O Papa Francisco renova a
influência política do Vaticano no Médio Oriente ao juntar, num jardim da Santa
Sé, os presidentes de Israel e da Palestina.
texto de Margarida Santos Lopes*
Dois ateus – o judeu Shimon
Peres e o muçulmano Mahmoud Abbas – vão encontrar-se, neste domingo, com o
chefe da Igreja Católica Romana, Papa Francisco, numa oração colectiva. Não é
uma tentativa de mediação do conflito israelo-palestiniano, garantiu o
porta-voz da Santa Sé, mas todos os analistas reconhecem o peso político desta
prece no Domingo de Pentecostes.
O convite para a reunião inter-religiosa
(que incluirá também a presença do patriarca ortodoxo de Constantinopla,
Bartolomeu, e de líderes espirituais da comunidade drusa) foi endereçado aos
dois presidentes durante a primeira, e histórica, visita do Papa à Terra Santa,
de 24 a 26 de Maio. Francisco voltou a surpreender e marcar a diferença ao
começar a viagem, de carácter oficial, no Reino da Jordânia, de onde partiu, de
helicóptero, para Belém, na Cisjordânia ocupada.
As duas anteriores visitas papais
começaram em Telavive; por isso, este gesto simbólico de dar a primazia a
Mahmoud Abbas não passou despercebido. “O facto de ele ter vindo da Jordânia
directamente para Belém, sem passar por Israel, foi um reconhecimento tácito do
Estado da Palestina”, disse ao diário The
Guardian a cristã Hanan Ashrawi, influente figura política palestiniana.
“Estado da Palestina” foi,
aliás, uma expressão que o sucessor de Bento XVI usou, por diversas vezes, não
apenas em Belém, cidade-berço do cristianismo, onde foi acolhido por milhares
de fiéis, vindos de vários países do Médio Oriente, mas também durante a sua
passagem por território israelita. Esta incluiu igualmente paragens
emblemáticas: o memorial às vítimas de terrorismo no Monte Herzl (o “pai” do sionismo)
e o Museu do Holocausto de Yad Vashem.
“Queremos justiça”
A simpatia que o Papa
demonstrou para com os palestinianos não foi ignorada pelo lado israelita, que
tentou retirar qualquer carga política aos seus gestos. Um dos mais
extraordinários foi uma paragem espontânea junto ao que uns chamam de “barreira
de separação” e outros condenam como “muro do apartheid”.
Junto a um campo de
refugiados, rodeado de crianças sorridentes e guarda-costas israelitas melindrados
com a reduzida protecção pedida pelo antigo cardeal argentino Bergoglio, este
encostou a sua cabeça a uma parte do cimento armado, numa súplica silenciosa. À
sombra de uma torre de vigia militar israelita, o grafito que alguém pintou foi também um rogo: “Papa, Belém é o
gueto de Varsóvia. Papa, queremos justiça. Palestina Livre.”
E “justiça” foi o que mais
impressionou o influente comentador Peter Beinart, judeu de dupla
nacionalidade, norte-americana e israelita. Na sua coluna semanal no diário Ha’aretz (http://www.haaretz.com/opinion/.premium-1.595793), escreveu: “O Papa
Francisco pediu a Israel e aos Palestinianos que procurassem ‘uma paz estável
baseada na justiça, no reconhecimento dos direitos de cada indivíduo e na
segurança mútua’. Tive de ler esta declaração duas vezes. ‘Uma paz estável’ é
suficientemente familiar. O que me intrigou foi a palavra ‘justiça’.”
“É um termo que os
políticos norte-americanos e judeus raramente aplicam ao conflito
israelo-palestiniano”, adiantou Beinart. “‘Paz’, segundo o Dicionário Merriam-Webster significa apenas ‘a ausência de guerra
ou de conflito’ Não diz nada sobre as razões da ‘ausência de guerra ou de conflito’. [O escritor] David Grossman quer acabar com “a guerra ou
o conflito” entre o rio [Jordão] e o mar [Mediterrâneo] ajudando os
Palestinianos a concretizar as suas aspirações de um Estado. [O ministro da
Economia e líder da extrema-direita] Naftali Bennett, pelo contrário, quer
acabar com a ‘guerra ou conflito’ forçando os Palestinianos a abandonar essas
aspirações.”
“Se falarmos
apenas de ‘paz’ e nunca de ‘justiça’, não temos de escolher entre as visões de
Grossman e as de Bennett; é isso que têm feito muitos membros do Congresso e
líderes judeus na América”, acrescentou Beinart, frustrado com o fracasso de
quase um ano de esforços de mediação do chefe da diplomacia de Washington, John
Kerry.
Dois Estados – uma solução impossível?
Uma solução de
dois Estados, que moderados israelitas, como o político Avraham Burg, e
palestinianos, como o filósofo Sari Nusseibeh, já consideram impossível, foi
repetidamente defendida pelo Papa. Francisco está preocupado com os cristãos do
Médio Oriente: constituem apenas 2% na terra que viu nascer Jesus. Em 1948,
quando foi criado Israel, ascendiam a cerca de 10%. Em Belém, representam agora
um terço da população, mas já totalizaram 75%.
A preocupação papal
(que João Paulo II, em 2000, e Bento XVI, em 2009, também já tinham
manifestado) ficou expressa nas refeições partilhadas com várias famílias
palestinianas no campo de refugiados de Dheisheh. O Papa comoveu-se com o
relato de dramas quotidianos, consequência do mais antigo projecto colonial – a
ocupação israelita que dura desde a guerra de 1967.
Neste domingo,
o encontro de oração do Papa com Peres e Abbas terá
lugar num jardim, para respeitar o preceito judaico de não rezar em templos com
símbolos religiosos.
No regresso de Telavive a
Roma, Francisco, que já havia realçado o “direito de existência de Israel em
fronteiras reconhecidas internacionalmente” e “o direito de os palestinianos
terem um Estado soberano”, afirmou que “seria uma loucura” da sua parte querer
servir de intermediário político. “É preciso
muita coragem e eu rezo ao Senhor para que estes dois líderes, estes dois
governos, tenham a coragem de avançar. É o único caminho para a paz.”
Ninguém minimiza o
potencial político deste encontro, que poderá revitalizar a influência do
Vaticano no Médio Oriente, mas poucos acreditam em milagres. Durante a mediação
de John Kerry, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu (rival de
Peres) fez tudo para afrontar os aliados, expandindo sem vergonha a rede de colonatos
que transforma os territórios ocupados em guetos.
Uma mesma língua
Peres, que nem sequer
acredita em Deus, terminará o seu mandato em Julho próximo. Os nomes apontados
para sucessor são de políticos de linha dura. Mas quem sabe? Ninguém imaginava
que o argentino Francisco fosse capaz de enfrentar a poderosa Cúria Romana para
a reformar, e é isso que ele tem estado a fazer.
Passagens da Torá, do Novo
Testamento e do Alcorão serão lidas no Domingo de Pentecostes, uma data importante
para os cristãos.
Conta o livro dos Actos dos
Apóstolos: Quando chegou o dia do
Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou,
vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a
casa onde eles se encontravam.
Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo,
e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram
a falar outras línguas [...]
Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações [...]
a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua
própria língua.
Atónitos e maravilhados, diziam: ‘Mas esses que estão a falar não são todos
galileus? Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa
língua materna? Partos, Medos, Elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e
da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das
regiões da Líbia Cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, Cretenses e
Árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!”
[Actos dos Apóstolos 2, 1-11)]
Talvez o Papa Francisco
acredite que só o Espírito Santo conseguirá que os seus convidados se entendam
falando uma mesma língua.
* Jornalista, especializada
em assuntos do Médio Oriente; texto exclusivo para o RELIGIONLINE; sobre o modo
como a celebração se vai desenrolar em Roma, pode ler-se aqui uma descrição. (Ilustrações: cartoon de Latuff; foto reproduzida daqui)
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