quinta-feira, 2 de junho de 2011

Inquérito Nova Evangelização (10) - Helena Araújo

"O Deus em que acredito anda por aí, e suspeito até que se diverte com o uso de heterónimos"
Helena Araújo, 47 anos, tradutora

1. As transformações sociais e as suas consequências, nomeadamente o deserto interior

A expressão "deserto interior" surpreendeu-me de tal modo que cheguei a desconfiar que fosse erro de tradução ou de palavras fora do seu contexto... Mas parece que não. Decididamente, o Papa e eu não frequentamos os mesmos lugares e a mesma História. O meu mundo está cheio de pessoas que, não sendo necessariamente cristãs, se empenham na procura de um sentido e a traduzem em gestos de humanidade.
Deserto interior? Estou com o Padre Américo: "não há rapazes maus".
O facto de não chamarem Jesus Cristo à fonte que inspira os seus gestos, e
não irem à missa periodicamente, não significa que as pessoas vivam em
"deserto interior". Inversamente, frequentar a Igreja e alardear a Fé não é
garantia de nada - como prova, aliás, o modo desastroso como a Hierarquia
lidou com o horror da pedofilia.
Eu teria até um certo pudor em usar estas palavras a partir do interior da
Igreja. Não é preciso vasculhar muito no seu caixote de lixo para encontrar
situações de deserto interior que emanam da própria ortodoxia católica. O
exemplo habitual é o da Inquisição mas, infelizmente, há muitos outros, tais
como o caso Mortara, em meados do séc. XIX, ou o caso da educadora de
infância de um jardim infantil católico, na Alemanha de fins do séc. XX, que
foi despedida por estar grávida sem ter a situação familiar esclarecida (não
se queria dar maus exemplos às criancinhas, compreensível...).
A terrível perversão das "criadas" e dos "afilhados" dos padres, com a qual
a Igreja tem convivido pacatamente ao longo dos séculos, é um cruel exemplo
dos limites daquele diagnóstico: algumas das transformações sentidas como
ameaça (a revolução sexual, a moral sexual, os chamados ataques à família
tradicional) criaram nas pessoas uma consciência da sua dignidade e da
justiça que não permite continuar a aceitar passivamente escândalos como
estes.

E vou mais longe: estas transformações sociais são uma excelente
oportunidade de renovação da Igreja, e um desafio assustador. No espaço de
liberdade, exigência, capacidade de escrutínio e crítica que é o nosso mundo
actual, ninguém deve obediência, generosa tolerância e muito menos
respeitinho à Igreja Católica. Mas como pode esta - lugar de pecado como o
próprio mundo - ser exemplar de modo a conquistar o respeito de um mundo
livre, profundamente crítico e que a sente como um elemento hostil?

2. Os sinais dos tempos e o papel da secularização

Olho à minha volta, e vejo que alguma espécie de Bem toca os gestos das
pessoas. Vejo milhentos impulsos de generosidade e humanidade, inúmeros
voluntários que oferecem muito do seu tempo para servir os necessitados, a
dedicação com que tantas ONG tentam tornar o nosso mundo mais justo e mais
humano. Vejo no Burning Man (provavelmente o festival mais louco dos EUA)
que o espaço da meditação e espiritualidade é um dos mais frequentados. O
Deus em que acredito anda por aí, e suspeito até que se diverte com o uso de
heterónimos.
Talvez a secularização seja sinal de um Espírito Santo feito tempestade:
quando a sociedade se emancipa e confronta a Igreja com as suas próprias
contradições e fragilidades, obrigando-a a um esforço de renovação, a
sacudir a tralha acumulada e anacrónica, a concentrar-se no único fulcro
possível: Jesus Cristo.

3. A "nova evangelização"

"Nova evangelização"?! Eu gostava da antiga, aquela que se resumia à frase
"vede como eles se amam".
Em todo o caso, uma evangelização não pode ser uma operação de cosmética, de
gestão da crise, de reacção. Num mundo em que uma insuportável transparência
anda a par com exigências e críticas implacáveis, só fará sentido se for um
esforço profundo e muito honesto de se reencontrar com Cristo no coração do
nosso tempo. Um esforço que atinge tanto a tradição e as estruturas internas
da Igreja como a sua maneira de estar e agir no mundo.

4. A Igreja centrada numa “decisão ética” reduzida a uma ou em questões de
disciplina e de regras internas e, menos, na Pessoa de Jesus Cristo

Eu ia dizer que sim, que ça va sans dire, mas depois lembrei-me que também
sou Igreja, e que alguns padres e bispos que muito admiro também são Igreja.
A Igreja somos nós todos, é um lugar de imensa diversidade e pluralidade de
experiências. Se uns se prendem mais à "decisão ética" outros entregam a
vida ao serviço do encontro com Jesus. Se uma parte da Igreja endurece num
fundamentalismo dogmático, outros (e com certeza também alguns dos
"fundamentalistas") vão ao encontro daqueles que vivem na mais horrível
miséria, levam a luz de Cristo ao mundo, em gestos simples e despojados.
Penso na Comunidade de Sant'Egídio, nas Missionárias da Caridade, na
Comunidade de Taizé, e em tantos outros exemplos.


5. "Fórmulas" de evangelização para Portugal

Estrangeirada que sou, não me peçam para falar sobre Portugal. Dou, em vez
disso, um resumo de um debate a que assisti recentemente num grupo de leigos
católicos alemães, sobre caminhos de futuro para a Igreja:

Dois problemas centrais atravessam a Igreja: a crescente polarização, sobre
a qual pouco se tem reflectido, e a ausência da cultura do diálogo (nas duas
vertentes: horizontal e vertical) que por vezes chega a tomar a forma de
bloqueio. A Hierarquia padece de uma arrogância que a impede de reconhecer a
igualdade dos cristãos e de aceitar que a Igreja é antes de mais o povo de
Deus.
A renovação, necessária e inadiável, passa pela igualdade, pelo respeito
mútuo, pela participação de todos. Só assim se conseguirá uma ordem interna
estável e se ganhará credibilidade perante o exterior.
Motivos para os bloqueios:
- imagem teológica que os bispos têm de si próprios
- passividade dos leigos, que aceitam essa autoridade dos bispos sem
questionarem quais são as suas bases, esquecendo que os portadores primários
de autoridade são as comunidades e não os bispos
- passividade dos leigos, que não estudam as escrituras e não se entendem
como sujeito actuante da sua própria Fé

A Igreja e o Reino de Deus (que é hoje o mundo secularizado): o mundo fugiu
da Igreja porque foi maltratado por ela, que, ao concentrar-se em si própria
esquecendo os que sofrem, provocou ainda mais sofrimento. A Igreja tem de se
voltar para o mundo. Cristo fala do Reino de Deus, e não da Igreja. Esta não
é um objectivo em si própria, existe para cumprir uma missão importante. O
diálogo, se não for entendido como serviço, não passará de umbiguismo e
auto-reflexão.

Visões de futuro:
- Diálogo com as comunidades, o ecumenismo, o mundo: é necessário tomar
todos em consideração para entender o alcance da necessidade de reformas
dentro da Igreja.
- Fim da profunda discriminação das mulheres. O que é que a Igreja não
perdeu em todos estes séculos em que arredou do seu seio um grupo tão
importante? Só quando houver igualdade homem/mulher dentro da Igreja será
possível esta ter um olhar abrangente e equilibrado sobre o mundo.
- Estatuto das comunidades: o consenso é indispensável. O diálogo não deve
ser orientado pela Hierarquia, mas realizado com a participação de todos em
condições de igualdade. Todas as comunidades são sinodais e conciliares.
- Já não vivemos no feudalismo e no absolutismo: que autoridade pode ter um
bispo que não foi escolhido pela sua comunidade?
- Os leigos têm de se empenhar mais na Igreja. Não basta dizer mal dos
padres e da Hierarquia, há que assumir a sua quota parte de responsabilidade
e agir: "onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome".
- Confiança nos jovens: nas suas capacidades teológica, de solidariedade e
de empenhamento.
- Desclericalização dos cargos/serviços.
- Conexão ao tempo presente, solidariedade com os que sofrem, opção pela
pobreza.
- Diálogo público, abrangente e transparente. Sem se esquivar às questões
mais incómodas, sem temer (a renovação exige a coragem de experimentar),
realizado em conjunto (procurando especialmente a participação dos mais
jovens), procurando soluções parcelares que evitem o enquistamento em
trincheiras ideológicas, e sem desistir. Acreditar sempre que o espírito de
Jesus Cristo nos acompanha neste caminho.

2 comentários:

maria disse...

Minha caríssima, Helena: uma reflexão muito radical e com objectivos bem concretos. Bem hajas!

Uma brincadeira séria: não quiseste falar concretamente da realidade portuguesa, mas bem podiam convocar a tua participação (não para arrumares as cadeiras ou ornamentar a sala)na próxima reunião da Conferência Episcopal.

M. disse...

Falta uma coisa importante em muitas dioceses: padres que cativem todas as faixas etárias mas sobretudo os jovens já que eles são a Luz e deles depende ser também o Sal que conserva o que resta do sonho de tantos que desejavam o desaparecimento da Igreja ou actuar fora dela como se fosse desnecessária. Faltam padres, faltam pessoas em dioceses completamente "paradas" no tempo que já mal sabem o que é o Evangelho, que criticam a Igreja como se o mal praticado pelos homens a ela ligados fosse motivo basto para cortarem com ela. Estou cansada de ouvir esta desculpa por toda a parte. Estes sim, encontram-se num deserto interior imenso do qual não desejam sair, acomodaram-se. Procurar e praticar dá muito trabalho. Sinto pena. E por outro lado existem os que dizem que sentem o desejo de encontrar algo, mas na Igreja nada entendem das homílias, não entendem sózinhos a Bíblia e não sabem onde procurar. E permanecem ali, com uma sede, uma sede de algo que não sabem bem o quê mas que sentem superior a tudo sem contudo conseguirem associar que toda a resposta está no Evangelho, mais concretamente no Novo Testamento e na vida de Jesus de Nazaré.

perdoe o desabafo.