(Excertos do meu texto de
introdução ao livro de fotografias Fátima
– Enquanto Houver Portugueses, que será por mim apresentado este sábado, 1 de Abril, às 17h, na Cordoaria Nacional, em
Lisboa, no âmbito da exposição antológica do fotógrafo que ali se pode
visitar.)
Rostos, expressões, sentimentos,
experiências. Vidas vividas.
Desde que comecei a tentar
perscrutar o que atrai tanta gente a Fátima, as pessoas e as suas vidas são uma
das razões para eu próprio me aproximar do mistério. Ainda mais porque,
enquanto crente e cristão (já tentarei explicar o que pode caber nestas
expressões), não acredito que a mãe de Jesus apareça fisicamente em cima de
azinheiras ou em outros locais. Aceito, no entanto, que, na sua busca
espiritual, haja pessoas que acreditam nessa experiência enquanto realidade e
acabem por descobrir o sagrado dentro de si mesmas.
São estas pessoas, e é este
sagrado, que nos falam nas fotos de Alfredo Cunha reunidas neste álbum. (...)
Adivinham-se, aliás, expressões,
sentimentos, experiências e vidas muito diversas. Seja o pai que vai de joelhos
levando o seu bebé ao colo, as jovens que se abraçam, as pessoas que
carregam ou mostram imagens religiosas
como quem exibe uma senha de identidade, a partilha do fogo de uma vela, ou os
momentos de descanso, mesmo no meio das celebrações litúrgicas. Ou, ainda, a
comoção e a profundidade do olhar durante as procissões das velas e do adeus,
esteticamente únicas e belíssimas (...), e que são dois momentos que redimem em
absoluto o mau gosto de grande parte da iconografia que à volta do fenómeno se
pode encontrar.
Ao longo de décadas, têm sido
estas pessoas, milhões de rostos assim, a construir Fátima. Desde o início do
fenómeno, em 1917, quando três crianças, guardadoras de rebanhos, contaram ter
visto a mãe de Jesus, numa experiência espiritual que espelhava o que era
vivido no tempo. A partir do que era a prática católica da época, elas
construíram – sobretudo Lúcia, a mais velha – uma narrativa que remetia para a
importância e a perpetuação das devoções, linguagem e espiritualidade do tempo.
Não será por acaso, por exemplo,
que o texto da chamada terceira parte do “segredo” fala de espadas de fogo,
perseguições ao santo padre e de um grupo de soldados que mata o Papa. Há cem
anos, ainda se vivia na ideia de que este estava “prisioneiro” no Vaticano, em
protesto contra o fim dos Estados pontifícios, em 1870, e a unificação
italiana. No seu texto – escrito só em 1944 e “por ordem” do bispo de Leiria,
D. José Alves Correia da Silva –, Lúcia acaba por assumir expressões
semelhantes às que se usavam na época, e que caracterizavam Garibaldi e o rei
Vittorio Emanuele como inimigos da Santa Sé e dos Estados Pontifícios.
No mesmo documento, a vidente fala
ainda da oração do terço, da devoção ao Coração de Maria ou da comunhão nos
primeiros sábados de cada mês. Também essas práticas devocionais eram muito
observadas no tempo. Seria natural, assim, que as crianças ou, no caso, Lúcia
já adulta, falasse do que viviam para dizer como era importante a oração e a
relação de cada pessoa com Deus.
A ideia e a descrição do inferno
tem a ver também com o que então se ouvia. Um pequeno livro de doutrina,
intitulado Missão Abreviada, falava
do inferno exactamente com os mesmos termos com que Lúcia o viria a fazer no
seu texto acerca do segredo. Por coincidência, o mesmo Papa João Paulo II que
viria a interpretar o texto do segredo como sendo relativo ao atentado por si
sofrido em 1981, viria a afirmar, em 1999, que o inferno não é um lugar físico,
mas se relaciona com o facto de a pessoa se afastar de
Deus. (...)
Politicamente, Fátima edificou-se
ainda, durante as décadas de 1930-1970, coincidentes com o regime ditatorial do
Estado Novo, com as críticas à Rússia, como símbolo do comunismo e do ateísmo
militante. Também este tema só apareceu a partir de 1929, com as referências de
Lúcia na segunda parte do “segredo”, onde se ligavam os “erros” que aquele país
espalharia pelo mundo à (insuficiente) devoção ao Imaculado Coração de Maria.
Para evitar novas guerras e conseguir a “conversão” da Rússia, o Papa deveria
consagrar o mundo ao Coração de Maria. Em 1984, o Papa João Paulo II fez essa
consagração, mas só quinze anos depois, em 1989, quando no Leste já desabavam
os regimes comunistas, Lúcia disse que ela tinha sido plenamente realizada.
A esta construção política também
não foi alheia a vida das pessoas que acorriam a Fátima. Não por acaso, ali
tanto se assumia o discurso anticomunista que ligava a mensagem aos “erros da
Rússia”, como se denunciava implicitamente a guerra colonial, com os soldados
que chegavam ao santuário, fardados, agradecendo à Virgem o facto de terem
regressado salvos de Angola, Guiné-Bissau ou Moçambique.
Essa relação de Fátima com a
questão da guerra e da paz tem um símbolo iconograficamente intenso na
penúltima foto do livro, com os soldados da Academia Militar ladeando uma
menina vestida de Nossa Senhora. E não seria por acaso que, em 13 de Maio de
1967, nos 50 anos dos acontecimentos, o Papa Paulo VI foi ao santuário para
“pedir a paz” para o mundo, no que seria uma afirmação decisiva para a
revalorização da mensagem de paz que o discurso de Fátima também continha.
Peregrinar – ou como viver o
inesperado
Desde há muito que entendo que a
religiosidade popular deve ser revalorizada e recriada. Também aquela que se vê
em Fátima e se pode reconhecer em muitas das fotos deste livro – que tão bem
nos revelam a intensidade, por vezes a rigidez, por vezes a profunda
subjectividade dessas práticas, ainda mais num contraste por vezes forte com a
modernidade da nova arquitectura de Fátima, de que a Basílica da Santíssima
Trindade, o seu pórtico e a Cruz Alta são exemplos.
Essa revalorização pode começar
pela ideia da peregrinação, ela mesma uma síntese da própria vida. Uma e outra
são feitas de momentos de partida, de entusiasmo, de desânimos e fadigas, de
recomeços e alegrias, dores, partilhas e chegadas... (...)
Hoje como antes, a peregrinação não é apenas
um fenómeno do povo mais simples, mais pobre ou mais literariamente inculto –
mesmo se, muitas vezes, são esses os rostos mais repetidos nas imagens que se
reproduzem; ela atravessa todos os sectores sociais e económicos e manifesta-se
das mais diversas formas. A peregrinação é uma experiência de quem se aventura
em direcção ao que é estranho e desconhecido.
A peregrinação é um convite a viver o
inesperado, mesmo se esse inesperado se confunde, por vezes, com aquilo que
cada um espera ou deseja para si ou para outros. As mãos postas, os rostos
concentrados sobre si mesmos que podemos ver tantas vezes ou a face aberta em
espanto entre as mãos (...) são um reflexo dessa abertura, que esteve sempre
tão presente ao longo da história religiosa da humanidade. E que continua
presente na busca espiritual, no desejo de encontrar sentidos e saídas para
tantos caminhos que parecem bloqueados. Escrevia o irmão Roger, de Taizé: “Para
quem arrisca toda a sua vida não há caminhos sem saída. Podemos ter renunciado
a Cristo, mas Ele não renunciou a nós. Pensamos tê-lo esquecido, mas Ele estava
aqui. Então retomamos o caminho e recomeçamos. Ele está presente. Aqui está o
imprevisto, aqui está o inesperado.”
(...) o ir a Fátima será, para muitas pessoas,
uma ocasião de saciar essa sede espiritual, de se fortalecer perante as agruras
da vida ou de agradecer um gesto ou um acontecimento. Tal como o Papa João
Paulo II dizia, em 1986, quando passou pela comunidade de monges de Taizé
(França) e disse, a propósito da ida, ali, de tantos jovens do mundo inteiro: “Passa-se
por Taizé como se passa perto de uma fonte. O viajante pára, mata a sede e
continua o seu caminho. Os irmãos da comunidade, como sabeis, não querem
deter-vos. Querem, na oração e no silêncio, permitir-vos que bebais a água viva
prometida por Cristo, que conheçais a sua alegria, que reconheçais a sua
presença, que respondais ao seu chamamento, e depois que torneis a partir para
dar testemunho do seu amor e servir os vossos irmãos nas vossas paróquias, nas
vossas cidades e aldeias, nas vossas escolas, nas vossas universidades e em
todos os vossos locais de trabalho.”
O cais dos portugueses, a plenitude que abraça
terra e céu
Foi por todas estas razões – a
protecção que cada pessoa sente naquele lugar, a busca espiritual, a gratidão e
muitas outras – que frei Bento Domingues já se referiu a Fátima várias vezes
como “o cais dos portugueses”. Se Fátima perdura, dizia ele numa entrevista, “é
porque responde a qualquer apelo da alma nacional”. E acrescentava: “O
antropólogo Jorge Dias dizia que, «para o português, o coração é a medida de
todas as coisas». Isto parece-me bem evocado em algumas manifestações de
Fátima. Pelo menos desde o século XV, andamos sempre a despedir-nos, a dizer
adeus. Nesse sentido, a Procissão do Adeus é a evocação simbólica desse
fenómeno da nossa história. Todos estão sempre a despedir-se de alguém. Não é
propriamente a despedir-se de Nossa Senhora. Ao mesmo tempo é engraçado:
durante a missa, anda tudo de um lado para outro, tudo mexe, ninguém tem
sossego. Começa o «Adeus» e pára tudo! Os pais põem os garotos às cavalitas
também com lenços e, de repente, tudo parou. O barco vai partir. É algo
absolutamente impressionante! Também a Procissão das Velas, sob o ponto de
vista da beleza, é admirável: aquela esplanada enorme, toda em luz, é algo
incomparável e emocionante. Nunca podemos desligar a religião da emoção. As
emoções devem ser transmudadas sob o ponto de vista estético, mas é para serem
potenciadas, não anuladas. E em Fátima, esses dois momentos exprimem algo da
nossa alma colectiva.”
Esta expressão da “alma
portuguesa” pode encontrar-se também no canto que diz que “enquanto houver
portugueses, tu serás o seu amor”, numa invocação da Virgem, que Alfredo Cunha
quis recuperar para título deste álbum.
A expressão plural deve incluir,
aqui, a singularidade de cada pessoa. Porque, em Fátima, mesmo se é de uma
multidão que quase sempre se fala, é cada pessoa que conta. É cada um ou uma
que está ali por uma razão muito concreta, por vezes muito sofrida, outras
vezes jubilosa, mas sempre uma razão íntima, pessoal, bem determinada. A
relação com Deus – ou a intermediação da Virgem, mesmo se nem sempre a
destrinça é muito clara – é uma questão da intimidade pessoal. Cada um sabe de
si e Deus sabe de todos, diz a expressão popular. Essa relação é bem traduzida
numa frase de um outro cântico: “Meu Deus eu creio, adoro, espero e amo-vos” (
e cuja segunda parte quase deveria ser corrigida para “peço-vos perdão quando
eu não creio, não adoro, não espero e não vos amo”, em vez do pretensioso
“peço-vos perdão para os que não crêem...”).
(...) ao longe, a Cruz Alta, obra
de Robert Schad. Todos aqueles rostos e corpos, mesmo se voltados de costas
para a cruz, não fazem mais do que repetir o gesto que ela consagra: o
despojamento, a entrega total, o pedido de socorro e a ajuda, a plenitude que
abraça terra e céu e que a todos abarca numa relação desarmada...
Sem comentários:
Enviar um comentário