sábado, 1 de abril de 2017

Vidas vividas

(Excertos do meu texto de introdução ao livro de fotografias Fátima – Enquanto Houver Portugueses, que será por mim apresentado este sábado, 1 de Abril, às 17h, na Cordoaria Nacional, em Lisboa, no âmbito da exposição antológica do fotógrafo que ali se pode visitar.)



Rostos, expressões, sentimentos, experiências. Vidas vividas.
Desde que comecei a tentar perscrutar o que atrai tanta gente a Fátima, as pessoas e as suas vidas são uma das razões para eu próprio me aproximar do mistério. Ainda mais porque, enquanto crente e cristão (já tentarei explicar o que pode caber nestas expressões), não acredito que a mãe de Jesus apareça fisicamente em cima de azinheiras ou em outros locais. Aceito, no entanto, que, na sua busca espiritual, haja pessoas que acreditam nessa experiência enquanto realidade e acabem por descobrir o sagrado dentro de si mesmas.
São estas pessoas, e é este sagrado, que nos falam nas fotos de Alfredo Cunha reunidas neste álbum. (...)
Adivinham-se, aliás, expressões, sentimentos, experiências e vidas muito diversas. Seja o pai que vai de joelhos levando o seu bebé ao colo, as jovens que se abraçam, as pessoas que carregam  ou mostram imagens religiosas como quem exibe uma senha de identidade, a partilha do fogo de uma vela, ou os momentos de descanso, mesmo no meio das celebrações litúrgicas. Ou, ainda, a comoção e a profundidade do olhar durante as procissões das velas e do adeus, esteticamente únicas e belíssimas (...), e que são dois momentos que redimem em absoluto o mau gosto de grande parte da iconografia que à volta do fenómeno se pode encontrar.
Ao longo de décadas, têm sido estas pessoas, milhões de rostos assim, a construir Fátima. Desde o início do fenómeno, em 1917, quando três crianças, guardadoras de rebanhos, contaram ter visto a mãe de Jesus, numa experiência espiritual que espelhava o que era vivido no tempo. A partir do que era a prática católica da época, elas construíram – sobretudo Lúcia, a mais velha – uma narrativa que remetia para a importância e a perpetuação das devoções, linguagem e espiritualidade do tempo.
Não será por acaso, por exemplo, que o texto da chamada terceira parte do “segredo” fala de espadas de fogo, perseguições ao santo padre e de um grupo de soldados que mata o Papa. Há cem anos, ainda se vivia na ideia de que este estava “prisioneiro” no Vaticano, em protesto contra o fim dos Estados pontifícios, em 1870, e a unificação italiana. No seu texto – escrito só em 1944 e “por ordem” do bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva –, Lúcia acaba por assumir expressões semelhantes às que se usavam na época, e que caracterizavam Garibaldi e o rei Vittorio Emanuele como inimigos da Santa Sé e dos Estados Pontifícios.

No mesmo documento, a vidente fala ainda da oração do terço, da devoção ao Coração de Maria ou da comunhão nos primeiros sábados de cada mês. Também essas práticas devocionais eram muito observadas no tempo. Seria natural, assim, que as crianças ou, no caso, Lúcia já adulta, falasse do que viviam para dizer como era importante a oração e a relação de cada pessoa com Deus.
A ideia e a descrição do inferno tem a ver também com o que então se ouvia. Um pequeno livro de doutrina, intitulado Missão Abreviada, falava do inferno exactamente com os mesmos termos com que Lúcia o viria a fazer no seu texto acerca do segredo. Por coincidência, o mesmo Papa João Paulo II que viria a interpretar o texto do segredo como sendo relativo ao atentado por si sofrido em 1981, viria a afirmar, em 1999, que o inferno não é um lugar físico, mas se relaciona com o facto de a pessoa se afastar de Deus. (...)
Politicamente, Fátima edificou-se ainda, durante as décadas de 1930-1970, coincidentes com o regime ditatorial do Estado Novo, com as críticas à Rússia, como símbolo do comunismo e do ateísmo militante. Também este tema só apareceu a partir de 1929, com as referências de Lúcia na segunda parte do “segredo”, onde se ligavam os “erros” que aquele país espalharia pelo mundo à (insuficiente) devoção ao Imaculado Coração de Maria. Para evitar novas guerras e conseguir a “conversão” da Rússia, o Papa deveria consagrar o mundo ao Coração de Maria. Em 1984, o Papa João Paulo II fez essa consagração, mas só quinze anos depois, em 1989, quando no Leste já desabavam os regimes comunistas, Lúcia disse que ela tinha sido plenamente realizada.
A esta construção política também não foi alheia a vida das pessoas que acorriam a Fátima. Não por acaso, ali tanto se assumia o discurso anticomunista que ligava a mensagem aos “erros da Rússia”, como se denunciava implicitamente a guerra colonial, com os soldados que chegavam ao santuário, fardados, agradecendo à Virgem o facto de terem regressado salvos de Angola, Guiné-Bissau ou Moçambique.
Essa relação de Fátima com a questão da guerra e da paz tem um símbolo iconograficamente intenso na penúltima foto do livro, com os soldados da Academia Militar ladeando uma menina vestida de Nossa Senhora. E não seria por acaso que, em 13 de Maio de 1967, nos 50 anos dos acontecimentos, o Papa Paulo VI foi ao santuário para “pedir a paz” para o mundo, no que seria uma afirmação decisiva para a revalorização da mensagem de paz que o discurso de Fátima também continha.

Peregrinar – ou como viver o inesperado

Desde há muito que entendo que a religiosidade popular deve ser revalorizada e recriada. Também aquela que se vê em Fátima e se pode reconhecer em muitas das fotos deste livro – que tão bem nos revelam a intensidade, por vezes a rigidez, por vezes a profunda subjectividade dessas práticas, ainda mais num contraste por vezes forte com a modernidade da nova arquitectura de Fátima, de que a Basílica da Santíssima Trindade, o seu pórtico e a Cruz Alta são exemplos.
Essa revalorização pode começar pela ideia da peregrinação, ela mesma uma síntese da própria vida. Uma e outra são feitas de momentos de partida, de entusiasmo, de desânimos e fadigas, de recomeços e alegrias, dores, partilhas e chegadas... (...)
Hoje como antes, a peregrinação não é apenas um fenómeno do povo mais simples, mais pobre ou mais literariamente inculto – mesmo se, muitas vezes, são esses os rostos mais repetidos nas imagens que se reproduzem; ela atravessa todos os sectores sociais e económicos e manifesta-se das mais diversas formas. A peregrinação é uma experiência de quem se aventura em direcção ao que é estranho e desconhecido.
A peregrinação é um convite a viver o inesperado, mesmo se esse inesperado se confunde, por vezes, com aquilo que cada um espera ou deseja para si ou para outros. As mãos postas, os rostos concentrados sobre si mesmos que podemos ver tantas vezes ou a face aberta em espanto entre as mãos (...) são um reflexo dessa abertura, que esteve sempre tão presente ao longo da história religiosa da humanidade. E que continua presente na busca espiritual, no desejo de encontrar sentidos e saídas para tantos caminhos que parecem bloqueados. Escrevia o irmão Roger, de Taizé: “Para quem arrisca toda a sua vida não há caminhos sem saída. Podemos ter renunciado a Cristo, mas Ele não renunciou a nós. Pensamos tê-lo esquecido, mas Ele estava aqui. Então retomamos o caminho e recomeçamos. Ele está presente. Aqui está o imprevisto, aqui está o inesperado.”
(...) o ir a Fátima será, para muitas pessoas, uma ocasião de saciar essa sede espiritual, de se fortalecer perante as agruras da vida ou de agradecer um gesto ou um acontecimento. Tal como o Papa João Paulo II dizia, em 1986, quando passou pela comunidade de monges de Taizé (França) e disse, a propósito da ida, ali, de tantos jovens do mundo inteiro: “Passa-se por Taizé como se passa perto de uma fonte. O viajante pára, mata a sede e continua o seu caminho. Os irmãos da comunidade, como sabeis, não querem deter-vos. Querem, na oração e no silêncio, permitir-vos que bebais a água viva prometida por Cristo, que conheçais a sua alegria, que reconheçais a sua presença, que respondais ao seu chamamento, e depois que torneis a partir para dar testemunho do seu amor e servir os vossos irmãos nas vossas paróquias, nas vossas cidades e aldeias, nas vossas escolas, nas vossas universidades e em todos os vossos locais de trabalho.”

O cais dos portugueses, a plenitude que abraça terra e céu



Foto © Alfredo Cunha 

Foi por todas estas razões – a protecção que cada pessoa sente naquele lugar, a busca espiritual, a gratidão e muitas outras – que frei Bento Domingues já se referiu a Fátima várias vezes como “o cais dos portugueses”. Se Fátima perdura, dizia ele numa entrevista, “é porque responde a qualquer apelo da alma nacional”. E acrescentava: “O antropólogo Jorge Dias dizia que, «para o português, o coração é a medida de todas as coisas». Isto parece-me bem evocado em algumas manifestações de Fátima. Pelo menos desde o século XV, andamos sempre a despedir-nos, a dizer adeus. Nesse sentido, a Procissão do Adeus é a evocação simbólica desse fenómeno da nossa história. Todos estão sempre a despedir-se de alguém. Não é propriamente a despedir-se de Nossa Senhora. Ao mesmo tempo é engraçado: durante a missa, anda tudo de um lado para outro, tudo mexe, ninguém tem sossego. Começa o «Adeus» e pára tudo! Os pais põem os garotos às cavalitas também com lenços e, de repente, tudo parou. O barco vai partir. É algo absolutamente impressionante! Também a Procissão das Velas, sob o ponto de vista da beleza, é admirável: aquela esplanada enorme, toda em luz, é algo incomparável e emocionante. Nunca podemos desligar a religião da emoção. As emoções devem ser transmudadas sob o ponto de vista estético, mas é para serem potenciadas, não anuladas. E em Fátima, esses dois momentos exprimem algo da nossa alma colectiva.”
Esta expressão da “alma portuguesa” pode encontrar-se também no canto que diz que “enquanto houver portugueses, tu serás o seu amor”, numa invocação da Virgem, que Alfredo Cunha quis recuperar para título deste álbum.
A expressão plural deve incluir, aqui, a singularidade de cada pessoa. Porque, em Fátima, mesmo se é de uma multidão que quase sempre se fala, é cada pessoa que conta. É cada um ou uma que está ali por uma razão muito concreta, por vezes muito sofrida, outras vezes jubilosa, mas sempre uma razão íntima, pessoal, bem determinada. A relação com Deus – ou a intermediação da Virgem, mesmo se nem sempre a destrinça é muito clara – é uma questão da intimidade pessoal. Cada um sabe de si e Deus sabe de todos, diz a expressão popular. Essa relação é bem traduzida numa frase de um outro cântico: “Meu Deus eu creio, adoro, espero e amo-vos” ( e cuja segunda parte quase deveria ser corrigida para “peço-vos perdão quando eu não creio, não adoro, não espero e não vos amo”, em vez do pretensioso “peço-vos perdão para os que não crêem...”).

(...) ao longe, a Cruz Alta, obra de Robert Schad. Todos aqueles rostos e corpos, mesmo se voltados de costas para a cruz, não fazem mais do que repetir o gesto que ela consagra: o despojamento, a entrega total, o pedido de socorro e a ajuda, a plenitude que abraça terra e céu e que a todos abarca numa relação desarmada...

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