Na Paulinas Editora, foi publicado o livro Lugares do Infinito – um guia de mosteiros e conventos para reencontrar o mundo, da autoria do fotógrafo Daniel Rocha e de mim próprio. O livro recolhe um conjunto de reportagens que publicámos em 21012, no Público/Fugas, e que é introduzido por um texto intitulado Fugas do mundo nas sendas de Deus, que a seguir se reproduz.
A fuga mundi, fuga do mundo, era uma
das ideias do monaquismo cristão no seu início. Talvez os monges medievais não
estivessem tão longe da busca contemporânea de lugares de tranquilidade,
lugares mágicos de reencontro consigo mesmo.
"Todos os hóspedes que se apresentam [no mosteiro] sejam recebidos
como se fosse o próprio Cristo, pois Ele dirá [um dia]: 'Fui hóspede e
recebestes-me.'"
Tudo começou assim, com Bento de Núrsia, monge que viveu entre cerca de 490
e 547, na região da Umbria italiana (onde, sete séculos depois, nasceria
Francisco de Assis).
Eram tempos em que o cristianismo, proclamado por Constantino como religião
de Estado, esmorecia nas suas práticas e relaxava a exigência de vida. Muitos
crentes começaram, então, a retirar-se para lugares de silêncio e solidão, em
busca de uma vida mais ascética e purificada.
Bento de Núrsia foi um deles. Decidiu viver numa gruta de montanha em
Subiaco, a leste de Roma. Pelo ano de 530, mudou para Monte Cassino. Tomou um
texto de uma regra já existente, a Regra
do Mestre.
Abreviando-a, sublinhou a perspectiva comunitária do monaquismo, aliando ao
mesmo tempo a oração, a reflexão intelectual e o trabalho manual - surge o lema
ora et labora (reza e trabalha). A
regra estabelece também formas de rezar, normas de obediência, regras sobre a
propriedade ou o modo de acolher qualquer hóspede que chegue.
Com o texto, Bento tornou-se o iniciador do monaquismo cristão como o
conhecemos. Surgiu uma autêntica rede de mosteiros beneditinos, decisiva na
construção da identidade europeia medieval – a ponto de, em 1964, o Papa Paulo
VI proclamar São Bento padroeiro da Europa, com a festa litúrgica assinalada a
11 de Julho.
A ideia do acolhimento de quem passava era essencial na vida dos monges.
"A cada [hóspede] sejam prestadas as honras convenientes, de modo
particular aos 'domésticos da fé' [clérigos e monges] e aos peregrinos",
acrescentava a regra, que dispunha depois os pormenores práticos.
No início do monaquismo, a fuga mundi,
fuga do mundo, estava muito presente, traduzindo o desprezo por aquilo que o
mundo significava de pecado ou desumanização. Não se tratava de abandonar a
vida, mas de ir nas sendas de Deus, traduzindo a tensão permanente da mensagem
de Jesus: ele viera não para julgar "mas para salvar o mundo"
(Evangelho segundo S. João 12, 47) e dizia, sobre os seus seguidores: "Não
te peço que os retires do mundo, mas que os livres do mal" ( João 17, 15).
Esta fuga mundi era um exílio
purificador, notava a escritora italiana Cristina Campo, a propósito dos
primeiros eremitas e anacoretas do deserto: "É o exílio, a travessia o que
conta para eles e que eles vieram ensinar, com os seus monossílabos siderais e
as suas monumentais reticências: o ser irreversivelmente estranhos nesta terra,
o viver exactamente 'como um homem que não existe'." (Ditos e Feitos dos Padres do Deserto, ed. Assírio & Alvim).
Busca interior
Pode ser essa ideia de travessia, de ir de um lugar a outro de cada vida,
que hoje leva tantas pessoas a procurar lugares de tranquilidade, natureza e
pacificação. Afinal, talvez os monges medievais não estivessem muito longe dessa
busca e contemporânea. E do anseio de fugir ao quotidiano.
Lugares assim, mágicos, quase sempre, de tranquilidade e silêncio, de
reencontro com o mais fundo de si mesmo, onde a água como fonte de vida e
sobrevivência estava quase sempre presente, eram também os lugares procurados
pelos monges para essa fuga.
Hoje, mosteiros e conventos continuam a ser possibilidades de, na fuga,
reencontrar o mundo. E continuam a ser lugares de hospitalidade, mesmo se o
acolhimento surge já como um desafio mútuo, para quem chega ou quem está:
"Com aqueles que acolhemos (...) queremos procurar a maneira de recuperar
um impulso e descobrir como viver Cristo para os demais. (...) Gostaríamos que
os jovens encontrassem a paz do coração", escrevia o irmão Roger, de
Taizé, a comunidade da Borgonha francesa que acolhe milhares de jovens todos os
anos, especialmente durante o Verão.
Em Portugal, há também sítios destes. Que podem ser lugar para umas férias
diferentes ou para tempos de descanso. Mosteiros e conventos que convidam à
busca interior, à procura do melhor de si mesmo, da natureza ou (para quem crê)
de Deus. Onde o acolhimento continua a ser uma dimensão importante.
Com o Daniel Rocha e o seu olhar
capaz de entender o interior das pessoas e das coisas, fomos, durante algumas
semanas de 2012, na senda destes mosteiros e conventos onde se pode ficar a
rezar, descansar e ansiar por mais – e, sucessivamente, mostrámo-los no
suplemento Fugas, do Público. Escolhemos lugares
onde há uma comunidade religiosa que acolhe quem chega e em cujos tempos de
oração é possível participar – ou seja, que não são apenas casas de retiros ou
seminários com quartos para poder dormir. Pode ter ficado de fora algum lugar
que poderia aqui ser incluído. Se isso aconteceu, foi involuntário: tentámos
reunir o máximo de informação, mesmo estando conscientes da dificuldade do
processo.
É esse conjunto de trabalhos que
agora reeditamos em livro, para poder servir de guia de descoberta destes
lugares que nos permitem alargar olhares.
No livro Um Deus Que Dança (ed. AO), escreve José Tolentino Mendonça:
"'Reparai nos pássaros.' 'Reparai nos lírios.' Jesus convida-te a expandir
o olhar, libertando-o dos rotineiros circuitos. Há quanto tempo não reparas? É
tão fácil os olhos colarem-se ao chão e as visões ficarem reduzidas ao
minúsculo círculo do eu. O desafio de Jesus é mudar a escala do nosso olhar.
Repara além de ti. Fernando Pessoa escreveu: 'Nós somos da altura do que
vemos.' O que é que tens visto? E como?"
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