Texto de Ana Cordovil e Jorge Wemans
(no final do
artigo, indicam-se as ligações para várias crónicas sobre o mesmo documento,
escritas por frei Bento Domingues e pelos padres Anselmo Borges, Fernando
Calado Rodrigues e Paulo Terroso)
Falemos então
do Amor.
Desse Amor
que Jesus anunciou como mensagem maior da Vida.
E falemos da
Alegria que todos os homens e mulheres experimentam nas suas relações amorosas.
De modo muito concreto lembremos tantos rostos que de formas tão diversas e
surpreendentes nos ajudam a dizer a Alegria do Amor!
Cabe-nos
agradecer, com respeito e emoção, a coragem de muitos e muitas que enfrentam dificuldades
sem sentido na construção do Amor que querem viver, na família que querem
construir. São estes rostos de coragem que queremos ter, hoje, presentes!
No meu coração, estes rostos têm naturalmente
nomes e histórias que desejava partilhar convosco, mas penso não ter esse
direito.
Somos um
casal que nos demos mutuamente o matrimónio há quase 40 anos e que continuamos
a viver um com o outro. Não nos sentimos em nada melhor que outros que
percorreram caminhos diferentes, ou que devamos ser vistos como exemplo. Até
nos envergonha a possibilidade de olharem para nós como modelo…
Claro que
toda a vida – todas as vidas – é fonte de inspiração, por negação ou simpatia,
para outros. Devemos inspiração, companhia e apoio a muitos casais que vivem
segundo as “regras” da Igreja para a união entre duas pessoas que se amam. Mas,
não menos inspiradores, estimulantes e presença viva de Jesus nas nossas vidas
têm sido outros “casais” apontados como “irregulares”: mães solteiras,
divorciados, gente perdida em processos de doenças diversas com filhos para
cuidar, casais do mesmo sexo, casais apenas com união de facto ou vivendo mesmo
em casas diferentes, recasados...
Na nossa
vida de casal temos tido muitas incertezas no Amor que nos une, mas temos tido
a sorte de encontrar força num Amor maior e generoso que se nos dá e nos guia. Esse
Amor maior está em nós, naturalmente, mas fortalece-se com a Palavra, com a
vida de todos os dias, com a vida comunitária e, como já referimos, cresce
graças àqueles crentes e não crentes que nos têm acompanhado.
Entre estes estão
também as famílias que nos precederam e as que se vão construindo hoje e nos
surpreendem a cada dia como as dos nossos filhos, genros e netos, mas também um
grande número de homens e mulheres que fazem das suas relações diversas de Amor
testemunhos de Alegria.
Neste
contexto, a exortação A Alegria do Amor
é, por várias razões, um ótimo começo de conversa. Nela, o Papa Francisco tenta,
de um modo sincero, franco e aberto, dar nome. Dar nome às coisas e às
situações. E nomear é já um bom começo…
O texto
nomeia homens e mulheres que querem viver o seu Amor com a Alegria do Evangelho
e que são olhados como menores, ou pecadores. Como podemos nós fazer esse
julgamento contra alguém que quer viver o Amor? O Deus que nos ilumina nas
horas mais difíceis e com quem nos alegramos não é
esse Deus julgador que se alimenta da verificação das regras cumpridas, ou por
cumprir.
A Igreja
Católica, em Portugal e em muitos outros países, arrisca pouco na mudança de
atitudes que emergem na sociedade e em vez de liderar um processo, acobarda-se,
tem medo e prefere “conservar” posições em tudo distantes dos homens de hoje.
Por isso
alegramo-nos com o facto de a Exortação insistir repetidamente no princípio de
que a atitude de misericórdia e o discernimento sobre as situações concretas
são sempre superiores à aplicação da norma geral. Ou que as intervenções do
magistério não podem resolver todas as discussões morais, doutrinais ou
pastorais. E que cabe às igrejas e aos pastores locais desenharem as melhores
práticas para se aproximarem de todos, ouvirem-nos, integrá-los e acompanhá-los.
Alguns exemplos: nºs 3; 36 a 38; 77 a 79; 238; 241 a 252; todo o capítulo VIII.
Na minha vida tive a sorte de ter uma
educação que me abriu o coração ao Amor infinito de Deus e a procurar viver com
princípios que se baseiam sobretudo na defesa dos mais esquecidos. Eu e o Jorge
procurámos sempre na nossa vida de casal partilhar o que tínhamos e foi assim
que educámos os nossos filhos. Lembro-me de lhes dizer que “não te quero com
boas notas para seres o melhor, quero que partilhes os dons que tens com quem
precisar mais e que te esteja próximo”.
Aprendi na vida a escutar e a aprender com
quem num primeiro encontro desdenhei. A construção de uma sociedade mais justa
e mais fraterna depende em boa parte desta atitude. Tenho pena de na minha vida
nem sempre ter dado mais atenção a quem me está próximo. São momentos que não
vou esquecer porque me envergonham!
Por isto tudo, fico muito magoada quando vejo
a Igreja dar mais atenção a normas do que a acolher as pessoas concretas nas
suas situações reais.
Devíamos, enquanto cristãos e enquanto
comunidades, construir mais diálogo e evitar julgar sem conhecer a diversidade
do Amor. Devemos manter o nosso coração aberto para aceitar que o mundo dos
homens terá ainda muitas evoluções na sua capacidade de organizar e festejar o
Amor.
Espero sinceramente que esta Exortação
empurre a Igreja para percorrer um caminho de maior abertura e atenção aos
diferentes percursos na procura do amor e da construção de família. Para
reconhecer a dignidade e os valores que essas procuras encerram e anunciam.
Para discernir quanto de Jesus nos é por elas revelado. O amor na família,
aquele que saboreamos quando, para além de qualquer dúvida ou razão, o nosso
coração sabe e sente que amamos e somos amadas, esse amor na família
oferece-nos a alegria de confiarmos em que assim será.
Sobre “a
especialidade”, se assim podemos dizer, gostávamos de sublinhar três aspetos
específicos que a leitura da Exortação nos suscitou.
1)
O sacramento
do matrimónio.
Embora apenas cinco números sejam dedicados ao
sacramento há muito mais referências a ele ao longo da Exortação. Lendo e
relendo, fica-nos a certeza de que temos muito para desbravar na atualização da
reflexão teológica sobre o matrimónio. Não apenas ao nível da linguagem usada
para o tornar minimamente inteligível, como quanto ao entendimento eclesial da
sua essencialidade.
Quanto ao caráter indissolúvel do matrimónio,
é claro que a Exortação não poderia vir suspender o direito canónico. Mas
poderia conter vias mais ricas para refletir sobre a indissolubilidade do que
reforçar a via legalista de que muitos matrimónios afinal não são válidos
porque não o foram no momento em que os noivos os celebraram. Verdade que
também neste ponto é feito um forte apelo para que os pastores e as igrejas
locais acompanhem as situações concretas e as avaliem, discernindo sobre elas
com coração misericordioso….
Apesar de toda a atenção pastoral que é
pedida para com os casos concretos, do entendimento da indissolubilidade faz-se
decorrer a exclusão dos recasados da mesa da eucaristia. Exclusão que, salvo
raríssimos casos, concretiza, a nosso ver, um exercício exorbitante de impor
uma regra eclesial sobre a misericórdia de Deus. E isto apesar de, por outro
lado, o texto referir com veemência (nº186) que não são dignos da comunhão
todos os que “consentem diferentes formas de divisão, desprezo e injustiça”
sobre terceiros.
Cabe perguntar com um pouco de humor: será
que as dificuldades da reflexão teológica sobre o matrimónio nascem do facto de
este ser o único sacramento obrigatoriamente ministrado por uma mulher?
Em qualquer caso, a linguagem, a aproximação
e a atenção a estas realidades é muito diferente do modo como eram tratadas na Familiaris Consortio de há 35 anos, em
que João Paulo II se detinha longamente sobre elas, qualificando-as “de praga
que vai, juntamente com as outras, afectando sempre mais largamente mesmo os
ambientes católicos”.
Também muito significativo nos parece o facto
de existirem apenas três referências à Humane
Vitea, na mais significativa das quais se recorda o que Paulo VI escrevia
quanto à necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos
métodos de regulação da natalidade. O que se compagina com uma única referência
à contraceção quando se condena com veemência as políticas coercivas de alguns
Estados neste campo. Contraste nítido com a importância conferida na Familiaris Consortio à denúncia da
mentalidade contracetiva e à proposta “da doutrina autêntica sobre a regulação
da natalidade”.
2)
O
entendimento e a valorização da sexualidade.
Ao longo de um texto com quase 60 mil
palavras dedicado ao amor na família, a palavra “sexual” aparece menos de 70
vezes (ou seja, pouco mais de uma vez em cada mil palavras). É pouco. E o que
está escrito não é muito conforme ao amor. Nem conforme ao que na própria
Exortação se escreve: “um amor sem prazer nem paixão” revela-se “insuficiente
para simbolizar a união do coração humano com Deus.”
À importância dos desejos, emoções e
sentimentos, da sexualidade e da paixão no matrimónio, incluindo a dimensão
erótica do amor, são dedicados 16 números (142 a 157). Neles, junto a
perspetivas inspiradoras, surgem nada menos do que oito avisos, oito. E a
sequência fecha com esta afirmação em jeito de nono e último alerta “(..)
sempre permanece algo que resiste a ser humanizado e que , a qualquer momento,
nos pode fugir da mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas
e egoístas”. Com pinças, meninos, com pinças!...
Tanta gente, ao longo de tanto tempo, (pelo
menos os últimos sessenta anos) a meditar, refletir e aprofundar sobre o
sentido salvífico da sexualidade, o seu lugar como revelação do Homem enquanto
ser tocado pelo outro… enfim, merecíamos uma outra valorização da sexualidade. Assim
como podíamos esperar mais em termos do olhar sobre a realidade dos casais do
mesmo sexo, embora – vá lá!... – nunca se refira a homossexualidade enquanto
doença.
3)
A riqueza
das reflexões e proposições da Exortação.
Além do que já referimos quanto à importância
do discernimento perante as situações concretas, a Exortação comporta, por
exemplo, uma belíssima reflexão sobre o texto de 1Cor 13, 4-7 tantas vezes
presente nas celebrações do matrimónio. Embora São Paulo não o tenha escrito a
pensar no casal, mas sim no amor fraternal, este texto é tantas vezes lido na
liturgia dos casamentos que é ótimo os senhores padres poderem ter à mão uma
lindíssima e inspiradora glosa deste texto feita pelo Papa Francisco. Sempre se
poupam algumas homílias sensaboronas e fora de contexto.
Por outro lado, em vários números e a
propósito de diversos temas, a igualdade do homem e da mulher é repetidamente
afirmada de modo assertivo e definitivo, sem “ses” nem “mas”. Pode parecer
irrelevante, mas não é. Sobretudo num mundo em que a igualdade de género ainda
tem tanto a andar para se tornar realidade efetiva.
Finalmente: o grande repto desta exortação
encontra-se sintetizado no seu número 312: “(…) Isto fornece-nos um quadro e um
clima que nos impedem de desenvolver uma moral fria de escritório quando nos
ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto de um
discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para
compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar.”
É este o programa que a Exortação propõe.
Lisboa, 21 de maio 2016
Este texto serviu de base para o debate
havido no Convento de São Domingos, em Lisboa, promovido pelo movimento Nós
Somos Igreja.
(Sobre a Amoris Laetitia, podem ler-se ainda três crónicas de frei Bento Domingues, publicadas
no Público a 17 de Abril, 24 de Abril e 1 de Maio;
Fernando Calado Rodrigues escreveu sobre o
tema a 15 de Abril e Paulo Terroso debruçou-se sobre o mesmo
documento a 22 de Abril.
Pode ainda ler-se, aqui, o comunicado do movimento Nós Somos Igreja
acerca do documento do Papa.)
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