terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A Senhora de Maio – Todas as perguntas sobre Fátima


No último fim-de-semana foi posto à venda o livro A Senhora de Maio – Todas as perguntas sobre Fátima (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores), que tive o gosto de fazer com o meu camarada de profissão Rui Paulo da Cruz.
O livro será objecto de uma apresentação pública esta quarta-feira, dia 8, às 18h30, no Jardim de Inverno do Teatro São Luís, em Lisboa. A sessão conta com a participação, em forma de debate, da escritora Lídia Jorge (que assina o prefácio), do historiador Fernando Rosas e do antropólogo e professor da Universidade Católica, Alfredo Teixeira.

Idêntica sessão decorrerá no próximo dia 16, às 21h, no Auditório do Centro Missionário Allamano (Rua Francisco Marto 52), em Fátima, com Graça Poças Santos ​(​professora do Instituto Politécnico de Leiria e autora do livro Espiritualidade, Turismo e Território: estudo geográfico de Fátima​)​  e Maria Inácia Rezola ​(​historiadora, integrou a equipa da Documentação Crítica de Fátima e é autora do estudo Sindicalismo Católico no Estado Novo​)​.

O livro recolhe um conjunto de mais de vinte entrevistas e depoimentos com perspectivas muito diversas sobre o fenómeno de Fátima, a partir da teologia, espiritualidade, religiosidade popular, antropologia e sociologia. Testemunhos de contemporâneos dos acontecimentos de há 100 anos e alguns dos documentos fundamentais sobre os acontecimentos – incluindo uma carta de Lúcia ao cardeal cerejeira a falar sobre Salazar – são também publicados.
Entre os entrevistados, contam-se os bispos Januário Torgal Ferreira e Carlos Azevedo, o historiador António Matos Ferreira, frei Bento Domingues, os padres Mário de Oliveira e Luciano Cristino, o antigo e o actual reitor do santuário, padres Luciano Guerra e Carlos Cabecinhas, o cardeal Saraiva Martins, a psicanalista Maria Belo, o sociólogo Moisés Espírito Santo e o antropólogo Alfredo Teixeira.
No prefácio, escreve Lídia Jorge: “António Marujo e Rui Paulo da Cruz rodam a chave no sentido certo. Oxalá este livro (...) possa abrir o capítulo de uma discussão que convém ser serena na forma, mas por certo não poderá evitar a contradição, o debate e o confronto aberto das ideias em face da crença. Debate que sempre ultrapassa os níveis da razão e da ciência – mas não as ignora –, esse patamar de confronto tão difícil de alcançar em Portugal.”
Reproduzo a seguir a nota inicial dos dois autores (que fica completa com uma nota final, que se encontra no livro).

Para o leitor acrescentar novas perguntas e propor as suas próprias respostas

Texto de António Marujo e Rui Paulo da Cruz

Os fenómenos ocorridos na Cova da Iria em 1917 adquiriram grande relevância política e religiosa, não só naquela época. Mas, ao mesmo tempo, dividiram e dividem opiniões e emoções em Portugal e no mundo, mesmo entre os católicos. Fátima é fruto da imaginação de três crianças e da imposição do clero ou revela uma forte experiência espiritual? Ela reflecte o catolicismo popular daquele tempo ou apresenta o essencial do cristianismo? O fenómeno subsistiu por causa da oposição da República e do apoio do Estado Novo ou mantém-se pela sua grande modernidade religiosa?

Estas e outras perguntas podem ser feitas a partir de afirmações de várias das entrevistas recolhidas neste livro. Elas traduzem uma pluralidade de olhares que quisemos que tivessem, sobretudo, a capacidade de despertar uma visão o mais completa e abrangente possível sobre um fenómeno complexo. Que, desde logo, implica múltiplas dimensões – desde a antropologia à teologia, da etnografia à estética, da arte à sociologia. O conjunto de depoimentos aqui recolhido resulta das entrevistas que realizámos em vídeo, nos últimos dois anos do século XX, para a elaboração do documentário A Senhora de Maio. O objectivo, quando se aproximava a beatificação de Jacinta e Francisco Marto por João Paulo II, era proporcionar ao público uma reflexão abrangente e não engajada sobre o fenómeno, retratando com o rigor possível a sua projecção quer espiritual, quer política, na época e nas décadas futuras.
A linguagem fílmica é muito diferente da textualidade, característica de um livro. As imagens falam por si, porque encerram valor semântico próprio. Num documentário, a expressão facial, o movimento e a voz dos entrevistados acrescem aos conteúdos verbais tonalidades que não sobrevivem à transcrição das suas palavras para letra de forma. Finalmente, a construção cinematográfica tem, na selecção sequencial dos segmentos, uma margem monumental de manipulação das mensagens. Oliver Stone destacava como única e distintiva a capacidade que a narrativa cinematográfica tem de fazer, sem limites, cortes no tempo através da montagem. Só fica na versão final, pela ordem que o autor (e não a cronologia) determina, o que na montagem se decidiu útil e significante.


A Cruz Alta, de Robert Schad

Tudo o resto são restos, o que não se aproveita. No entanto, sobretudo num processo documental, quantas palavras e imagens preciosas não ficam nessa gaveta de «sobras» do autor, inacessível aos espectadores? Quando escolhemos imagens e segmentos de conversas para um documentário, não quer dizer que o que fica de fora não valha a pena. Acontece que o que fica de fora não cabe ou não serve tão bem para o fim em causa. E o fim é a construção específica de um discurso destinado a ser visto e ouvido, se possível sem interrupções, num período de tempo predeterminado pela modulação da programação televisiva. O pai do documentarismo, Robert J. Flaherty, dizia provocatoriamente que às vezes é preciso mentir, distorcendo uma coisa para a revelar na sua verdadeira essência. Através do enquadramento e da montagem, duas operações incontornáveis da narrativa fílmica, o documentarista assume naturalmente a omissão como técnica instrumental da sua práxis. Mas fica sempre uma pequena – ou não tão pequena – angústia, em relação ao que ficou fora do quadro e fora da sequência final.

Depois de concluído, com diversas exibições em canais de sinal aberto e no cabo, o documentário A Senhora de Maio cumpriu a sua efémera missão. E ficou por aqueles dias de viragem do século. Passados todos estes anos, os autores revisitaram o seu arquivo e reviveram o material que veio a constituir este livro. O tempo, esse grande escultor de que falava Marguerite Yourcenar, encarregou-se de acrescentar ao retrato de Fátima novos elementos, nomeadamente através do anticlímax que foi a revelação do terceiro segredo. O mesmo tempo resultou, como era inexorável, no esgotar-se a vida dos últimos protagonistas, das últimas testemunhas
e de alguns dos entrevistados do documentário.

Decidimos publicar A Senhora de Maio em livro – graças ao interesse do Círculo de Leitores e da Temas e Debates, e da sua editora, Guilhermina Gomes – acrescentando ao título uma linha que talvez ajude o visitante apressado das nossas livrarias a compreender melhor o alcance da obra: «Todas as perguntas sobre Fátima.» Permitimo-nos a liberdade do exagero, porque são, de facto, todas as perguntas que fizemos a um grupo alargado de especialistas e testemunhas (incluindo o último irmão vivo dos videntes Francisco e Jacinta, naquela que terá sido a sua derradeira entrevista; e uma amiga de infância de Lúcia). Eles não nos terão dado e não darão ao leitor todas as respostas, mas pelo menos ajudam-nos, com uma proposta de reflexão, a compreender melhor um fenómeno que galvanizou milhões de portugueses, ao longo de várias gerações e durante um século.
Porque já lá vão quase duas décadas, acrescentámos a essas entrevistas recolhidas em 1999 e 2000 quatro novos depoimentos, com os quais procuramos a abordagem mais actual que proporcione, ao leitor interessado, o exercício mais informado da prospectiva. Três deles são originais: entrevistas ao bispo Carlos Azevedo, ao padre Carlos Cabecinhas e ao antropólogo Alfredo Teixeira. O outro é uma entrevista, publicada em 2008, do autor da Cruz Alta que sinaliza a nova basílica, o escultor alemão Robert Schad, em que reflecte sobre a iconografia contemporânea do Santuário e a dificuldade em exprimir a simplicidade na obra de arte.
Cremos que o conjunto aqui reunido possibilita, agora que estamos à porta do centenário de Fátima, uma releitura mais desapaixonada do fenómeno que, porventura, pode ajudar a compreender melhor o ser português e o ser católico português. A entender, enfim, qual pode ser o verdadeiro segredo de Fátima.



Peregrinos em Fátima, a 13 de Outubro de 1917

É verdade que Fátima são muitas Fátimas. E é assim desde o primeiro momento. Como nota o bispo Carlos Azevedo, que foi o principal responsável pela publicação da Documentação Crítica de Fátima, «se repararmos nas descrições do fenómeno espiritual, nota-se a diversidade dos pastorinhos e das pessoas que assistem acerca do que conseguem ver e ouvir». E se isso «prova que não são criações encenadas, antes dependentes da capacidade espiritual, de quem é testemunha de um fenómeno místico», também revela que, «se fosse uma presença física e não uma visão, todos os presentes teriam idêntica perspectiva». Também frei Bento Domingues chama a atenção para o facto de cada peregrino ir a Fátima «com a sua devoção, com as suas preocupações», construindo «a sua Fátima interior, o seu itinerário feito de dificuldades, de promessas e de reconhecimento». E esse será «o aspecto mais moderno daquela religiosidade». O antropólogo Alfredo Teixeira sublinha: «Fátima é um fenómeno de uma grande plasticidade; não há uma única Fátima, há muitas.» E acrescenta: «Há uma nova narrativa religiosa muito presente nos fenómenos cristãos que apresentam mais vitalidade: a conversão é dirigida ao indivíduo, que é o interlocutor essencial. É o indivíduo que é chamado a converter-se.»
Esta individualização de Fátima adquire maior expressão se pensarmos que, pelos dados disponíveis, nove de cada dez portugueses já terão ido a Fátima pelo menos uma vez, mais de metade dos quais lá vai pelo menos uma vez por ano. Quase um terço fê-lo em peregrinação. Segundo outro número, quatro em cada dez fazem-no por necessidade espiritual.
Não será estranho, assim, que o fenómeno continue a despertar olhares muito divergentes – quer entre os que lá vão como peregrinos, quer de quem o observa ou estuda. Entre os que o encaram de forma crítica estão também muitos católicos, para os quais Fátima é uma expressão de religiosidade popular que pouco terá a ver com o cristianismo mais autêntico. Quem se coloca nesta perspectiva, como o padre Mário de Oliveira, diz que Fátima é uma resposta «mentirosa» e «alienante» às aspirações relacionadas com a saúde, o trabalho, a segurança ou a estabilidade de vida. É uma resposta que «desvia das causas» e «não leva as pessoas a procurar» as razões dos problemas.
Num outro patamar crítico, posições como a do etnólogo Moisés Espírito Santo destacam o facto de a aparição não se ter revelado como a mãe de Jesus, mas ter sido, depois, apropriada como tal pelo catolicismo oficial. Maria Belo defende a mesma perspectiva e ambos acrescentam também a coincidência da aparição de Fátima com as lendas das mouras. Afirma a psicanalista: «Há duas coisas que a Virgem pede expressamente aos pastores: guardar segredo e não ter medo. Em todas as lendas das mouras se encontra o mesmo.» E acrescenta: «Penso que elas viram uma senhora, a que depois a Igreja e as classes eruditas chamaram Nossa Senhora.»
O que aconteceu, então, em Fátima, em 1917? Seria demasiado temerário, da nossa parte, pretender ter conseguido obter uma só resposta, objectiva e firme, a esta pergunta. Mas é possível contextualizar política e religiosamente, como o fazem alguns dos nossos entrevistados, o ambiente social em que se deram os acontecimentos da Cova da Iria. Portugal vivia há pouco mais de seis anos sob um novo regime político que hostilizava oficialmente o catolicismo – e a hierarquia católica, ainda que com excepções, pagava na mesma moeda essa inimizade. É certo que a oposição mútua não era uniforme – quer entre os republicanos, quer entre os católicos, encontramos correntes diversas. «Havia a sensação de um conflito que atravessava a sociedade portuguesa, que não era apenas entre republicanismo e catolicismo», descreve o historiador António Matos Ferreira. Entre os católicos, alguns defendiam que se deviam unir «para defender os interesses da Igreja», enquanto outros preferiam «valorizar a dimensão religiosa em si e a legitimidade e importância dos acontecimentos religiosos, da própria vivência religiosa e da afirmação do catolicismo».
Neste contexto de mudança e confronto, Fátima surge como um processo religioso «muito oportuno», nas palavras do antigo reitor do Santuário, Luciano Guerra. O acontecimento surgiu «num momento de fragilização da fé» e acabou por renovar a «convicção a muita gente». O catolicismo manifestava-se ainda, na sua generalidade, sobretudo em expressões que hoje caracterizamos de religiosidade popular, ligada a devoções como o terço e as romarias. Ao mesmo tempo, convivia com leituras maniqueístas da realidade. A Missão Abreviada, livrinho à época muito popular, servia de guião a sermões e pregações do clero para propor uma religião baseada em devoções e rituais. Descreve graficamente o inferno – que João Paulo II dirá muito mais tarde não se tratar de um «lugar físico» – com palavras que virão a ser usadas pelos videntes nas narrativas das aparições.
Recorde-se ainda que, nesta mesma época e desde 1870, os papas se consideravam a si mesmos «prisioneiros no Vaticano», em protesto contra a unificação italiana e o fim dos Estados Pontifícios. Vamos reencontrar esta ideia da perseguição ao papa, o bispo «vestido de branco», na terceira parte do «segredo» – tal como escrito por Lúcia e interpretado por João Paulo II.
Esse catolicismo popular, devocional e mariano criava o ambiente propício para uma manifestação como as aparições. «Se as pessoas contarem com a possibilidade das aparições, haverá sempre aparições», diz-nos Peter Knauer, padre jesuíta alemão e professor de Teologia Fundamental. Este tipo de manifestação pode ser uma forma de «visualizar aquilo em que se acredita». Ou uma maneira, como explica um outro professor de Teologia, o italiano Antonio Nitrola, de exprimir a busca de um sentido perdido, numa sociedade fragmentada em que se perdeu a unidade: as aparições «exprimem, para além da sua genuinidade, pelo menos uma necessidade profunda dos nossos tempos: a de um sentido que nos escapou e que não podemos construir por nós mesmos, porque já pertence ao passado».



Peregrinos em Fátima, em 1928

Pode então dizer-se que os videntes viram, fisicamente falando, a figura da mãe de Jesus? Não será casual que vários dos entrevistados falem de uma experiência espiritual, mais do que física. «Falamos sempre de algo que tem um significado prevalentemente espiritual», resume o actual reitor do Santuário de Fátima, Carlos Cabecinhas. Mas o que as crianças viram realmente – entendendo aqui o verbo «ver» com um âmbito mais polissémico de sentir, experimentar ou vivenciar – permanecerá para sempre, isso sim, no domínio do segredo.

O que se sabe é que o acontecimento de Fátima viria a ter uma relação profunda com questões ideológicas e políticas que marcaram longas décadas do século XX: a oposição entre catolicismo e República, o aproveitamento político do Estado Novo, o anticomunismo, a guerra e a paz. O anticomunismo poderia ser incontroverso para a maioria dos católicos, porque o leninismo tinha um pendor marcadamente ateu e anticristão. Já a colagem a Salazar e ao Estado Novo são mais fracturantes e as simpatias políticas da hierarquia católica e da própria Lúcia foram incómodas para os católicos não comprometidos com o autoritarismo salazarista. Só há poucos anos se soube que, em vésperas de um acto eleitoral difícil para o regime – porque acontecia num clima de exaltação democrática alimentado pela vitória militar dos aliados contra os fascismos –, em Novembro de 1945, a vidente terá mesmo escrito uma carta encomiástica em defesa do ditador, de acordo com uma citação feita pelo cardeal -Cerejeira num cartão pessoal dirigido ao ditador. Lúcia invoca mesmo o «voto» de Deus: «O Salazar é a pessoa por Ele escolhida para continuar a governar a nossa Pátria.» E vai mais longe ainda no exercício laudatório: «A ele é que será concedida a luz e graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade.» Como se viu depois, os caminhos foram de paz, mas só até ao eclodir da Guerra Colonial em 1961. Quanto à prosperidade, é o que se sabe...
Tomando o tema do anticomunismo, e como assinala Luciano Cristino, durante largos anos responsável pelo Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima, os interrogatórios aos videntes, publicados nos primeiros volumes da Documentação Crítica de Fátima, não registam qualquer referência à Rússia ou à «conversão da Rússia», expressão interpretada como crítica ao regime comunista emergente, o qual seria implantado, mas já depois dos acontecimentos na Cova da Iria: «Só nos finais dos anos 20 aparece alguma documentação que se refere a este assunto», passando a relacionar-se a conversão da Rússia com a devoção ao Imaculado Coração de Maria: só com a consagração do mundo ao Coração de Maria se evitariam novas guerras e a Rússia se converteria. Facto é que nem as guerras terminaram nem a Rússia se converteu. O padre Luís Kondor, durante anos vice-postulador da causa de beatificação dos videntes e um dos raros interlocutores autorizados da vidente, explica o facto pelo tardar de uma consagração adequada pelos papas, de forma fiel à vontade expressa pela Senhora de Fátima. Conta-nos ele neste livro um diálogo com Lúcia, já pelos anos 80, depois de mais uma consagração no Vaticano pelo papa polaco: «Então, irmã Lúcia, o que será agora o sinal, para nós, de que esta consagração, finalmente, foi aceite pelo Céu? A irmã Lúcia disse: "Olha para o leste, de lá vem a resposta." E começou a era de Gorbachev.»
A História regista discussões acesas de grupos católicos, que poderemos caracterizar como mais integristas, que clamaram contra a falta de cumprimento diligente deste pedido de consagração da Rússia ao «Imaculado Coração de Maria». Entre outros episódios do envolvimento de Fátima na queda do regime soviético, ainda haverá imagens da Virgem de Fátima levadas clandestinamente para a Praça Vermelha, em Moscovo, uma delas pelo próprio padre Kondor.


A coroação da imagem de Nossa Senhora de Fátima 
nas páginas de O Século Ilustrado, 1946

O facto de Lúcia ter falado da Rússia apenas em 1929, já na clausura imposta pelo bispo de Leiria, está na raiz de especulações várias e, mesmo, de críticas acusatórias. Os mais distanciados acusam membros do clero – nomeadamente o cónego Manuel Nunes Formigão – de ter manipulado a versão que Lúcia dava das aparições, levando-a a falar do assunto só uma dúzia de anos depois dos acontecimentos da Cova da Iria.
Não se podendo desligar a retórica anticomunista de Fátima do período de Guerra Fria que se viveu na Europa ao longo de quase toda a segunda metade do século XX, rapidamente ela se esvaziou após o colapso da União Soviética e dos regimes de partido único nos restantes países do Pacto de Varsóvia, simbolizado pela queda do Muro de Berlim. O tema, no entanto, subsiste no discurso de alguns grupos integristas e interessa-nos sobretudo como tópico de análise histórica. Há perguntas que muitos levantaram ao longo de décadas e que permanecem pertinentes. De que conversão da Rússia se falava? Da mudança política? A alteração entretanto registada no final do século XX pode considerar-se uma «conversão»? E porquê uma alusão ao comunismo e não ao nazismo, igualmente um regime pagão e responsável pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, por outros muitos milhões de mortos e pelo Holocausto dos judeus?
Problema discutido a propósito da mensagem de Fátima foi também o da guerra e da paz. Os acontecimentos de Fátima verificaram-se em plena Grande Guerra, com milhares de jovens portugueses destacados para combater (e morrer) nos campos da Flandres e da França. A paz era um anseio profundo das pessoas. Por isso, uma Senhora que vem prometer que «a guerra acaba hoje» só podia ser bem recebida. Décadas mais tarde, a guerra voltará a ter uma relação profunda com Fátima, quando se agudizam os conflitos coloniais na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Fátima aparecia, diz o historiador António Matos Ferreira, «como um referencial quase místico para algo que era vivido pelas populações portuguesas, entendido como um sacrifício doloroso: o problema de ver os seus filhos partir para a guerra, confrontando-se com a precariedade da vida perante a situação de uma guerra que as pessoas aceitavam, mas perante a qual procuravam uma protecção de natureza religiosa e divina».
A Guerra Colonial levou largos sectores católicos para uma posição crítica muito profunda a Fátima, até aí quase inexistente no interior do catolicismo português: como podia uma mensagem de paz caucionar uma guerra como aquela que Portugal conduzia nos três territórios coloniais? E é nesse momento que, pela primeira vez, um papa vem a Portugal, e só para ir a Fátima. Paulo VI faz um discurso moderado, mas diz repetidamente: «Guerra nunca mais!» Salazar estava lá e ouviu, mas a política colonial não mudou. Nem mudaria até à queda do regime, a 25 de Abril de 1974.
A aceitação passiva da Guerra Colonial nas acções (ou omissões) do Santuário – e da maior parte da comunidade católica desse tempo – foi um dos mais decisivos factores de dissociação de muitos católicos em relação a Fátima. Mas num processo cheio de contradições, como é qualquer processo humano, Fátima foi também um bálsamo para o sofrimento de muitos militares e das suas famílias, que ali foram em busca de protecção divina para o sofrimento anunciado ou de conforto moral para perdas irreparáveis.

Muitas outras questões são objecto de perguntas e respostas nas entrevistas que publicamos neste livro. Que pode significar, em termos espirituais e místicos, um fenómeno como as aparições marianas, tão disseminado no mundo católico? Qual o lugar do imaginário popular na génese do fenómeno? Que valor teve o alegado milagre da cura de uma doente, base para a beatificação de Jacinta e Francisco? Que modelo de vida cristã nos propõe essa beatificação? Que leitura se pode fazer da terceira parte do segredo? Porque será que, depois de tanta especulação e suspense, o segredo não mobiliza o interesse das pessoas que ali vão? Que papel teve a geografia no sucesso do Santuário? Que transformações se estão a verificar no tipo de peregrinos que demanda Fátima? E o que reflecte essa mudança sobre a forma como actualmente se vivem as experiências religiosas? Qual a estratégia de Fátima? Que se pretende com a nova linguagem – na teologia, na arte, na estética e na proposta pastoral – que o Santuário vem desenvolvendo desde há anos? E por fim: a Senhora de Maio existiu?... É apenas mais uma de todas as perguntas sobre Fátima.

Lisboa, 13 de Outubro de 2016

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