domingo, 27 de julho de 2014

"Stabat Mater" - uma crónica de Augusto Santos Silva


Na sua crónica semanal no Jornal de Notícias, o Prof. Augusto Santos Silva analisa o significado e alcance de um problem laboral, no caso o dos 280 operários da fábrica Peugeot-Citroën (PSA) em Mangualdem, cujo terceiro turno, iniciado em 2013, "para responder a necessidades adicionais de produção", deixou de funcionar.
Diz aquele docente da Faculdade de Economia do Porto e conhecido político que "[é] difícil contestar a decisão da Administração a partir de critérios de racionalidade económica". "A questão  - faz notar - é que o mercado de trabalho não é - não deveria ser - um mercado de produtos. O trabalho humano não é igual a uma máquina que se compra quando é precisa, se gasta até ao limite e se deita fora no fim, para comprar outra. O trabalho é uma condição necessária da dignidade pessoal".
A partir daí, faz uma análise que, com a devida vénia, trancrevemos:
"A regulação social do capitalismo sempre procurou enquadrar esta questão. As comunidades tradicionais desamparadas pelo Estado amorteciam os efeitos de baixos salários ou desemprego através da pequena agricultura complementar ou de outras atividades económicas informais. O modelo japonês garantia uma fortíssima proteção ao núcleo duro dos trabalhadores ligados a grandes empresas como a famílias, à custa de um largo segmento exterior desprotegido, composto por mulheres ou trabalhadores precários e desqualificados. Mas os europeus conseguiram ir mais longe na regulação democrática da economia e fizeram questão de incluir a relação salarial no coração moral e na base institucional da sociedade de bem-estar.
Isto, que duas gerações sucessivas do pós-guerra puderam considerar um adquirido civilizacional, encontra-se hoje em causa. Duas empresas fundem-se e todo o mundo acha normal que o resultado imediato seja um despedimento massivo. A fábrica precisa ocasionalmente de aumentar a produção e emprega, deixa de precisar e despede. Pagando as indemnizações devidas, cumprindo a lei aplicável. Mas para todos os efeitos o trabalho, isto é, o trabalhador tornou-se um descartável. Volta a ser o jornaleiro engajado e excluído ao ritmo de cada dia, agora com subsídios e indemnizações. Não tardará muito e a Europa achará inevitável o que vê nos filmes americanos: despedido na hora, alguém pega na sua caixa de papelão e abandona o posto, enche a carrinha com uns tantos trapos e leva a família para mil quilómetros mais além, pode passar de um bom emprego para debaixo da ponte que poucos ligam e, se for ao contrário, se da rua sair para a riqueza, terá Hollywood a celebrá-lo. Cada qual que se amanhe.
O facto é que os cofundadores da economia social de mercado, sociais-democratas e democratas-cristãos, estão muito desprovidos, política e moralmente, face aos avanços do capitalismo sem regras. Por isso, não custa compreender que provenham da Igreja as palavras mais fortes contra a degradação da pessoa humana por via da precarização do trabalho.
Eu, pelo menos, creio perceber bem porque é que, entre as vozes internacionalmente mais audíveis, é a de Francisco, como antes a de João Paulo II, que parece mais sentida e sincera. A bem dizer, a sorte do operário de hoje, expiando quase sozinho as culpas de um Mundo que também não é o seu reino, não anda muito longe da sorte d" Aquele que Maria chorava, "dolorosa e lacrimosa, junto da Cruz".

[Ler o texto completo: AQUI]
[Crédito da imagem: http://immaculata.ch/Index_2006_04_12.htm]

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Padre de Málaga dança sevilhanas e rumbas na igreja

Um ditado antigo diz que cantar é rezar duas vezes.
Que o diga o padre espanhol José Planas Moreno, de 66 anos, que não só canta como costuma dançar sevilhanas e rumbas na festa da Virgem do Carmo e noutras celebrações mais importantes da sua paróquia. Fá-lo no fim da celebração eucarística e antes da procissão. Acontece há anos no Bairro de Campanillas, Málaga e, segundo os relatos, as pessoas já reclamam se ele não dança. E não faltam mulheres para o companhar, como se pode ver no vídeo deste post. José Planas já teve mesmo o privilégio de dançar diante do Papa João Paulo II. O relato é de Religion Digital.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Os filtros do Vaticano às vozes do Povo de Deus

O humor não é uma dimensão da vida que este Papa menospreze. Pat Marrin, colaborador do jornal National Catholic Reporter, viu assim a comunicação entre as bases e a cúpula da Igreja, numa possível alusão a algum descontentamento que o documento preparatório do próximo Sínodo sobre a família suscitou em meios católicos dos Estados Unidos da América:



Desperdício; Papa, novidades e família; e interior e desertificação

Crónicas

No comentário aos textos da liturgia de domingo passado, Vítor Gonçalves escreve na Voz da Verdade, a propósito do desperdício e sob o título Semear é multiplicar:
Segundo dados de 2012, “em Portugal cerca de um milhão de toneladas de alimentos por ano (17% do que é produzido) vai para o lixo, e nos 27 Estados Membros da UE a produção anual de resíduos alimentares ronda os 89 milhões de toneladas, estimando a UE que possa chegar a 126 milhões de toneladas em 2020. 30% dos produtos horto-frutícolas na Europa vão para o lixo!” (...) Não se trata de desvalorizar o trabalho e alimentar a preguiça mas de promover uma justa partilha e reconhecer que a abundância de uns pode colmatar a penúria de outros.
(texto completo aqui)


No Público de Domingo, frei Bento Domingues escreve o terceiro texto sobre Que trouxe de novo o Papa Francisco:
O ser humano é considerado como um bem de consumo que se pode usar e deitar fora. É a promoção da cultura do descartável. (...) Os excluídos nem explorados são, mas resíduos, sobras. Esse é o facto. Quais são as causas? 
O argentino tenta responder. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro (...). A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. 
(texto completo aqui)


No DN de sábado, Anselmo Borges dedica o seu segundo texto ao tema Família em crise, desejo de família, a propósito do texto preparatório do Sínodo dos Bispos sobre a família, que decorrerá em Outubro. O artigo cita as referências do documento à poligamia “natural” em certas regiões, ao “feminicídio”, promiscuidade sexual em família e incesto. E acrescenta:
Uma linha de fundo perpassa o texto: mesmo mantendo, no essencial, a doutrina tradicional católica, há uma nova atitude pastoral de compreensão e misericórdia para quem está em situação de irregularidade canónica (...)
há concretamente dois pontos que precisam de mais reflexão (...) será preciso aprofundar toda a questão da “lei natural”. O que é a natureza? Dever-se-á ir também mais fundo no referente à chamada gender theory.
(texto completo aqui)


No CM de sexta, Fernando Calado Rodrigues escrevia sobre o empenhamento da Igreja para combater o Despovoamento do interior:
A complexidade do problema exige um envolvimento supradiocesano e a cooperação entre diversos organismos eclesiais. Foi a essa conclusão que chegaram algumas dioceses no sul de Itália, confrontadas com problemas semelhantes. Identificaram como principal causa para essa situação o desemprego juvenil.
(texto completo aqui)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O ''retorno do exílio'' para Teilhard de Chardin

Por Henri Madelin (*)


      
      O padre Teilhard de Chardin (1881-1955), apaixonado pela ciência e homem de grande fé, passou grande parte da sua vida de jesuíta no exílio. As autoridades romanas temiam a sua influência. Foi-lhe pedido que recusasse um pedido de admissão ao Collège de France. Muitos dos seus livros não receberam a permissão para a publicação enquanto ele estava vivo. Os seus fervorosos admiradores da época o descobriram através dos textos mimeografados que circulavam em círculos cada vez mais amplos. Em algumas bibliotecas de seminários, as suas obras haviam sido postas no "inferno", isto é, era preciso de uma autorização especial para cruzar às escondidas as portas daqueles lugares infernais.
      Em 1932, em Christologie et évolution, Teilhard ousou apresentar a sua percepção da criação: "Criar, até mesmo para a Onipotência, não deve mais ser entendida entre nós na forma de um ato instantâneo, mas como um processo ou gesto de síntese. O Ato puro e o 'Nada' se opõem como a Unidade completa e o Múltiplo puro. Isso significa que o Criador não poderia, apesar (ou, melhor, em virtude) das suas perfeições, se comunicar imediatamente com a sua criatura, mas deve torná-la capaz de recebê-lo".
      Tal visão evolutiva obrigava a reler de forma diferente as noções de Criação, de mal, de pecado original se a fé queria entrar em um diálogo fecundo com as ciências modernas, para além de um concordismo ingênuo e de recorrentes leituras hostis.
      A hostilidade romana aos seus escritos não diminuía. Um ato de recusa em relação a esse "visionário" veio de um Monitum controverso e particularmente severo publicado pelo Santo Ofício no dia 30 de junho de 1962. Nele, se declarava que "certas obras do Pe. Pierre Teilhard de Chardin, incluindo também algumas póstumas, são publicadas e encontram um favor nada pequeno. Independentemente do devido juízo no que se refere às ciências positivas, em matéria de filosofia e teologia vê-se claramente que as obras mencionadas contêm tais ambiguidades e até mesmo erros tão graves que ofendem a doutrina católica".
      Hoje, Teilhard não é mais um réprobo dotado de talento. Ele saiu do exílio que lhe havia sido imposto. Uma confirmação dessa mudança explica a recente publicação no jornal oficial do Vaticano de um artigo elogioso sobre Teilhard, reconhecido como um "precursor" e um "cientista extraordinário".
      Ao se ler o L'Osservatore Romano do domingo, 29 de dezembro de 2013, percebemos, de fato, que já se evita agora toda polêmica inútil. O autor do artigo, Maurizio Gronchi, escolheu como título para a sua contribuição uma citação que resume bem o itinerário intelectual de Teilhard: "Estudo a matéria e descubro o espírito".
      O artigo parte da constatação de que "hoje" os estudos filosóficos e os estudos teológicos levam em consideração o componente dinâmico e evolutivo do ser humano e do universo. Isso é particularmente perceptível, por exemplo, na obra do teólogo alemão Karl Rahner.
      O artigo analisa as abordagens ao problema por parte dos papas, começando por Paulo VI. Lembra que, para o cardeal Ratzinger, a intuição teilhardiana é "verdadeira" por ser capaz de discernir no Cristo-Ômega o ponto de vista unificante da escatologia da humanidade. É um progresso efetivo para a compreensão de Cristo na atual concepção do mundo, ressalta. Com um toque de humor, o ex-responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé declara até que se pode perdoar Teilhard pela sua propensão a utilizar uma linguagem de biólogo, porque "nele se encontra uma coerência substancial com a cristologia paulina".
      Segundo esse artigo, pode-se ler a assinatura de Teilhard sobretudo nos textos do Concílio Vaticano II, particularmente na Gaudium et Spes. A maior parte dos especialistas presentes nesse Concílio eram leitores de Teilhard. Falavam a respeito, se inspiravam nele, mas não ousavam se referir ao seu nome naquela época.
      O artigo mostra isso com um exemplo: "Assim, o gênero humano passa de uma concepção bastante estática da ordem das coisas a uma concepção mais dinâmica e evolutiva. Isso favorece o surgimento de um formidável complexo de novos problemas, que estimula a análises e a sínteses novas".
      Esse trecho da constituição pastoral Gaudium et Spes (n. 5, § 3), destacado nesse artigo do L'Osservatore Romano, não ressoa, talvez, para nós como um pequeno concentrado de imensos desenvolvimentos sobre esse tema que se encontra na obra de Teilhard?

(*) Henri Madelin é teólogo jesuíta francês, ex-diretor do Centre Sèvres de Paris (1985-1993), ex-provincial dos jesuítas franceses e ex-diretor da revista Études. Hoje, leciona no Instituto de Estudos Políticos de Paris (IEP). O artigo foi publicado no jornal La Croix, em 05-07-2014. A tradução foi realizada por Moisés Sbardelotto para a Newsletter do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil.

Complemento:
Um texto interessante sobre Teilhard de Chardin e o seu pensamento evolucionista foi publicado pelo Prof. Alfredo Dinis,s.j., recentemente falecido. Intitula-se "Implicações teológicas do evolucionismo biológico de Teilhard de Chardin" (corrigi o link, seguindo a indicação de um comentário).

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O que trouxe de novo o Papa Francisco; a família em crise; a Máfia; viver e aprender

Crónicas

Nas suas últimas duas crónicas no Público, frei Bento Domingues pergunta O que trouxe de novo o Papa Francisco?:

Eleito Papa, o cardeal Bergoglio escolheu o nome de Francisco, o de Assis. Esta escolha encerra o seu programa. Optou pelos pobres nas diferentes periferias do mundo: geográficas, sociais, culturais e existenciais.

O empenhamento dessacralizador do novo hóspede da Casa de Santa Marta põe em causa costumes, alguns muito radicados no decurso da história da Igreja, mas que não têm ligação directa ao núcleo de Evangelho. Diz a mesma coisa de normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não são canais de vida. Não tenhamos medo de os rever! (...)
Esperemos que o irrequieto Bergoglio continue a desassossegar as Igrejas, as religiões, a banca, as sociedades, os governos para que se coloquem ao serviço da justiça.  
(os textos destas duas crónicas estão disponíveis aqui e também aqui)


fr. Stephen, de Taizé, Círculos de Silêncio 
(ilustração reproduzida daqui)


No DN de sábado, Anselmo Borges dedica o seu texto ao tema Família em crise, desejo de família, referindo-se ao Instrumento de Trabalho preparatório do Sínodo dos Bispos do próximo Outono:

Embora se dirija directamente aos católicos e no quadro do pensar católico, o documento é mais abrangente, mesmo quando apresenta razões da crise da família e, mais concretamente, da moral familiar. Referindo as respostas recebidas, diz: “Existe unanimidade também no que se refere aos motivos de fundo das dificuldades, quando se trata de acolher os ensinamentos da Igreja” (...)
E lá está a constatação: apesar da crise, há testemunhos significativos nos quais "se manifesta claramente, sobretudo nas novas gerações, um renovado desejo de família".
(o tema será retomado no próximo sábado; este primeiro texto está disponível aqui)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

SOPHIA

Texto de Jorge Wemans (*)



(foto reproduzida daqui)


Sai agora teu funeral à rua. Uma pequena multidão te acompanha. Dentro em pouco descerás à terra. Não é justo.
Justo seria esperar pelo pôr-do-sol para então depor teu franzino corpo na orla branca da praia que amaste. Serena e lentamente, o mar te viria buscar, onda após onda, ao ritmo de quem respira quando ama. E te levaria para o lugar definitivo que só tu e ele sabem ser o teu.
Na claridade da manhã, uma inadvertida e espantada gaivota não saberia entender a gravidade daquele lugar. Nem que força, resistindo a qualquer bater de asas, a mantinha imóvel. Até que o grito de alegria da primeira criança na praia celebrasse o regresso da palavra… e a libertasse para o voo, livre de segredos e de sentidos de que nunca suspeitaria.

O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.

Sei agora mais algumas coisas de ti

“A vida dos que partem
é sempre mais venturosa
que a dura e triste sina
dos que ficam
recortando nos lugares habituais
e nos momentos comuns
o espaço da ausência
daqueles que amam.”

Sei agora mais algumas coisas de ti.
Percebo que escreveste logo tudo da primeira vez. De jacto, por uma vez e para sempre, estavas toda ali. Nos primeiros versos, a que incansável e sempre renovada, voltaste vezes sem conta, já inscreveras tudo o que eras e serias.
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Percebo que andaste comigo pela mão desde muito cedo. Acompanhas-me desde aquele momento adolescente em que comecei a fazer-me diferente daquilo para que me tinham feito. Falei a tua cristalina palavra porque ela dizia o que obscuramente procurava.
(…)
A presença dos céus não é a Tua,
Embora o vento venha não sei donde.

Os oceanos não dizem que os criaste,
Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.

Só o olhar daqueles que escolheste
Nos dá o Teu sinal entre fantasmas.

Percebo por que nunca te resisti. Mesmo quando regressavas e eu pensava ter-te esquecido. Ou quando quis coisas que tu não querias. Quando disse acabado e velho o teu mundo. No tempo em que o sentimento atrapalhava a vida. Ou quando o mar foi só o sono do descanso. Mas nunca te resisti. Nunca te procurei. Chegaste sempre até mim pela mão de alguém.
(…)
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco