“O amor não admite álibis: quem
pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo, sobretudo quando
somos chamados a amar os pobres.” Esta é uma das afirmações centrais da
mensagem do Papa Francisco para o I Dia Mundial dos Pobres, por ele instituído na
carta Misericordia et misera, com que assinalou o final do ano
da misericórdia, em Novembro de 2016.
(foto reproduzida daqui)
O texto é significativamente
datado de ontem, 13 de Junho, memória de Santo António, e o título – “Não amemos com
palavras, mas com obras” – é retirado da primeira carta de São João: “Meus
filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com
verdade”. E, ao recordá-la, o Papa sugere que “a misericórdia, que brota por
assim dizer do coração da Trindade, pode chegar a pôr em movimento a nossa vida
e gerar compaixão e obras de misericórdia em prol dos irmãos e irmãs que se
encontram em necessidade”.
No documento, o Papa insiste no
“escândalo” da pobreza, pede uma “nova visão da vida e da sociedade”, diz que
os pobres “não são um problema” mas antes um recurso para “acolher e viver a
essência do Evangelho”, aponta sugestões concretas para viver o Dia Mundial e
apresenta o Pai Nosso como uma oração que implica “partilha, comparticipação e
responsabilidade comum”.
A data escolhida pelo Papa para
este Dia Mundial dos Pobres é o XXXIII Domingo do tempo comum (o penúltimo do
ano litúrgico), que este ano cairá a 19 de Novembro. Com a sua instituição, o
Papa pretende “estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à
cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro”. Mas
também quer que “todos, independentemente da sua pertença religiosa”, se abram “à
partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto
de fraternidade”. E acrescenta: “Deus criou o céu e a terra para todos; foram
os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o
dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão.”
Aos problemas colocados pela
pobreza e pela existência de pobres “é preciso responder com uma nova visão da
vida e da sociedade”, escreve o Papa na mensagem. “Causa escândalo a extensão
da pobreza a grandes sectores da sociedade no mundo inteiro. Perante este
cenário, não se pode permanecer inerte e, menos ainda, resignado”, escreve o
Papa.
O fenómeno da pobreza, acrescenta,
descrevendo realidades concretas, “interpela-nos todos os dias com os seus
inúmeros rostos vincados pelo sofrimento, a marginalização, a opressão, a
violência, as torturas e a prisão, pela guerra, a privação da liberdade e da
dignidade, pela ignorância e o analfabetismo, pela emergência sanitária e a
falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e a escravidão, pelo exílio e a
miséria, pela migração forçada”. A pobreza tem, ainda, “o rosto de mulheres,
homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas
perversas do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco
que se é constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social,
da miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!”
Para dar um “contributo eficaz
para a mudança da história, gerando verdadeiro desenvolvimento, é necessário
escutar o grito dos pobres e comprometermo-nos a erguê-los do seu estado de
marginalização”. Mas os pobres não ficam de fora dos apelos do Papa: eles não
devem perder “o sentido da pobreza evangélica que trazem impresso na sua vida”.
Lembrando as primeiras comunidades
cristãs e os relatos dos Actos dos Apóstolos, Francisco diz que o “serviço aos
pobres” constitui “um dos primeiros sinais com que a comunidade cristã se
apresentou no palco do mundo”. Só possível porque os primeiros cristãos
compreenderam que a sua vida, enquanto discípulos de Jesus, “se devia exprimir
numa fraternidade e numa solidariedade tais que correspondesse ao ensinamento
principal do Mestre que tinha proclamado os
pobres bem-aventurados e herdeiros do Reino dos céus
(cf. Mt 5, 3)”.
“Encontrá-los, fixá-los nos olhos,
abraçá-los”
A atenção aos pobres deve ser
feita de atenção a cada pessoa concreta. “Continuam a ressoar de grande
atualidade estas palavras do santo bispo Crisóstomo: ‘Queres honrar o corpo de
Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres
que não têm que vestir, nem O honres aqui no tempo com vestes de seda, enquanto
lá fora O abandonas ao frio e à nudez’”, escreve o Papa, para concluir: “somos
chamados a estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos,
abraçá-los, para lhes fazer sentir o calor do amor que rompe o círculo da
solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas
certezas e comodidades e a reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si
mesma.”
Os pobres não devem ser olhados
apenas como “destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma
vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr
a consciência em paz”, exemplifica ainda o Papa argentino. “Estas experiências,
embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos
irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir
a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a
uma partilha que se torne estilo de vida. Na verdade, a oração, o
caminho do discipulado e a conversão encontram, na caridade que se torna
partilha, a prova da sua autenticidade evangélica.”
Uma outra referência bíblica, de
novo retirada dos Actos dos Apóstolos – “Vendiam terras e outros bens e
distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um” –
mostra ainda, diz o Papa, “com clareza, como estava viva nos primeiros cristãos
tal preocupação”. E acrescenta: “O evangelista Lucas – o autor sagrado que deu
mais espaço à misericórdia do que qualquer outro – não está a fazer retórica,
quando descreve a prática da partilha na primeira comunidade. Antes pelo
contrário, com a sua narração, pretende falar aos fiéis de todas as gerações
(e, por conseguinte, também à nossa), procurando sustentá-los no seu testemunho
e incentivá-los à acção concreta a favor dos mais necessitados.”
O texto da mensagem recorda ainda
o ensinamento dado, “com igual convicção, pelo apóstolo Tiago, usando
expressões fortes e incisivas na sua Carta: ‘Ouvi, meus amados irmãos:
porventura não escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e
herdeiros do Reino que prometeu aos que O amam? Mas vós desonrais o pobre.
Porventura não são os ricos que vos oprimem e vos arrastam aos tribunais? (…)
De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé?
Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e
precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai
de vos aquecer e matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo,
de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está
completamente morta’ (2, 5-6.14-17)”.
Reconhecendo os “momentos em que
os cristãos não escutaram profundamente este apelo, deixando-se contagiar pela
mentalidade mundana, o Papa recorda também os “homens e mulheres que, de vários
modos, ofereceram a sua vida ao serviço dos pobres”. Entre todos, diz, “destaca-se
o exemplo de Francisco de Assis, que foi seguido por tantos outros homens e
mulheres santos, ao longo dos séculos” e cujo testemunho “mostra a força
transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos”.
Pai Nosso, a oração dos pobres
A pobreza, define o Papa na
mensagem, “é uma atitude do coração que impede de conceber como objetivo de
vida e condição para a felicidade o dinheiro, a carreira e o luxo. Mais, é a
pobreza que cria as condições para assumir livremente as responsabilidades
pessoais e sociais, não obstante as próprias limitações, confiando na
proximidade de Deus e vivendo apoiados pela sua graça. Assim entendida, a
pobreza é a medida que permite avaliar o uso correto dos bens materiais e
também viver de modo não egoísta nem possessivo os laços e os afectos”.
Para a celebração deste primeiro
Dia Mundial dos Pobres, o Papa faz sugestões concretas: manifesta o desejo de
que as comunidades cristãs se empenhem na criação de muitos momentos de
encontro e amizade, de solidariedade e ajuda concreta”, sugere que se convidem
pobres e voluntários “para participarem, juntos, na Eucaristia deste domingo” e
que os crentes se aproxime dos pobres que vivem no seu bairro, acolhendo-os “como
hóspedes privilegiados” à mesa.
Francisco recorda ainda que “o Pai
Nosso é a oração dos pobres”: pedir o pão “exprime o abandono a Deus nas
necessidades primárias da nossa vida” e o que Jesus ensina naquela oração “exprime
e recolhe o grito de quem sofre pela precariedade da existência e a falta do
necessário”. O Pai Nosso é, ainda, “uma oração que se exprime no plural: o
pão que se pede é ‘nosso’, e isto implica partilha, comparticipação e
responsabilidade comum. Nesta oração, todos reconhecemos a exigência de superar
qualquer forma de egoísmo, para termos acesso à alegria do acolhimento recíproco.
O Papa conclui, exprimindo outro
desejo: “Que este novo Dia Mundial se torne, pois, um forte apelo à
nossa consciência crente, para ficarmos cada vez mais convictos de que
partilhar com os pobres permite-nos compreender o Evangelho na sua verdade mais
profunda. Os pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para
acolher e viver a essência do Evangelho.
(O texto completo da mensagem, em
português, pode ser lido aqui)
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