sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Hora Zero

Hora Zero, artigo publicado na SIC Online


Na espuma dos dias – destes dias –, porque se espanta Eduardo Lourenço com Bento XVI?

Numa conferência promovida pela Comissão Nacional Justiça e Paz, no auditório do ISEG, em Lisboa, o filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço registou o (des)enquadramento mediático de Bento XVI. No tempo da palavra jornalística, “tempo da repetição e não da inovação nas palavras”, é difícil enquadrar a palavra da Igreja, ou de um Papa que por hábito “não repete as ideias”. Por outro lado, entende Eduardo Lourenço, não se pode esperar que a Igreja diga “algo que nunca ninguém ouviu”. Embora a palavra acompanhe o percurso da história e ganhe, em cada momento da história, o carácter da intervenção humana, Bento XVI não pode ser progressista pois vê-se como “guardião de uma palavra que não tem tempo e não lhe pertence”. A Igreja sediada em Roma não é uma monarquia hereditária, mas transporta uma palavra que “flui com a história” alicerçada numa doutrina.

Assumindo ser um “atrevimento”, o ensaísta aceitou o convite da CNJP para analisar a encíclica social de Bento XVI – Caritas in Veritate –, enquadrando-a num tempo de “pura magia, paraíso, sonho e desejo”, mas também “indigente” com a “fome e carências, diante do esplendor e da riqueza pessoal”. Não sendo uma religião de eleitos, o cristianismo nem sempre tem respondido “às exigências do Amor” e a tradição assistencialista da Igreja Católica está ainda por “purificar”. Num exercício de memória, Eduardo Lourenço sustenta que a preocupação da Igreja Católica pelo “social” nasceu como contestação da carência histórica do ocidente. Ressentida com a revolução iluminista “levou tempo a integrar o imperativo social dos tempos modernos”. A nova encíclica social reconstrói a Doutrina Social da Igreja, num texto “nada reaccionário”, a relembrar que o destino do Homem é um só, “temporal e espiritual”.

“Espanta que numa época tão ensombrada como a nossa – embora sem o carácter trágico do último século –, Bento XVI aborde todas as questões numa tónica de serenidade intemporal”, apesar da radicalidade alemã digna de um discípulo de Heidegger.

Poucos, como Joseph Ratzinger, têm consciência de como a Igreja conheceu um “processo de obscurecimento, tantas vezes provocado também por ele, antes e depois da sua eleição” para a cadeira de Pedro.

Contemporâneo de vários teólogos, que – como Henri de Lubac – dedicaram memoráveis estudos ao “humanismo ateu”, e não tendo meditado menos sobre a “morte de Deus” profetizada por Nietzsche, Bento XVI é um Papa preocupado com a “alienação e desertificação” do divino. A apologética distingue-se por visar o ateísmo de forma polémica, “mas não há polémica na hermenêutica de Bento XVI”.

Na análise de Eduardo Lourenço, Bento XVI tem um estilo “suave e elegante”, “original, profético e místico”, numa “cândida audácia” que regressa à “hora zero”. Uma catequese papal num tempo “aproblematicamente” crente, “a mais consoladora das cegueiras”.

Neste retorno ao “essencial” faltará a abertura, a disponibilidade para ver, sem preconceitos, os “sinais do tempo” que não se repetem, que reclamam da Igreja a coragem de uma mudança. Não estando esta mudança exclusivamente nas mãos do Papa ou da estrutura hierárquica, o “essencial” impõe o requisito da criatividade. Os fundamentos evangélicos acentuam a disponibilidade para um acolhimento do diferente e da diferença, sem com isso impor o imobilismo fundamentalista. Com a deriva secularista a baralhar a laicidade, a ortodoxia – uma certa teimosia ritualista e doutrinária – pode ser útil, confortável perante as incertezas sociais e da prática de fé. Mas é precisamente na dimensão secular, no vigor da laicidade, que a religião pode encontrar os mecanismos que a reforçam como “essencial” e relevante nas estruturas sociais e políticas, dando sequência a um processo histórico com erros acumulados.
Pragmaticamente, citando Eduardo Lourenço, o “humanismo somos nós” e “não somos o sujeito do Amor, é ele que desce e se humilha”.


Joaquim Franco

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