quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

João Resina: O poder de nos tornarmos filhos de Deus


Livro 

Um novo livro com textos do padre João Resina, que morreu em Junho de 2010, é um acontecimento. A sua capacidade de revelar sentidos novos no texto bíblico e de o actualizar para a vida e os tempos de hoje, bem como de ir directo ao essencial, eram duas características essenciais da sua forma de estar e da sua arte da pregação.
A profunda liberdade interior que o marcava não recuava perante aquilo que achava injusto, escravizador ou humanamente indigno. E isso traduzia-se numa transparência rara e numa fidelidade à pessoa de Jesus Cristo, centro da sua vida. Liberdade e fidelidade que inquietavam quem o ouvia e não deixavam ninguém indiferente. 
Inês Nolasco e Fernando Gomes da Silva meteram mãos à busca de textos e gravações perdidas de João Resina e o resultado é o livro “A Palavra para os Homens” (ed. Paulus). A obra será apresentada esta quinta-feira, dia 13, no salão paroquial do Campo Grande, em Lisboa, pelo padre Vítor Feytor Pinto, a partir das 18h30. Como aperitivo, o RELIGIONLINE reproduz a seguir, em primeira mão, um dos textos incluídos no livro:

O poder de nos tornarmos filhos de Deus

Para nós, cristãos, a festa do Natal é a celebração da vinda de Deus ao mundo. Acreditamos que o Menino do presépio de Belém é Deus verdadeiro e Homem verdadeiro.
E que queremos dizer com isto?
Muitos já não acreditam, ou nunca acreditaram em Deus: para eles, a nossa festa é uma loucura ou uma ingenuidade. Outros acreditam em Deus, mas acham absurdo que Deus abandone a Sua transcendência, a Sua glória, o Seu poder, para vir ao nosso encontro. Há ainda aqueles que esperavam a vinda do Messias, mas se espantam com este modo. Em seu entender, aquilo de que o mundo precisava era de uma intervenção fulgurante e justiceira.
Ouvimos estas objeções e continuamos a olhar para o Menino do presépio. No mais fundo de nós mesmos começamos a entender que é a maravilha pela qual ansiávamos sem nos darmos conta. Precisamos de alguém que nos ame sem limite. Aceitamos e até queremos que seja maior do que nós, mas o Deus de certa tradição, que nos manobrava para realizar os Seus objetivos perfeitos – não podia ser. Percebemos que vir assim ao nosso encontro, pobre, desprotegido, frágil, pequeno como uma criança recém-nascida, é mesmo o estilo d’Ele.
Sabemos que, quando cresceu, andou muito com os pobres. Isso complica-nos um bocadinho. Visitar um pobre todas as semanas, vá. Mas conviver todos os dias com os pobres, os drogados, os doentes de sida, os criminosos, não nos entra bem na cabeça. E pode ser que a pobreza do presépio nos ajude a entender duas coisas: primeira, que Ele quer tanto encontrar-se com cada um de nós que se dispõe a morar connosco, mesmo que seja num bairro de barracas; segunda, que até pode ser que, no juízo d’Ele, eu – que pertenço ao grupo dos “bons” – valha menos que muitos drogados e presos.
Muitas vezes nos confrontámos com o discurso da Igreja e sentimos várias barreiras.
Logo de imediato, a barreira da linguagem: porque será que a Igreja não fala a linguagem de toda a gente, muito menos a linguagem dos pobres e das crianças? Depois, a complicação dos bons livros. Cada um de nós acaba por pensar: a Igreja deve ter razão, eu é que sou um dos maus da fita.
Olhamos para o presépio e vemos um menino. Um menino não tem teorias, ou, pelo menos, não nos atira com teorias à cara... E surge a ideia louca: será que Deus é mesmo como este menino? Será que posso olhar para Ele sem medo de que me escorrace, sem medo de que me julgue (Jo 5,24)? Será que Ele tem paciência para mim? Será que posso estar aqui em paz? E outra ideia, tão louca, que até me parece que tenho obrigação de a afastar: Será que a verdade é isto, e não aquela dialética dos livros aprovados?
Alguns de nós “foram ao presépio” e vieram de lá com o palpite de que é mesmo este o caminho de Deus: se eu me tornasse assim simples... se eu aceitasse os outros sem zanga... se eu me fizesse ao menos um bocadinho mais pobre... se eu trabalhasse mais a favor dos que precisam... se eu aceitasse o risco de lhe ser fiel... Se eu aceitasse, com humildade mas sem angústia, que até sou grande pecador, e logo percebesse que isso O inquieta, comparativamente, pouco; o que Ele quer é que eu ande com Ele e despreze o resto, a santidade virá sem que ninguém dê por isso...
Sem dúvida, a vida hoje não é igual à daquele tempo na Palestina. Mas isso não faz problema. Precisamente, Ele não veio resolver as coisas em nosso nome. Veio, dando-nos «o poder de nos tornarmos filhos de Deus» (Jo 1,12), permitir que enfrentemos a vida, em situações diferentes daquelas que Ele viveu, mas com um amor em que Ele próprio se reconhece.

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