Vietname, testemunhando o Evangelho numa cultura que o desconhece. Evangelização é o que faz o nosso pároco, com seus colaboradores leigos, na paróquia transmontana ou açoriana ou o capelão junto de uma prisão, colégio, quartel, comunidade migrante ou hospital, apresentando propostas de formação, espiritualidade e solidariedade a pessoas já baptizadas ou familiarizadas com a cultura cristã. Missão “inter gentes” é uma expressão também hoje usada, mas ainda não assumida, para definir a missão da Igreja em contexto intercultural, inter-religioso e agnóstico onde, sem partir para Índias longínquas, no mesmo território paroquial, mas fora do templo, pessoas tão diferentes convivem e dialogam sobre a vida e religião.

Nova Evangelização (NE) é um pouco daquilo que, seguindo o exemplo de Paris (2004) e Viena (2003) e, depois, em Bruxelas (2006) e Budapeste (2007), se tentou fazer em Lisboa em Novembro de 2005 com o ICNE (Congresso Internacional da Nova Evangelização): repropor com ousadia missionária, criatividade inteligente e simplicidade apaixonada, o Evangelho na rua, na praça, na empresa, no bairro, na cidade. Provocou-se o encontro, o diálogo, o questionamento e a surpresa a pessoas que vivem numa sociedade laica, mas marcada por símbolos e tradições católicas. Não houve fugas, mas confronto sadio, aberto e tolerante.

O ICNE, no qual participei, foi a meu ver um bom ensaio para o próximo Sínodo. Mas, mais uma vez, para ir além da agenda de eventos apoiados por elites criativas, e conseguir atingir a massa, dando visibilidade ao inédito evento foi necessário, mais uma vez, recorrer ao tradicional: à procissão. A caminhada popular com a imagem de Nossa Senhora de Fátima pelas avenidas de Lisboa foi o evento que mobilizou mais gente e mediatizou decididamente o congresso. Mais um sinal a interpretar...

4 – A Igreja proclama sempre mais a Pessoa de Jesus, o Cristo do Evangelho e o Cristo experimentado por muitos santos e santas da história, mas ainda é comum o povo ficar-se pela moral da história. O próprio modo como a Igreja, ainda muito refém do direito e de uma certa teologia, lida com situações novas de irregularidade vividas por um número crescente de cristãos, parece não seguir aquela prática misericordiosa e libertadora praticada por Jesus Cristo para admiração de muitos e salvação de todos. Acredito que só favorecendo o encontro com Cristo na comunidade que acolhe sem julgar, que se compadece sem discriminar, cada um poderá fazer experiência de um encontro libertador com Cristo que, por sua vez, o envia a anunciar a dádiva e perdão recebidos. São precisos novos anunciadores que passem pelo crivo do perdão doado em Jesus Cristo e o “experimentem” na vida atribulada dos novos pobres de hoje.

A “Nova Evangelização” pretende basear-se mais na transmissão e partilha de um testemunho, na narração da própria experiência religiosa a partir do encontro com Cristo no mundo do que na comunicação de uma doutrina, moral ou vida devota.

5 – A Evangelização sempre procurou ensaiar formas velhas e novas para atingir as pessoas na sua particular situação de vida, de maneira a que a mensagem se incarne na vida da pessoa ou grupo e seja sentido o significado e urgência da proposta. Em Portugal, tem acontecido este processo que, a meu ver, encontra a sua fórmula ideal na Acção Católica e nos movimentos eclesiais, hoje imprescindíveis para a Nova Evangelização. Além dos movimentos eclesiais, pensemos também nos métodos aplicados na catequese infantil e de adultos, na linguagem usada nas aldeias rurais e nas cidades e suas periferias, no mundo do trabalho e solidariedade social... Uma diversidade de linguagem adaptada a idade e situação, mas que, mesmo assim, não tem levado a uma forte experiência de Deus e do outro. Os métodos repetem-se, transportam-se de um lado para outro, e até se importam de outras igrejas... mas, permanecem fragmentados sem duração no tempo, como exige a boa pedagogia para garantir continuidade no crescimento.

Uma prioridade para a Igreja em Portugal é aquela de conseguir definir finalmente um plano pastoral para todas as dioceses. De modo a que, partindo de uma leitura conjunta, se desenhe um caminho comum, participado por todos, com vista a garantir a unidade de acção ao redor de iguais prioridades, solidárias na fidelidade das metas a alcançar, intercambiando diversificados recursos, itinerários e pessoas, avaliando periodicamente métodos, estratégias e resultados. Passa por aqui a catolicidade da Igreja: ser universal no particular sem que o particular ponha em causa o bem comum, isto é, uma “Nova Evangelização” que cative e apaixone todos na sequela de Cristo.

(Foto António Marujo)

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