No dia em que assistimos, de novo impotentes, à fúria dos elementos, vale a pena ler esta crónica, escrita para Quarta-feira de Cinzas, início da Quaresma para os cristãos. Este domingo é, liturgicamente, o primeiro domingo da Quaresma.
“Teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa.”
(Mateus 6, 6)
Ao pensar em cinzas vejo, em primeiro lugar, os rostos fantasmagóricos do 11 de Setembro após a destruição das torres gémeas em Nova Iorque. Ou, mais recentemente, os escombros de Port-au-Prince, no Haiti, e os rostos angustiados de tantas crianças. São um limite, as cinzas. Uma fronteira, da qual é difícil ou impossível voltar. São a destruição a revelar como a matéria é frágil e passageira. São o mistério do tempo que transforma em aparente nada aquilo que se julgou tudo. E entre o nada e o tudo cá vamos escrevendo o existir, criando e recriando, na esperança de que o que é verdadeiramente importante nunca será cinza, antes estrela!
Nestas terras das Beiras, onde é sempre tão bom voltar, mesmo quando o lume se apaga, e fica o “borralho”, às vezes, encontram-se brasas que são como sementes para outros fogos. Basta um sopro para as avivar, e um pouco mais de lenha para tudo se reacender. E das cinzas se faz adubo para a terra que irá acolher as sementes. E também barrela para branquear a roupa. Há um fogo que permanece vivo até nas cinzas.
Começamos a Quaresma com o sinal das cinzas. E um outro, tão idêntico, se seguirá: o deserto. O primeiro, sinal de um fim; o segundo, lugar onde o fim parece o mais provável. E, contudo, também é possível encontrar vida e beleza no deserto. Bastaria lembrar a deliciosa frase do Principezinho: “O que torna belo o deserto, é que ele esconde um poço em qualquer lado…” Há um caminho a percorrer a partir de novas cinzas e por novos desertos. Um caminho que nos chama a vencer a instalação e o desencanto, os erros passados e os medos futuros. Que pede para olhar cada fim como um novo princípio, cada derrota como uma sabedoria adquirida. A derrota que se chama pecado e também desilusão, a derrota que se chama doença, e também desemprego, e até injustiça. A derrota feita por mim e aquela que outros teimam em fazer. Como cinzas que se espalham no caminho. Espalham-se porque caminho. E caminho acompanhado.
É preciso não esquecer a condição original de sermos moldados a partir da terra pelas mãos hábeis e ternas de Deus. E, por isso, receber este pedaço de cinza sobre a cabeça, reclama reacender o fogo. É cinza que não é fim, mas princípio. E quantos princípios estão desejosos de começar em nós? E à nossa volta? E nas comunidades, também às vezes cinzentas, a que dizemos pertencer? Que princípio de fogo traz para mim a cinza deste dia?
(Texto do padre Vítor Gonçalves; foto copiada daqui)
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