Texto de Jorge Wemans (*)
(foto reproduzida daqui)
Sai agora teu funeral à
rua. Uma pequena multidão te acompanha. Dentro em pouco descerás à terra. Não é
justo.
Justo seria esperar pelo
pôr-do-sol para então depor teu franzino corpo na orla branca da praia que
amaste. Serena e lentamente, o mar te viria buscar, onda após onda, ao ritmo de
quem respira quando ama. E te levaria para o lugar definitivo que só tu e ele
sabem ser o teu.
Na claridade da manhã,
uma inadvertida e espantada gaivota não saberia entender a gravidade daquele
lugar. Nem que força, resistindo a qualquer bater de asas, a mantinha imóvel.
Até que o grito de alegria da primeira criança na praia celebrasse o regresso
da palavra… e a libertasse para o voo, livre de segredos e de sentidos de que
nunca suspeitaria.
O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.
Sei agora mais algumas
coisas de ti
“A vida dos que partem
é sempre mais venturosa
que a dura e triste sina
dos que ficam
recortando nos lugares
habituais
e nos momentos comuns
o espaço da ausência
daqueles que amam.”
Sei agora mais algumas
coisas de ti.
Percebo que escreveste
logo tudo da primeira vez. De jacto, por uma vez e para sempre, estavas toda
ali. Nos primeiros versos, a que incansável e sempre renovada, voltaste vezes
sem conta, já inscreveras tudo o que eras e serias.
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Percebo que andaste
comigo pela mão desde muito cedo. Acompanhas-me desde aquele momento adolescente
em que comecei a fazer-me diferente daquilo para que me tinham feito. Falei a
tua cristalina palavra porque ela dizia o que obscuramente procurava.
(…)
A presença dos céus não é a Tua,
Embora o vento venha não sei donde.
Os oceanos não dizem que os criaste,
Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.
Só o olhar daqueles que
escolheste
Nos dá o Teu sinal entre
fantasmas.
Percebo por que nunca te
resisti. Mesmo quando regressavas e eu pensava ter-te esquecido. Ou quando quis
coisas que tu não querias. Quando disse acabado e velho o teu mundo. No tempo
em que o sentimento atrapalhava a vida. Ou quando o mar foi só o sono do
descanso. Mas nunca te resisti. Nunca te procurei. Chegaste sempre até mim pela
mão de alguém.
(…)
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
Tu nunca soubeste, mas
foste santo-e-senha, ponte e porta, abrindo para intimidades e cumplicidades. Os
rostos ganhavam outra proximidade quando nos diziam que também frequentavam a
tua poesia. Olhares que nunca retivéramos fixavam-se na nossa memória, só
porque, inesperadamente, encontrávamos neles a recordação dos teus poemas. Mais
do que qualquer outro, tu eras a graça da amabilidade do mundo. E tornavas
amáveis todos os que de ti se reclamavam.
Como não amar a mulher
que se diz, mostrando o traço a lápis com que se detivera aqui:
MÃOS
Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.
Como não me socorrer de
ti, lendo:
PROMESSA
És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.
[Sabes que não gaguejo
quando recito poesia?]
Como evitar o desafio
daquele que “no tempo da selva mais
obscura, na noite densa dos chacais” te diz:
(…)
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E começo a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo
Que outra resposta
senão:
Na clara paisagem essencial e pobre
Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade.
Combates, amores e
amizades, tu os permitistes, tu os iluminastes.
Sabes, o mundo
estragou-se, estragou-se muito nestes últimos anos. No Uganda os homens tornaram-se
abjectos lobos. Os horrores da limpeza étnica regressaram à Europa. Dos céus
voltam a cair em território europeu bombas mortíferas que rebentam com cinco
décadas de paz. Manhattan sucumbe debaixo de um ódio cego, traiçoeiro, velhaco
e assassino. No Iraque instala-se a guerra. Um muro iníquo, vergonhoso e
violento cresce impunemente todos os dias, dividindo, qual sinal de todas as
derrotas, a Palestina. A Europa envelhece e os outros morrem de fome. O Planeta
protesta exangue, mas ninguém o ouve. O mundo porta-se mal.
Sabes, por vezes toma
conta de mim aquela melancolia adolescente dos finais de tarde de Setembro,
quando a tranquilidade do cair da noite nos avisava do fim de um tempo. Quando
se tornava claro que as férias iam terminar, que nunca mais voltaríamos a ser
os mesmos – mesmo que aos mesmos locais regressássemos. “Nos derniers baisers”.
Voltaríamos, é verdade. Mas mais velhos, mais perros de sentimentos e mais
presos a realidades que não eram dali e nos roubavam o sonho.
Ao olhar o mundo, sinto por
vezes regressar essa melancolia: um certo modo de pensar, construir e viver a
civilidade, a democracia, a justiça e a paz vai transformar-se num adolescente
sonho de Verão? Num passado de cuja realidade passaremos a duvidar? Numa
memória repudiada?
Preciso de te reler:
És tu que estás
És Tu que estás à transparência das cidades
Vê-se o Teu rosto para além dos bairros
interditos.
O mal palpável próximo insistente
Parece tornar-Te evidente
Sobe do destino uma sede de Ti.
Não somos só isto que se torce
Com as mãos cortadas aqui.
Lisboa 4
de Julho de 2004
*texto publicado há dez anos no blogue Causa Nossa, aqui retomado hoje, no dia em que os restos mortais de Sophia entram no Panteão Nacional
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