segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A vaca e o burro - era então verdade?


Na sua crónica “Os Dias da semana” no "Diário do Minho" deste domingo, Eduardo Jorge Madureira escreve ainda sobre a vaca e o burro do presépio, a partir de um texto de Aquilino Ribeiro.

“Muito se tem ventilado também se no estábulo assistiam a burra e a vaca”. A constatação não surgiu por causa do que, desde o mês passado, tem sido dito na sequência da publicação de A infância de Jesus, o mais recente livro Joseph Ratzinger. A afirmação, de facto, não evidencia a perplexidade de um leitor da imprensa portuguesa recente, em resultado de ter encontrado numa primeira página do Correio da Manhã a notícia de uma sentença inapelável: “Papa afasta burro e vaca do presépio” e no topo de uma página interior do Diário de Notícias a informação de uma decisão de sentido inverso: “Vaca e burro continuam no presépio”. Também não resulta da audição de um spot sobre “um presépio sem vaca nem burro”, a anunciar uma entrevista emitida pela TSF ontem e hoje de madrugada.
Quem disse que “muito se tem ventilado também se no estábulo assistiam a burra e a vaca, como ideou S. Francisco no primeiro presépio, e, após ele, quantos poetas souberam pegar em pincéis, e quantos rapsodos vazaram a rude palavra do romance nas ledas estancias dos autos e dos mistérios” foi Aquilino Ribeiro, um dos mais relevantes escritores portugueses do século XX. 
Num artigo intitulado “Controvérsias à margem da Natividade”, publicado há cinquenta anos, no Diário de Lisboa de 24 de Dezembro de 1962, o autor de, entre muitas outra obras, S. Banaboião, anacoreta e mártir, A casa grande de Romarigães, Quando os lobos uivam e O romance da raposa, notando que “no Natal tudo é mistério, embora florido com roseirais de esperança”, fazia uma espécie de ponto da situação sobre certos desencontros a propósito de alguns pormenores históricos. Referia as opiniões em confronto e dizia com quais se encontrava mais em conformidade. Entre as “controvérsias”, citava, por exemplo, a de Maria ir ou não a cavalo num burrinho e a de no presépio haver ou não “a burra e a vaca”.
Se veio de burra, não admira que o animal apareça “a bafejar o inocentinho intanguido nas palhas nuas”, escreve Aquilino Ribeiro, perguntando: “Mas donde saiu a vaca?”. A resposta vai o autor de O Malhadinhas buscá-la ao que diz a religiosa Maria de Jesus de Agreda, considerada uma das mais importantes figuras espirituais da Espanha do século XVII. “A admirável vidente de Agreda resolve o problema sem dificuldade de maior: Vino luego por voluntad divina de aquellos campos un buey, y entrando en la cueba, se junto al jumentillo, que la misma reyna avia llevado. Tal asserto tem o entusiástico aplauso das almas crentes”. Na verdade, questiona Aquilino: “Que custava ao poder de Deus, tocar para ali um bezerro dos campos limítrofes ou das lezírias do Nilo?”.
O escritor enumera, a seguir, quem concorda com esta opinião e quem dela discorda. “O doutíssimo Ayala defende este ponto de vista com irada e altiva facúndia. E quase se não compreende que espíritos pautados de teólogos como Calmet, Tillemont, Serry, expulsem do presépio a boa bicharada e remetam com desdém antropocêntrico ás fábulas de Esopo”. Por fim, alinha o que pensa: “Sendo assim, ficaria inane e vã a profecia de que nessa noite prodigiosa o boi conheceria o seu dono, o asno a cara do azemel, só o homem se envergonharia de servir e conhecer àquele servem e conhecem os brutos”.
Com, pois, o burro ou burra e a vaca presentes, “enfaixou a mãe ao seu Menino nos panos de baetilha com que viera preparada e chegou-o ao peito. Foi mamando, agora já de beicinhos roxos pelo frio, que os pastores o vieram encontrar com as oferendas”. Afirma Aquilino que “traziam queijinhos de seus bardos. Braçadas de flores, fruta e aves de capoeira. É com a natureza da dádiva que argumenta este ácido e peguilhento Escalígero quando pretende sustentar que o Natal foi imprópriamente fixado na quadra de Inverno. Os pastores entraram de surrão, com as suas mocas debaixo do braço, seus chapeirões contra o sol, a gaita a espreitar da algibeira. E, dobrando o joelho, o adoraram”.
Repartido entre a primeira página e a segunda, o texto, que acabaria por ser um dos derradeiros escritos de Aquilino Ribeiro, que morreria poucos meses depois, em consequência de uma doença repentina, cita a voz de um vulto que, na noite, incentiva: “Ide á corte dos gados, á entrada de Belém no caminho da cisterna de David, que nasceu lá o Messias!”. O anúncio inspira ao escritor quatro perguntas: “Era então verdade? Os coxos e os trôpegos iam saltar como cervos? Ia raiar o sol da justiça para todos? Nunca mais o forte espancaria o fraco, nem o rico poderia jantar duas vezes enquanto ao pobre só restava o direito de morrer a louvar o Senhor?”.
“Era então verdade?” A resposta é também dada, continuamente, no coração de cada um. Afirmativa, impõe que nunca o forte abuse do fraco; reclama “justiça para todos”.

(Nota: As citações respeitam a grafia do texto de Aquilino Ribeiro)

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