Imagine que tem uma
pequena avaria no carro. O sinal luminoso para virar – “pisca” – ficou preso,
sempre ligado. Quem o vê na estrada julga que está permanentemente com a
intenção de sair na próxima rua, quando, na verdade, não passa de um equívoco,
de um pormenor mecânico. Para evitar dissabores com a anomalia, vai à oficina
da marca do automóvel. Dizem-lhe que se trata de uma pequena avaria no sistema
eléctrico, que tem de ser totalmente substituído, e pedem algumas centenas de
euros. Resolve então ir ao mecânico do bairro. Pacientemente, ele estuda o
mecanismo, desmonta o volante, faz uma limpeza, substitui uma pequena peça e
volta a instalá-lo. O sinal fica a funcionar e o mecânico pede alguns euros
pelo trabalho.
O sábio mecânico procura
a origem do problema e pode encontrá-la na teimosia da persistência. Pode
falhar, é o risco da curiosidade, mas procura. Com agilidade e engenho, necessidade
também, rasga o padrão imposto sobre os mais desatentos. Na era dos
“consumíveis”, o consumidor anda padronizado, refém de estratégias comerciais
em autofagia, que ampliam o lucro e promovem o desperdício.
Hoje, na comunicação
mediática, domina também a síntese sobre a análise, o padrão sobre o pormenor.
Podemos passar padronizados pela vida, nos gostos e desgostos, e até na
resignação, incapazes de vislumbrar o específico, o intransmissível e perene
nas relações humanas, cedendo às convenções e à cegueira das aparências
efémeras.
Como vírgula que muda o
sentido de um texto, o pormenor pode fazer toda a diferença, da engenharia à
desmontagem do tempo, capaz de facilitar a reciclagem e a reutilização da
história. Se a grande história marca posição e se impõe nas enciclopédias, a
investigação histórica pode revelar o pormenor que esclarece ou inverte a
grande história.
De Confúcio a Gandhi, há
toda uma sabedoria da essência e do pormenor, sem a qual o todo perde o
sentido. Como nos textos “sagrados” há toda uma procura da “verdade” que ganha
a forma do “absoluto” pela multiplicidade de pormenores na aventura da Palavra
e das palavras.
Há pormenores que se
revestem de escândalo, colidem com as tradições, podem até alterar presépios e
“crucificar” historiadores. Mas há sobretudo os pormenores mais acessíveis, que
se manifestam com tal nitidez que nem precisam de grande focagem. O problema
está na desfocagem da finitude humana. A tendência é para ver o que convém na
circunstância de um momento e não O momento que um pormenor pode revelar na
infinitude de uma oportunidade.
(Joaquim Franco,
crónica no programa Princípio e Fim da Rádio Renascença, no passado dia
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