Eugen Schönebeck, Kreuzigung (Crucificação), 1964,
Städel Museum, Frankfurt am Main, Alemanha (pormenor)
Bomba, decisão totalmente inédita, resolução sem precedentes na história da Igreja, viragem absoluta, revolução. Abundam os qualificativos para caracterizar o que se passou esta tarde de sexta-feira, com o anúncio de que todos os 34 bispos do Chile colocaram o seu lugar à disposição do Papa, que já tinha dito sentir “vergonha” pelas “práticas reprováveis” que este caso foi revelando.
O epílogo da reunião de todos os bispos do Chile com o Papa, em Roma, como que confirma o título do documentário sobre Francisco, que o realizador Wim Wenders apresentou nestes dias no Festival de Cinema de Cannes: Francisco, um Homem de Palavra.
Depois de se ter sentido posto em causa, mesmo durante a sua viagem ao Chile, em Janeiro passado, Francisco quis averiguar o que se passava no país. O primeiro passo foi enviar os padres Charles Scicluna e Jordi Bertomeu falar com todos os envolvidos – vítimas, clérigos, bispos –, de modo a que lhe fosse apresentado um relatório – um documento de 2300 páginas; o seguinte foi encontrar-se com várias vítimas, às quais pediu perdão pelos seus erros de avaliação e prometeu decisões; o último foi convocar todos os bispos chilenos para uma reunião em Roma, que decorreu esta semana, na qual pretendia fazer um caminho de discernimento, de modo a avaliar profundamente o que aconteceu, daí retirando todas as consequências.
Esta sexta-feira, dois bispos chilenos divulgaram um comunicado colectivo da Conferência Episcopal do Chile (CEC), na sequência da reunião com o Papa. Nele dão conta da sua decisão unânime de colocar o futuro de cada um nas mãos do Papa, afirmando querer pedir perdão “pela dor causada às vítimas, ao Papa, ao povo de Deus e ao país” pelos seus “graves erros e omissões” e anunciam ter colocado os seus cargos nas mãos do Papa, “para que ele livremente decida com respeito a cada um”.
Caberá, agora, a Francisco decidir em relação a cada bispo se continua ou não a desempenhar as respectivas funções. É de prever que o Papa aceite rapidamente os pedidos de demissão de quatro bispos que já nesta quarta-feira tinham apresentado a sua resignação: Juan Barros, de Osorno, que está no centro de todo este caso, acusado de encobrir o padre Fernando Kadima, já antes condenado por abuso de menores; Horacio Valenzuela, de Talca; Tomislov Koljatic, de Linares; e Andrés Arteaga, auxiliar de Santiago, que não esteve em Roma por sofrer de Parkinson.
Em entrevista ao La Vie, reagindo já à decisão dos bispos, o padre e psicoterapeuta francês Stéphane Joulain diz que compete ao Papa avaliar, caso por caso, mas que é possível que ele não aceite todos os pedidos de demissão. “Não me parece que todos os bispos chilenos sejam culpados de negligência. Esta demissão colectiva pode também querer dizer que eles não querem que um ou outro seja visado, em particular. Do ponto de vista da justiça, o Papa tem o dever de designar os responsáveis. É muito provável que ele analise caso por caso”, diz.
O anúncio dos bispos (que pode ser lido aqui na íntegra, em castelhano) começa por manifestar ao Papa o agradecimento “pela sua escuta de pai e sua correcção fraterna”. Mas, sobretudo, os bispos dizem que pedem perdão “pela dor causada às vítimas, ao Papa, ao Povo de Deus e ao país pelos [seus] graves erros e omissões”. Dois parágrafos depois, reiteram o agradecimento às vítimas, pela sua “perseverança e valentia, apesar das enormes dificuldades pessoais, espirituais, sociais e familiares que tiveram de enfrentar, tantas vezes no meio da incompreensão e dos ataques da própria comunidade eclesial”. E acrescentam: “Imploramos o seu perdão e a sua ajuda avançando no caminho da cura e da cicatrização das feridas”.
“Psicologia elitista” e “espiritualidades narcisistas”
Procissão dos penitentes em Lavacolhos (Fundão), Março de 2018
A onda de choque provocada por este anúncio não se ficou por aqui. O canal Tele 13, do Chile, divulgou na íntegra o conteúdo da carta que, no início da reunião, terça-feira passada, o Papa entregara a cada um dos bispos. Uma espécie de guião para a reflexão e as conversas destes três dias. Usando o método dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, o Papa confrontou os bispos com a realidade do que se passou, pediu um discernimento evangélico e uma acção consequente.
O documento não tem paninhos quentes nem procura novas desculpas para o que se passou. Antes, utiliza uma linguagem pouco habitual nas estruturas da Igreja, virando do avesso vários adquiridos sobre o papel do clero, a sua relação com os restantes membros da Igreja e o entendimento da missão da Igreja.
Numa das suas afirmações mais duras, que porventura será o parágrafo central da análise que faz, o Papa afirma: “Essa psicologia de elite ou elitista [de membros do clero] acaba por gerar dinâmicas de divisão, separação, ‘círculos fechados’ que desembocam em espiritualidades narcisistas e autoritárias nas quais, em vez de evangelizar, o importante é sentir-se especial, diferente dos demais, deixando assim em evidência que nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. Messianismo, elitismos, clericalismos, são todos sinónimos de perversão no ser eclesial.”
Francisco coloca ainda em causa os modos de proceder em relação a estes e outros casos, nos quais se manifesta o poder clerical: eles não se resolvem apenas através da remoção de pessoas. Isso é importante, “mas não é suficiente, há que ir mais além”, acrescenta. “Confessar o pecado é necessário, procurar remediá-lo é urgente, conhecer as raízes do mesmo é sabedoria para o presente-futuro. Crer que a remoção de pessoas, por si só, geraria a saúde do corpo é uma grande falácia. Não há dúvida que ajudaria e é necessário fazê-lo, mas repito, não chega.”
Encobrimento, danos irreparáveis e formação nos seminários
O Papa ter-se-á sentido posto em causa, tendo em conta até o episódio por ele protagonizado no Chile quando, confrontado com o protesto de vítimas, se voltou para as pessoas a dizer que, enquanto não houvesse provas, se estava apenas diante de calúnias. Cometeu um erro de avaliação, disse ele depois. Mas nesta carta acrescenta que sentiu “vergonha” pelas declarações que “certificam pressões exercidas sobre aqueles que deveriam levar por diante a instrução dos processos penais ou, inclusive, a destruição de documentos comprometedores por parte de responsáveis de arquivos eclesiásticos.
Um dos problemas graves identificados pelo Papa é precisamente o do encobrimento. Vários padres abusadores viram a gravidade dos seus actos minimizada e caracterizada apenas como “simples debilidade ou falta moral”, para serem acolhidos, depois, noutra diocese ou verem ser-lhes confiados cargos que implicavam contactos quotidianos com menores. “Há graves defeitos no modo de gerir” os casos de delito grave, inclusive nos relatórios que chegavam a Roma, “pois em não poucos casos foram qualificados muito superficialmente como inverosímeis o que eram graves indícios de um delito efectivo.” E houve casos de “gravíssimas negligências” naquele que era o dever de protecção de crianças vulneráveis por parte de bispos ou superiores maiores, que tinham o “dever especial de proteger o povo de Deus”.
O Papa dá ainda conta neste texto (também em castelhano, aqui na íntegra) do dano irreparável que estes casos têm causado na imagem e no trabalho da Igreja, de tantos crentes e comunidades: o facto de muitos episódios terem sido investigados a destempo ou nunca chegarem a sê-lo tem como consequência provocar o escândalo “para os denunciantes e para todos aqueles que conheciam as presumíveis vítimas, famílias, amigos, comunidades paroquiais”. Ou seja, o erro de uma pessoa pode colocar em causa o trabalho de muitos.
Finalmente, Francisco levanta também a questão do modelo de formação dos seminários. “Para poder corroborar que o problema não pertence apenas a um grupo de pessoas, no caso de muitos abusadores detectaram-se já neles graves problemas na sua etapa de formação, no seminário ou noviciado”, pois vários bispos ou superiores maiores confiaram essas instituições educativas a sacerdotes suspeitos de homossexualidade activa”.
Uma Igreja auto-centrada e questões para o futuro
Günther Uecker, Sandmühle (Moinho de areia), 1970,
Städel Museum, Frankfurt am Main, Alemanha
A carta, um profundo exercício de autocrítica ou, se se preferir, de discernimento evangélico, começa por tomar a frase de João Baptista em relação a Jesus: “É necessário que ele cresça para que eu diminua.” Recorda, depois, que a Igreja no Chile soube ser profética em muitas ocasiões. Mas, neste último período da sua história, perdeu o centro, tornando-se ela mesma “o centro de atenção”, deixando de olhar para Cristo e passando “a olhar-se e ocupar-se de si mesma”. Ou, dito de modo ainda mais claro: “Concentrou em si a atenção e perdeu a memória da sua origem e missão.” “A dolorosa e vergonhosa verificação de abusos sexuais de menores, de abusos de poder e de consciência por parte de ministros da Igreja, assim como a forma com que estas situações foram abordadas deixa em evidência esta ‘mudança de centro eclesial’”, acrescenta o Papa. “Longe de diminuir ela para que aparecessem os sinais do Ressuscitado, o pecado eclesial ocupou todo o cenário concentrando em si a atenção e os olhares.”
O Papa reitera ainda que, perante o que se passou, “urge criar dinâmicas eclesiais capazes de promover a participação e missão partilhadas de todos os integrantes da comunidade eclesial, evitando qualquer tipo de messianismo ou psicologia-espiritualidade de elite”. Em concreto, acrescenta, fará bem aos responsáveis eclesiais abrirem-se mais “e trabalhar conjuntamente com diferentes instâncias da sociedade civil para promover uma cultura anti-abusos de qualquer tipo”.
Na entrevista antes citada, o psicoterapeuta e padre Stéphane Joulain acrescenta algumas reflexões sobre questões que, claramente, terão de continuar a ser afrontadas como prioridade nesta questão: além de considerar que o Papa está a impulsionar um “movimento de reforma que conduz a importantes tomadas de consciência”, Joulain diz que esta situação perdurou por estar ligada “à gestão do poder na Igreja”: estes homens “puderam agir porque se sentiam intocáveis”. Ora, desde o início do seu pontificado, Francisco “colocou no coração da sua reforma a luta contra o clericalismo, contra os padres todo-poderosos e aos quais falta a humildade”. Por isso ele refere, na carta, o “nervo do problema”: o abuso do “poder de consciência”.
Com esta carta, acrescenta o especialista francês, o Papa dá uma mensagem forte: “Pôs-se um limite naquilo que não é mais aceitável.” Ao mesmo tempo, Francisco mostra que sabe encontrar os meios de “escutar as vítimas e compreender a sua palavra”. Como bom jesuíta, acrescenta o padre Joulain, “ele actua segundo a máxima: vejo, julgo, actuo; este rigor de fé e intelectual é apreciável para a Igreja”. (a entrevista pode ser lida, em francês, aqui na íntegra).
Ao despedir-se dos 34 bispos, o Papa entregou-lhes uma outra carta, manifestando o seu agradecimento pessoal pela presença e pelo trabalho realizado, bem como a plena disponibilidade de cada um “para aderir e colaborar com todas as mudanças e resoluções” necessárias a curto, médio e longo prazo, “para restabelecer a justiça e a comunhão eclesial”. (texto aqui, na íntegra, em castelhano)
Com estes últimos desenvolvimentos, fica por perceber o que se passará com o núncio apostólico em Santiago do Chile, o italiano Ivo Scapolo, apontado por muitos como responsável por também ter ajudado a encobrir factos importantes, na informação que prestou ao Vaticano e ao Papa. Scapolo ficou no Chile enquanto os bispos estiveram em Roma, outro facto inédito que este processo incluiu.
Agora, como escreve Luis Badilla no Il Sismografo, a posição do núncio pode significar o “último acto” de alguém desconhecido “da comunidade católica, com sua personalidade autoritária”, com interferências pesadas na vida da Igreja chilena. Alguém que herdou o modo de fazer diplomacia ao jeito do cardeal Sodano, antigo secretário de Estado do Vaticano – ele próprio já acusado em documentos divulgados há anos de ter ajudado ao encobrimento dos crimes do padre Maciel, fundador dos Legionários de Cristo –, centrada na carreira e nos jogos de uma “corte papal romana”. (o texto pode ser lido aqui numa tradução para português)
Estas serão algumas das cenas dos próximos capítulos.
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