quinta-feira, 20 de julho de 2017

Fátima, 100 anos, de Maio a Outubro (2) – Como começou a história

Depois de Maio, podemos voltar a parte do muito que se publicou sobre Fátima e que ajudará a sistematizar informação e elementos para vários debates sobre o fenómeno, que importa agora aprofundar.
Neste mês, trago aqui dois textos publicados nas revistas JN História e Visão, onde tento resumir o que era Fátima há 100 anos e como se desenvolveu a história inicial do fenómeno. Este é o segundo trabalho da série iniciada aqui e que incluirá textos vários, nos dias 13 dos próximos meses, até Outubro.

DO LUGAR INÓSPITO AO CAIS DE CINCO MILHÕES

Era um lugar inóspito e agreste, de solo rochoso e de pouca vegetação. Ainda assim, crescem na região oliveiras, figueiras e azinheiras, por exemplo. A pouco mais de 120 quilómetros de Lisboa, há um século a distância era muito maior. Era aquela que separava um país muito pobre, analfabeto e com uma agricultura de subsistência, da capital urbana que começava a despontar para o desenvolvimento, a cultura e a política. Mais ainda: era também a distância entre o povo, predominantemente monárquico, e as elites da capital, maioritariamente aderentes da República, que tinha sido implantada em 1910.


A pequena Jacinta levada ao colo, a 13 de Outubro de 1917, 
na foto captada por Joshua Benoliel

A 13 de Maio de 1917, na Cova da Iria, um pequeno lugar da aldeia de Fátima, três crianças acompanhavam os rebanhos dos pais: Lúcia dos Santos, de 10 anos, e os primos Francisco Marto, com quase 9 anos, e Jacinta Marto, de 7. Contariam eles depois, interrogados pelo pároco local, que estavam sentados quando viram um relâmpago. “Levantaram-se e começaram a juntar as ovelhas para se irem embora com medo, depois viram outro relâmpago, depois viram uma mulher em cima duma carrasqueira, vestida de branco...”
Lúcia falou com a visão (a prima Jacinta viu e ouviu mas não falou, o primo Francisco só viu), que lhe teria dito para voltarem ao mesmo local todos os meses, até Outubro. Lúcia ainda perguntou se a guerra duraria muito – o mundo estava mergulhado na I Grande Guerra, mas a resposta a essa pergunta só viria em Outubro: a guerra acabaria nesse mesmo dia, contaram as crianças, numa versão que mais tarde seria corrigida.
O fenómeno de Fátima acabaria por ter Lúcia como protagonista principal. Ela recebia “uma mensagem especial”, como dizia o padre Joaquin Maria Alonso, que mais tarde viria a ser um dos mais importantes investigadores dos documentos e do processo de Fátima.

Lúcia era a mais nova de sete irmãos (havia mais cinco raparigas e um rapaz). Teve uma “infância de mimos e privilégios, a que não faltaram desgostos e desgraças familiares”, como dizia o padre Alonso. Nas memórias, ela conta o modo como as irmãs e o irmão a disputavam, pois queriam tê-la ao colo, e como se esmeravam em enfeitá-la. Levavam-na também aos bailes da aldeia. E uma das últimas amigas de infância, Maria do Rosário, contava no início do ano 2000 que Lúcia dançava com os companheiros de brincadeira, enquanto o primo tocava pífaro.
Uma das piores desgraças familiares era o alcoolismo do pai: “Meu pai tinha-se deixado arrastar pelas más companhias e tinha caído nos laços duma triste paixão, por causa da qual tínhamos já perdido alguns terrenos”, conta ela nas “Memórias”.

O sol como “uma roda de fogo”

Após o primeiro episódio, a 13 de Maio, sucederam-se visões, uma vez por mês, até Outubro. Durante aqueles meses, as mensagens que Lúcia entendia eram muito simples: rezar o terço, pedir pelos pecadores, interceder por pessoas doentes ou soldados que tinham partido para a frente de combate... Ao mesmo tempo, as pessoas foram dando dinheiro, uma das primeiras peregrinas recolheu e Lúcia quis saber o que fazer com a soma recolhida. “Façam dois andorezinhos pequeninos; um leva-o tu mais três meninas como tu e vão de branco; o outro leva-o o Francisco e mais três meninos como ele; levem uma capa branca, levem-no à Senhora do Rosário e apliquem-no a ela”, pediu a visão.
A 13 de Outubro, para quando estava prometida um sinal “para que todos” acreditassem, alguns milhares de pessoas concentraram-se no lugar, atraídas pela notícia que entretanto começara a circular.
Depois de uma chuva intensa, a tempestade parou. “O Sol começou a desandar, parecia uma roda de fogo, todo à volta, todo à volta, todo à volta, para este lado do poente, e veio à Terra”, contava a amiga Maria do Rosário, num depoimento que se pode ler no livro A Senhora de Maio. “Quando ele veio abaixo, as pessoas tiveram muito medo, porque pensavam que se acabava o mundo, o Sol a descer, a descer. Mas não se acabou, e a Lúcia disse: ‘Não tenham medo que não há novidade, isto é um milagre do Sol.’”


A multidão durante a chuva, antes do "milagre do sol", na foto de Benoliel

Depois dos acontecimentos, Lúcia foi para a escola. “A Senhora”, como ela se referia à aparição, dissera logo na segunda vez (em Junho) para ela aprender a ler. Nessa época, Lúcia não conhecia palavras como Rússia – o tema da conversão da Rússia seria um dos mais repetidos durante décadas, até ao início da década de 1990, depois da queda do Muro de Berlim – a propósito de Fátima e do chamado “segredo”. Entretanto, ela seguiria a vida religiosa, primeiro como religiosa doroteia, depois como carmelita.
O chamado “segredo de Fátima” só muito mais tarde seria revelado por Lúcia. Nas suas Memórias, ela escreveria, em 1941: “Bem; o segredo consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar. A primeira foi, pois, a vista do inferno!” A descrição que Lúcia fazia, a seguir, sobre o que ela e os primos teriam visto corresponde, em grande parte, às palavras que se encontram na Missão Abreviada, livro que, na época, servia como catecismo popular e circulava muito em Portugal. Contava a vidente: “Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas...”
Depois desta visão, Lúcia conta ainda o que ouviu da visão: “Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz.”

A Rússia e o bispo morto pelos soldados

A segunda parte do segredo vinha a seguir e relacionava-se com a Rússia – referência que tão pouco foi feita durante aqueles primeiros meses e só apareceu mais tarde nas novas visões que a religiosa contou ter tido em Tui, quando já estava no convento. Escreve Lúcia nas suas Memórias: “A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior”, escrevia, referindo o início da II Guerra Mundial (Lúcia considerava que a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, foi o início da guerra, quando o Papa era ainda Pio XI).
A estas referências – bem como à questão da linguagem anticomunista – não serão alheias a personalidade do cónego Manuel Formigão, que se tornaria confidente e director espiritual de Lúcia, por muitos considerado “o quarto mensageiro e o ‘apóstolo’ de Fátima”. Na Enciclopédia de Fátima, Jesué Pinharanda Gomes escreve que ele foi “o principal escritor do primeiro período da literatura sobre Fátima, assim como o doutrinador que deu consistência à mensagem que os pastorinhos, por sua cultura e idade, dificilmente conseguiriam pôr em forma discursiva”.
Nas Memórias, e a propósito da guerra, Lúcia acrescentava: “Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o Meu Coração Imaculado triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.”
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim dos regimes comunistas na Europa de Leste, muitos pensaram que estaria cumprida a promessa que Lúcia escutara, em 1917. A própria Lúcia disse, depois desses acontecimentos (mas não antes), que a consagração que o Papa fizera em 1984 teria sido plenamente realizada. A referência ao fim dos “erros da Rússia” tornou-se, entretanto, cada vez mais rara no discurso oficial do Santuário e da própria hierarquia da Igreja.
A terceira parte do segredo seria escrita por Lúcia em 1944, a pedido do bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva. Seria revelada só no ano 2000, durante a última visita do Papa João Paulo II ao santuário. A visão de um “bispo vestido de branco”, que aos pastorinhos parecia o Papa, a subir “uma grande cidade meia em ruínas”, era o centro da visão revelada por Lúcia. Mas era relativa a um tempo em que, na Igreja, se falava ainda do Papa como estando prisioneiro no Vaticano, depois da unificação de Itália e do fim dos Estados Pontifícios, em 1870.
“Chegado ao cimo do monte, prostrado e de joelhos aos pés da grande cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo  uns trás outros os bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares...”, dizia o texto.

Holocausto e paganismo nazi estão ausentes

O documento não fala da perseguição dos regimes ateus contra a Igreja, mas, na interpretação lida pelo cardeal Angelo Sodano em nome do Papa e da Santa Sé, essa era a interpretação correcta dada por Lúcia. Nunca, neste processo e ao longo do século, há qualquer referência de Lúcia ao regime nazi – que o Vaticano considera um regime pagão –, ao Holocausto dos judeus ou, mesmo, à perseguição movida pelos nazis contra tantos cristãos em toda a Europa ocupada.


Crianças judias vítimas da perseguição nazi, acolhidas em Portugal 
(foto reproduzida daqui)

É conhecido que, em 2000, o Papa João Paulo II fez saber que lia no documento  de Lúcia a referência ao atentado que sofrera a 13 de Maio de 1981, na Praça de São Pedro, no Vaticano. No comentário teológico que publicou em Junho de  2000, o cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e futuro Papa Bento XVI, relativizaria essa leitura, falando do segredo como resultado de visões privadas e caracterizando como “razoável” que o Papa tivesse visto nessa descrição o atentado que sofrera. E acrescentava: “A conclusão do ‘segredo’ lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé. É uma visão consoladora, que quer tornar permeável à força santificante de Deus uma história de sangue e de lágrimas.” (O texto do segredo e do comentário teológico ao texto estão disponíveis na página do Vaticano na internet). 
Com a implantação da democracia em Portugal, o Santuário de Fátima tem continuado a atrair milhões de pessoas – são mais de cinco milhões de peregrinos por ano, que fazem dele um dos mais importantes destinos de peregrinação do mundo católico e não só. O sítio agreste deu lugar a um “cais”, como escreve frei Bento Domingues no livro A Religião dos Portugueses, onde reflecte sobre o fenómeno. Um cais onde as pessoas depositam as suas lágrimas e as suas esperanças, à procura da luz.


DAS “COISAS DE CRIANÇAS” À LEGITIMAÇÃO DA IGREJA

Depois das visões dos dias 13, os primeiros 13 anos de Fátima são decisivos na construção do fenómeno; durante os primeiros três anos, os responsáveis eclesiásticos apenas se interessam por averiguar o que ali se passa; rapidamente passam a uma adesão clara. O processo canónico apenas formalizará essa adesão.

No início, pareceu tudo muito simples: em 13 de Maio de 1917, na Cova da Iria, um lugarejo de Fátima, três crianças contaram que viram uma mulher em cima de uma azinheira; vinha “do céu” e viria à terra seis vezes, não garantindo se a Grande Guerra 1914-18 acabaria já ou demoraria ainda muito tempo; prometeu, no entanto, que as duas raparigas (Lúcia e a sua prima, Jacinta) iriam para o céu, mas que o rapaz (Francisco, irmão de Jacinta) teria ainda de rezar as suas “continhas” do rosário.
Dos três, só Lúcia, a mais velha, via, ouvia e falava com a visão. Jacinta via e ouvia, Francisco apenas via o que se passava, mas não ouvia nenhum dos diálogos. João Marto, irmão de Jacinta e Francisco, esteve presente em Agosto num dos episódios das visões – que se repetiu entre Maio e Outubro –, mas não viu nada senão os outros três “virados para uma azinheira” e a prima Lúcia que falava, sem que ele compreendesse o que dizia.
No catolicismo da época, muito voltado para devoções e para uma relação quase mágica com a divindade, o ambiente era propício a acontecimentos do género. Ao mesmo tempo, a guerra e as perseguições da República a membros da Igreja criavam um ambiente de tensão e sofrimento nas populações.
Mesmo assim, as reacções perante o sucedido manifestavam uma grande diversidade: Fátima era uma maquinação do clero ou apenas uma manifestação de crendice; as aparições não eram verdadeiras ou eram uma manifestação divina... No campo republicano, nem todos rejeitariam liminarmente os acontecimentos. Uma das evidências disto mesmo é a reportagem de Avelino de Almeida publicada n’O Século de 15 de Outubro de 1917, que terminava com o jornalista a escrever: “Resta que os competentes digam de sua justiça sobre o macabro bailado do Sol que (...) deixou naturalmente impressionados (...) os livres pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que acorreram”.
O historiador Bruno Cardoso Reis, num artigo na revista História sobre os primeiros 50 anos de Fátima, nota que, mesmo entre os apoiantes de Afonso Costa “não parece ter havido consenso sobre a melhor forma de lidar” com o fenómeno.

Morte, fome e miséria

Certo é que aqueles primeiros anos foram decisivos, mesmo se muito diferentes do que viria a ser a configuração do fenómeno ao longo das décadas seguintes. De tal modo que vários críticos católicos e especialistas passaram a falar de “Fátima I” (o que aconteceu em 1917) e de “Fátima II” (as visões posteriores de Lúcia e as narrativas subsequentes do fenómeno, incluindo o chamado “segredo de Fátima”).
As visões de Fátima surgem no contexto de um ano terrível para o país. Na apresentação do livro A Senhora de Maio, o historiador Fernando Rosas (num texto disponível em áudio no sítio esquerda.net) referia alguns dos acontecimentos que converteram 1917 no annus terribilis” para o regime liderado por Afonso Costa, começando com a ida do Corpo Expedicionário Português para os campos de batalha da Flandres e da França, logo em Janeiro.
Durante os meses seguintes, outros acontecimentos graves se registaram, recordava Rosas: a “revolta da batata” em Maio, vagas de assaltos a mercearias, greves na construção civil e nos bombeiros, uma grande greve dos Correios, com “mortos e centenas de presos”, a “epidemia endémica de tifo nas cidades”, as primeiras mortes de soldados portugueses nas trincheiras.
Era um “pathos de morte, fome e miséria”, resumia o historiador, a que se somou, politicamente, uma ruptura no Partido Democrático, agravando as tensões na liderança do regime. Fernando Rosas fala de um “ambiente propício para o providencialismo salvífico, tanto no plano religioso como no plano político”: os acontecimentos de Fátima, entre Maio e Outubro de 1917, precedem o golpe de Sidónio Paes, em Dezembro. “Mas ambos respondem ao mesmo ambiente providencialista e de salvação nacional”, observa.


Soldados numa trincheira durante a Grande Guerra 1914-18 
(foto reproduzida daqui)

No início, o que se passa em Fátima é olhado de soslaio por muitos membros da hierarquia – quase todos, mesmo. “Entre o final de 1917 e o início de 1920 Fátima fica, de certo modo, entregue a si mesma, pela conjugação de causas eclesiásticas e políticas”, nota Bruno Cardoso Reis no texto já citado.

“Coisas de crianças... eu era um incrédulo”

No livro Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã, publicado no início de Abril, o bispo e historiador Carlos Azevedo divulga documentos dos arquivos do Vaticano que ajudam a perceber o modo como a hierarquia católica (não) olhou para Fátima nos primeiros três ou quatro anos.
Em Abril de 1917, recorda Carlos Azevedo, a Santa Sé já decidira corresponder aos desejos de muitos católicos leirienses, restaurando a diocese de Leiria. A decisão seria concretizada pelo Papa Bento XV em Janeiro de 1918. Mas, em todos os muitos documentos sobre esse processo, “não há a mais leve referência, ainda que implícita, aos acontecimentos da Cova da Iria”, nota o autor.
A escolha do bispo para liderar a diocese restaurada, no entanto, será um processo que se arrastará ainda durante três anos: José Alves Correia da Silva só será nomeado em Fevereiro de 1920, tomando posse em Agosto. Na vasta correspondência trocada entre a Santa Sé e vários bispos portugueses durante o processo de selecção, tão pouco “os acontecimentos de Fátima são chamados ou citados”. Mais: a escolha do nome “em nada foi influenciada previamente pelas visões ocorridas”. O bispo nomeado, aliás, confessaria depois: “Nem sabia ao certo onde ficava Fátima. Coisas de crianças, dizia de mim para mim (...). Em suma: eu era um incrédulo.”
A “absoluta incredulidade” tinha sido também a posição inicial – embora por poucos dias – de outra pessoa que viria a ser chave na construção do fenómeno: o padre Manuel Nunes Formigão, muitas vezes chamado “apóstolo de Fátima” ou “quarto pastorinho” (ver caixa).
É ele um dos padres que, por incumbência do substituto do patriarca, o bispo Lima Vidal, faz os primeiros inquéritos às crianças. Dois anos depois, Formigão recordará no jornal A Guarda, sob o pseudónimo Visconde de Montelo, o que acontecera a 13 de Setembro, quando foi à Cova da Iria: “Não me aproximei do local das aparições”, contava, “e quase que não conversei com ninguém, ficando na estrada a cerca de trezentos metros de distância, e apenas constatei a diminuição da luz solar, que me pareceu um fenómeno sem importância devido porventura à elevada altitude da serra. Continuei, por isso, a manter-me numa prudente mas benévola expectativa, como sucedia desde os acontecimentos de Agosto, porque antes deles esboçava invariavelmente um sorriso de absoluta incredulidade ao ouvir qualquer referência às aparições de Fátima.”

Um vestido decente, até aos pés...

No final desse mês, a 27, o padre regressa à Cova da iria para interrogar os videntes. Dessa vez, ficaria convencido: “Não é verosímil que três crianças de tão tenra idade (...), rudes e ignorantes, mintam e persistam na mentira durante tantos meses”, escreveu ele, no relato que fez dos interrogatórios. Não eram “vítimas de alucinação” nem estariam “iludidas” ou, tão pouco, auto-sugestionadas. Não havia sequer histerismo, “segundo a declaração de um médico consciencioso que as examinou cuidadosamente”.
A única questão que o padre Formigão ainda não conseguia responder era sobre a suposição de uma “intervenção diabólica”, pelo facto de as crianças dizerem que a Senhora tinha um vestido que descia “até um pouco abaixo do meio da perna”. Comentaria o padre, no relato do primeiro interrogatório: “Nossa Senhora não pode, evidentemente aparecer senão o mais decente e modestamente vestida. O vestido deveria descer até perto dos pés. O contrário (...) constitui a dificuldade mais grave a opor à sobrenaturalidade da aparição e faz nascer no espírito o receio de que se trata de uma mistificação.”
Com novas perguntas que ele foi fazendo aos videntes, as crianças foram entendendo posteriormente que, afinal, o vestido descia até aos tornozelos...
Em 1920, com a chegada do bispo à nova diocese, o padre Formigão insiste na criação de uma comissão de averiguação aos acontecimentos. No primeiro encontro entre ambos, em Setembro, o bispo mostra-se “frio e indiferente”. Mas, tal como Formigão, também o bispo mudará rapidamente de opinião pois, no mês seguinte, ordena ao vigário de Ourém, padre Jacinto Ferreira, que compre em seu nome os terrenos da Cova da Iria.
A 10 de Novembro de 1921, Formigão escreve ao bispo, dizendo que é urgente “a organização de um processo episcopal de inquérito” que concluirá seguramente pelo “reconhecimento da sobrenaturalidade dos acontecimentos”.

Cónego Formigão, o quarto pastorinho de Fátima

Na conclusão do seu texto sobre o cónego Manuel Nunes Formigão na “Enciclopédia de Fátima”, o investigador Jesué Pinharanda Gomes não tem dúvidas em concluir: Formigão é “deveras, o quarto mensageiro e o ‘apóstolo’ de Fátima”. Ele viria a tornar-se, acrescenta, “o principal escritor do primeiro período da literatura sobre Fátima, assim como o doutrinador que deu consistência à mensagem que os pastorinhos, por sua cultura e idade, dificilmente conseguiriam pôr em forma discursiva”.


Manuel Nunes Formigão (foto reproduzida daqui)

Alguns acontecimentos terão sido decisivos nesta adesão de Formigão ao fenómeno: em 1909, o padre esteve em Lourdes, entre Julho e Setembro, trabalhando como padre e servita do santuário. Nessa altura, refere o texto citado, “suplicou, aos pés da imagem da gruta [de Lourdes], que lhe concedesse a graça de se tornar ‘um dos mais ardorosos propagandistas do seu culto em Portugal’, fazendo a promessa de se consagrar a essa missão”, segundo uma carta que, em 1930, escreve ao cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa.
Já de regresso a Portugal, Formigão foi para professor do seminário de Santarém (nessa altura parte do patriarcado de Lisboa), tendo ficado também responsável da Sopa dos Pobres da cidade (o “bodo a mil pobres”, como era conhecida), na qual contava com a ajuda de muitos estudantes aos quais dava aulas também no Liceu Sá da Bandeira. Com a instauração da República, o novo administrador do concelho dissolveu a Conferência de São Vicente de Paulo, que dinamizava a Sopa dos Pobres, o que terá ajudado ao seu descontentamento e oposição à República.
Em 1917, o padre Manuel Formigão passou da “absoluta incredulidade” à atitude oposta, depois de interrogar os miúdos e de se convencer da veracidade dos seus testemunhos – mesmo se pouco claros em vários aspectos. Depois de interrogar os pastorinhos, a 27 de Setembro, Formigão achou que estava diante de testemunhos verdadeiros, que nenhuma pressão conseguia demover; e que também nada autorizava deduzir que se estivesse perante qualquer tipo de auto-sugestão, histeria ou alucinação. Só ficava por resolver a questão do tamanho do vestido, que rapidamente os testemunhos das crianças alteraram a partir das sugestões do padre.

Legitimação concluída

Poucos meses antes, em Junho, Lúcia deixara Fátima (Francisco morrera em 1919, Jacinta em 1920, ambos vítimas da pneumónica). Entra, como educanda, no Colégio de Vilar, das Irmãs Doroteias, no Porto. No ano seguinte, o bispo cria a comissão canónica de investigação aos acontecimentos, composta por sete padres – entre os quais Manuel Nunes Formigão.
Apesar de o bispo querer um processo rápido, os trabalhos da comissão arrastam-se. O relatório final, redigido por Formigão e com breves emendas aprovadas pelos restantes membros, é entregue a 13 de Abril de 1930. O investigador José Barreto nota que o texto mostra um processo de carácter “formal e meramente ratificatório”, pois inclui, quase ipsis verbis, vários artigos que o próprio Formigão escrevera ao longo desses 13 anos.
Esse facto é um problema, diz Barreto: “A conjugação, numa só pessoa, para mais usando junto do público duas identidades distintas, da dupla qualidade de principal propagandista e de condutor-relator do processo canónico de averiguações sobre Fátima, não pode, obviamente, deixar de suscitar grandes reservas sobre a seriedade e o rigor do dito processo.”
Entretanto, o relatório não tinha sido necessário para se iniciar a construção do santuário: em 1928, foi lançada a primeira pedra da futura basílica, dois anos depois do golpe militar ter possibilitado à Igreja mais liberdade de acção. Vários bispos tinham já ido a Fátima e, em 1929, Cerejeira é entronizado como cardeal e patriarca de Lisboa. O novo Presidente da República, Óscar Carmona, visita Fátima pela primeira vez.
Bruno Cardoso Reis resume: “Não foi a Igreja institucional que criou Fátima ou que a impôs”, mas “também não é certo dizer que foi Fátima que se impôs à Igreja institucional”, pois a hierarquia poderia ter-se pronunciado contra o sucedido, como defendiam vários católicos de destaque na época. O processo de consolidação passa, nota ainda, “por uma série de decisões” do bispo de Leiria. Em 1930, a legitimação de Fátima está terminada, a canonização do fenómeno virá depois.

Bibliografia
Documentação Crítica de Fátima, vol. I e II; 
Enciclopédia de Fátima, ed. Principia; 
Memórias da Irmã Lúcia, ed. Santuário de Fátima; 
A Senhora de Maio, de António Marujo e Rui Paulo da Cruz, ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores; 
“Fátima nos seus primeiros cinquenta anos”, artigo de Bruno Cardoso Reis na revista História
Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã, de Carlos Azevedo, ed. Esfera dos Livros; 
Religião e Sociedade – Dois Ensaios, de José Barreto, ed. ICS


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