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Na Sessão de Estudos promovida pelo Metanoia – Movimento Católico de
Profissionais, há um ano (5 de Março de 2016), Alfredo Bruto da Costa, que
morreu em Novembro último, desenvolveu o tema “Com Misericórdia, novos estilos de vida”.
Na sua intervenção, ex-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz usa o seu estilo inconfundível, de referência permanente ao texto bíblico, à teologia dos teólogos dos primeiros séculos do cristianismo e ao pensamento social contemporâneo para propor um caminho exigente de fidelidade ao Evangelho. Publica-se a seguir o texto que serviu de base à sua intervenção, pleno de actualidade e com referências ao tempo de Quaresma que, de novo, os cristãos estão a viver.
Agradeço o convite para falar
neste encontro do Metanoia.
Devo anunciar que não tenho
qualquer qualificação para falar da Misericórdia. Aceitei o convite no
pressuposto de que os que me convidaram admitem que eu tenha alguma coisa de
útil a dizer. É confiado neles que aqui estou.
Peço, pois, que me ouçam com
redobrado espírito crítico.
***
Pareceu-me que poderia ter
interesse para vós refletir no tema da Misericórdia em três pontos:
a) a importância da misericórdia
na mensagem evangélica e na espiritualidade cristã;
b) como devemos entender hoje as
exigências da Misericórdia, designadamente as chamadas «obras da misericórdia»;
c) o grau de transformação
individual e comunitária que a Misericórdia recomenda. Designadamente, se será
um problema de pequenos acertos ou, como se diz no título deste encontro, serão
necessários «novos estilos de vida».
A importância da misericórdia na mensagem cristã
Creio que todos nós ouvimos falar,
desde criança, da Misericórdia de Deus. «Deus é misericordioso» é uma expressão
que certamente nos é familiar. A questão que se coloca é a da noção que
tínhamos da Misericórdia de Deus e como a entendemos no conjunto dos atributos
de Deus. Deus é justiça, é amor, é omnipotente, etc. É também misericórdia.
Como conciliar todos estes atributos de Deus?
Vou socorrer-me do livro A Misericórdia [ed. Lucerna], do cardeal
Walter Kasper, que é teólogo, para situar o problema. Faço-o de forma
esquemática.
- a misericórdia, que é tão
fundamental na Bíblia, ou caiu largamente no esquecimento na teologia
sistemática, ou é tratada apenas de uma forma muito pouco cuidada. (...) [A] espiritualidade
e a mística vão muito adiante da teologia académica. (p. 19-22)
- se não somos capazes de anunciar
de uma forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que padecem de
aflição corporal e espiritual, deveríamos calar-nos sobre Deus. (p. 15)
- Depois das terríveis
experiências vividas no século XX e no ainda incipiente século XXI, a questão
sobre a compaixão de Deus e sobre as pessoas compassivas é hoje mais urgente do
que nunca. (p. 15)
- A misericórdia é uma dimensão
importante do pontificado do Papa Francisco. Já era preocupação quando ainda
era Bispo de Buenos Aires. Mas o Papa situa-se numa sucessão de papas que se
ocuparam do assunto: João XXIII (nos seus escritos e no discurso de abertura do
Concílio Vaticano II), João Paulo II (designadamente na encíclica Dives in Misericordia, Bento XVI também
valorizou o tema, além do mais, na encíclica Caritas in Veritate. (pp. 15-19)
- É necessário repensar do
princípio ao fim a doutrina sobre os atributos de Deus, concedendo à
misericórdia divina o lugar que lhe pertence. (p. 21)
- Como disse, um dos problemas que
tem dificultado o desenvolvimento da teologia da misericórdia parece ser o da
compatibilização dos diversos atributos de Deus, designadamente a misericórdia
com a justiça de Deus. A este respeito, diz Walter Kasper: “A misericórdia deve
ser entendida como a própria justiça de Deus, como a sua santidade.” (p. 24)
A misericórdia de Deus e nós
Na Mensagem para a Quaresma de
2016, texto cuja meditação recomendo muito vivamente, o Papa começa por
convidar a Igreja a vivê-la mais intensamente “como tempo forte para celebrar e
experimentar a misericórdia de Deus”.
Vale a pena notar: celebrar e
experimentar.
O Papa Francisco tem frases muito
fortes para tornar claro que em Deus, a misericórdia não é um atributo
secundário. Vejamos.
“A
misericórdia, diz, (...) é o primeiro atributo de Deus”. (Papa Francisco, O Nome de Deus é Misericórdia, p. 71).
Já
Bento XVI tinha afirmado que “A Misericórdia é na realidade o núcleo central da
mensagem evangélica”, acrescentando: “é o nome de Deus”. (Cit. em Papa
Francisco, O Nome de Deus é Misericórdia,
p. 25).
Como sabemos isso?
O Papa Francisco nota que “O
mistério da misericórdia divina desvenda-se no decurso da história da aliança
entre Deus e o seu povo Israel”. O Papa apresenta o drama da infidelidade de
Israel como um drama de amor, e conclui dizendo que este drama de amor “alcança
o seu ápice no Filho feito homem. N’Ele [Filho], Deus derrama a sua misericórdia
sem limites até ao ponto de fazer d’Ele a Misericórdia encarnada”. Jesus é a
Misericórdia que se fez homem.
Na homilia da Missa de abertura do
Jubileu e da Porta Santa, a 8 de Dezembro de 2015, disse Francisco:
“(...) a própria história do
pecado só é compreensível à luz do amor que perdoa. (...) Se tudo permanecesse
ligado ao pecado, seríamos os mais desesperados entre as criaturas. Mas não! A
promessa da vitória do amor de Cristo encerra tudo na misericórdia do Pai.”
Na entrevista que está publicada
em livro intitulado O Nome de Deus é
Misericórdia, entre muitas outras coisas interessante e importantes, o Papa
Francisco conta a história de uma velhinha que lhe pediu para confessar (ele
ainda era bispo auxiliar de Buenos Aires).
«Mas se a senhora não pecou...?»,
perguntou o bispo Bergoglio.
«Todos temos pecados» respondeu a senhora. «Mas o
Senhor talvez não os perdoe...», replicou o bispo.
E ela: «O Senhor perdoa
tudo».
«Como sabe a Senhora?», perguntou o Bispo. «Se o Senhor não perdoasse
tudo, o mundo não existiria».
Misericórdia com os outros
Acontece, no entanto, que “A misericórdia de Deus transforma
o coração do homem (...) tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia”.
Quer isto dizer que somos não
apenas recetores da misericórdia de Deus, mas também capazes de misericórdia
para com os outros.
Com referência ao Papa Francisco,
diz o cardeal Kasper; “Um pequeno gesto de misericórdia entre os homens pode
mudar o mundo para melhor” (Walter Kasper, Papa
Francisco – A Revolução da
Misericórdia e do amor, Paulinas, Portugal. Original alemão de 2015.) [ao lado: ilustração de Sieger Koder, reproduzida daqui]
***
Tradicionalmente, o exercício da
Misericórdia para com os outros realiza-se através das chamadas «14 obras de
Misericórdia», sete «corporais» e sete «espirituais».
Como sabemos, estas obras,
sobretudo as chamadas corporais, apoiam-se no evangelho de S. Mateus (cap. 25),
passagem em que Jesus não apenas aponta quem são as pessoas e os grupos que
devem merecer a nossa atenção preferencial, mas Ele próprio, Jesus, se
identifica com os «pobres»: pessoas com fome, com sede, peregrinos, nus,
doentes presos.
Como nota o Papa, estes «pobres»
não só mendigam pão e água e vestes, mas mendigam também, a nossa conversão.
O pobre chamado Lázaro, do
evangelho de S. Lucas, aparece com uma dupla missão. Por um lado, é alguém com
quem Jesus se identifica ao ponto de nos dizer que o que fizermos a Lázaro
fazemos a Ele, Jesus.
Por outro, Lázaro aparece como
“figura de Cristo que, nos pobres, mendiga a nossa conversão”. “Lázaro – diz o
Papa – é a possibilidade de conversão que Deus nos oferece e talvez não
vejamos”.
O exercício da misericórdia não é só interpessoal
Acresce que essa conversão, este
exercício da misericórdia se não limita à dimensão individual ou interpessoal.
Nota o Papa que a cegueira que faz com que não vejamos Lázaro, o pobre que está
à nossa porta, pode assumir também formas sociais e políticas, como mostram
alguns exemplos:
- os totalitarismos do século XX e
hoje
- as ideologias do pensamento único
e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e reduzir o homem a
massa possível de
instrumentalizar.
- as estruturas de pecado ligadas
a um modelo de falso desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que
torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas e as sociedades mais ricas,
que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a vê-los. (Mensagem do Papa
Francisco para a Quaresma de 2016).
Creio que todos ou a maior parte
destes problemas são do nosso conhecimento. Penso, todavia, que os cristãos em
geral não têm estas questões no primeiro plano das suas preocupações de serem
fiéis à mensagem evangélica. Cada um saberá como e quanto mudar, mas estes são,
porventura, aspetos em que terá que ocorrer a busca de «novos estilos de vida»
de que fala o título deste encontro.
O Papa fala em “escuta orante da Palavra,
especialmente a palavra profética” (Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma
de 2016).
Este é o contexto em que devemos
refletir sobre as obras de Misericórdia. O Papa Francisco insiste em que nunca
devemos separar as obras de misericórdia corporais das obras espirituais. Gostaria
de sublinhar este ponto. Todavia, iremos aqui limitar-nos a refletir apenas
numa ou outra, a título de exemplo. Lembremo-nos dessas obras:
Obras Corporais:
Dar de comer a quem tem fome;
Dar
de beber a quem tem sede;
Vestir os nus;
Dar pousada aos peregrinos; Assistir
aos enfermos;
Visitar os presos;
Enterrar os mortos.
Obras Espirituais:
Dar bons conselhos;
Ensinar os
ignorantes; Corrigir os que erram;
Consolar os tristes;
Perdoar as
injúrias;
Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; Rogar a Deus por
vivos e defuntos.
***
Podemos começar por colocar
algumas questões prévias:
a) Será que as obras de
misericórdia continuam válidas nos nossos dias?
Se olharmos para o mundo que nos
cerca, não vejo que possa haver dúvida quanto à sua atualidade, porventura com
uma ou outra modificação.
b) Será que hoje existem situações
novas que deveriam ser incluídas nas obras de misericórdia?
Creio que sim. Teremos
oportunidade para aludirmos a um ou outro caso.
c) Como deveremos entender as
situações e que atitudes e comportamentos essas situações devem suscitar hoje?
Se a consideração desta alínea não
nos levar a «novos estilos de vida», receio que o resultado do Jubileu será
mais atenuado do que poderá ser.
O que significa «dar de comer» hoje?
Analisemos a primeira obra de
misericórdia: dar de comer a quem tem fome.
a) Quem é aquele que tem fome? Uma
pessoa? Uma família? Um país? Um continente? O mundo?
b) Como devemos entender hoje a
expressão «dar de comer»?
c) Ter fome é um problema que se
resolve em si mesmo, ou exige a solução de um conjunto de problemas?
Comecemos pela situação de uma
pessoa (um indivíduo) com fome (o pobre chamado Lázaro, por exemplo).
Que atitude se espera que a
situação de fome suscite em mim?
A resposta é precisa: dar de
comer.
E o que devemos entender por «dar
de comer»?
[ao lado: Jesus toma os pães, ilustração de Bernadette Lopez, Berna, reproduzida daqui]
Estamos na segunda questão. É uma
questão importante, por duas razões: em primeiro lugar porque a resposta pode
evoluir ao longo do tempo: dar de comer no tempo de S. Mateus não é
necessariamente o mesmo que hoje; em segundo lugar, há formas de «dar de comer»
mais conformes com a dignidade humana e outras que até podem ofender a
dignidade humana, sobretudo de quem «recebe». Também o sentido da dignidade
desenvolveu-se ao longo do tempo.
Convém sermos claros a este
respeito.
A fome é um problema que exige remédio imediato.
Quem tem fome precisa de comer já.
Há um sentido de urgência ligado à situação de fome, urgência que tem de ser
respeitada.
Voltemos ao que disse: o que se
espera que eu faça perante alguém com fome é que lhe dê de comer e já. Tomemos
isto no sentido restrito: matar a fome.
O que resulta deste «dar de
comer»?
Resulta que o faminto já não tem
fome.
E depois?
Depois, passado o efeito
nutricional ou alimentar da refeição, o homem volta a ter fome, regressa à sua
condição de faminto, ou seja, continua a precisar que alguém lhe dê de comer.
Volta à sua condição de Lázaro.
Por outras palavras, continua
pobre.
Demos aqui um salto conceptual: de
fome para pobreza. Estamos na terceira questão.
Se eu me limitar a dar de
comer, eu contribuo para matar a fome, mas a causa dessa fome (pobreza)
mantém-se intacta e continua a causar fome.
Quer isto dizer que dar de comer é
necessário (mata a fome), mas não é suficiente (porque mantém a situação de
pobreza).
Estaremos, assim, diante de duas
atitudes possíveis:
- ou nos dispomos a alimentar o
faminto indefinidamente – diretamente ou através de al- guma instituição –,
mantendo-o numa situação crónica de dependência, que não dignifica nenhuma das
partes;
- ou vamos à busca das causas da
sua fome, para as erradicar, ajudando-o a libertar-se da pobreza. Aqui põe-se,
por exemplo, o problema do emprego, de uma pensão digna, de reforma ou outra,
etc. Na verdade, a situação daquele faminto só fica resolvida com dignidade
quando ele tiver uma fonte de rendimento normal (salário, pensão de reforma, etc.)
e puder comprar o seu alimento como o normal dos cidadãos. Quando já não
precisar de ajudas extraordinárias para se alimentar e satisfazer as suas
necessidades humanas básicas.
Este objectivo requer humanidade,
justiça, solidariedade, compaixão, mas também qualificação científica e técnica,
e pode requerer intervenção social e intervenção política. Pode requerer
associar-me com outros para combater a pobreza.
Donde se vê que, tal como acontece
com a relação entre a caridade e a verdade, também a relação entre a
misericórdia e a verdade é incontornável. “Um cristianismo de caridade sem
verdade – disse Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate –, pode ser
facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência
social mas marginais.” (Bento XVI, Caritas
in Veritate, nº 4)
Motivações fortes e profundas não
dispensam o concurso da verdade, incluindo a verdade científica.
Assim teremos também alargado o
âmbito da nossa preocupação e ação: não nos limitamos a olhar por Lázaro, mas
pelos muitos lázaros que existem neste país e no mundo.
A todos os níveis
Isto é válido para o comportamento
individual de cada um de nós, como é válido para as instituições sociais e
mesmo para a Igreja enquanto comunidade, ou para a sociedade como um todo (à
escala nacional ou à escala mundial).
Recordo uma das passagens do Papa
que atrás citei: “as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento
fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres
as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se
até mesmo a vê-los.”
Estamos perante um fenómeno
coletivo e comunitário em dois sentidos: relativamente às vítimas (“destino dos
pobres”) e aos responsáveis (“as pessoas e as sociedades mais ricas”).
Há pessoas e instituições sociais
que optam pela primeira fase de intervenção: matar a fome, dar de comer em
sentido restrito. E neste patamar realizam uma obra notável e indispensável que
ajuda muitos famintos, de pão e de outros bens. É o plano da assistência,
respeitável em si, desde que se não confunda com assistencialismo.
É preciso explicar o sentido
destas palavras.
Na Europa central e do norte, a
assistência é um direito integrado no rol dos direitos humanos. É um direito
consagrado no artigo 13º da Carta Social Europeia, do Conselho da Europa, carta
que foi ratificada por Portugal.
Assim entendida, a assistência
nada tem de parecido com o que acontece entre nós: a chamada «assistência» é
uma área onde as decisões são aleatórias e discricionárias, dependentes da boa
vontade das pessoas, instituições e governos, quer na sua formulação das
medidas, quer na sua gestão. É isto que costumo designar por assistencialismo.
Não falo de todas as pessoas e instituições, mas creio poder falar em muitas
pessoas e instituições, incluindo instituições públicas e privadas.
Diversamente, a assistência de que
falo é um direito consagrado na lei, definido em termos precisos, de modo a que
o cidadão saiba quais são as regras que regem a medida. Direito que, em caso em
que o cidadão se sinta prejudicado, por negação, cancelamento ou redução de
algum benefício, possa recorrer a uma entidade independente daquela que gere o
recurso, desejavelmente um tribunal.
Por maior que seja a boa vontade
dos que praticam o assistencialismo, este não respeita a dignidade do faminto.
Será melhor eliminar o
assistencialismo e deixar as pessoas passarem fome? Trata-se de um falso
dilema. Não é aceitável colocar em termos alternativos a fome ou a ofensa da
dignidade humana. A única opção aceitável é matar a fome com respeito da
dignidade humana.
Como disse, a assistência, a
assistência respeitadora da dignidade humana, é necessária. Porém, deve ser uma
medida transitória, o que implica que, ao mesmo tempo, se desenvolvam ações que
permitam ao pobre vencer a pobreza e já não precisar de medidas assistenciais.
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, disse o Papa
Francisco:
“Os planos de assistência, que
acorrem a de- terminadas emergências, deveriam considerar- se apenas como respostas
provisórias.” E acrescentou: “Enquanto não forem radicalmente solucionados os
problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da
especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social,
não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum.” (EG 202)
Neste entendimento, se o critério
de sucesso da nossa ação de «dar de comer» for apenas a do número de refeições
que fornecemos ou de famílias que são ajudadas através do Banco Ali- mentar,
estaremos a olhar para um indicador que, embora positivo, é um indicador menor.
O que realmente importa saber é quantas pessoas ou famílias deixaram de ser
pobres, deixaram de precisar da nossa ajuda, por causa da nossa intervenção.
Falei atrás da relação entre a
misericórdia e a verdade. Ao pensarmos em dar de comer com respeito pela
dignidade ocorre ressaltar também a relação da misericórdia com a justiça.
Durante a Audiência geral de
Quarta Feira de Cinzas deste ano, disse o Papa: “se o jubileu não chegar aos
bolsos, não será um verdadeiro jubileu.”
Mais precisamente, explicou o Papa
Francisco que prescrições como a do jubileu “serviam para combater a pobreza e
a desigualdade, garantindo uma vida digna para todos e uma distribuição
equitativa da terra onde habitar e da qual haurir o próprio sustento”. E
acrescentou: “A ideia central é que a terra pertence originariamente a Deus e foi
confiada aos homens (cf. Gn 1, 28-29), e por isso ninguém pode reivindicar para
si a sua posse exclusiva, criando situações de desigualdade. Hoje podemos
reconsiderar isto; cada qual no seu coração pense se possui demasiados bens.
Mas por que motivo não os deixar a quantos nada possuem? Dez por cento,
cinquenta por cento... Digo: que o Espírito Santo inspire cada um de vós.”
Isto tem a ver com um dos
princípios fundamentais do pensamento social da Igreja: o do destino universal
dos bens da terra.
Apoiando-se nesse princípio,
realçado pelo Concílio Vaticano II, afirmou o Papa Paulo VI: “todo o homem tem
direito (...) de nela encontrar o que lhe é necessário.” (Paulo VI, Populorum Progressio, nº 22) E
acrescentou: “Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de
propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados”. (Ibidem)
O conceito cristão de justiça não
poderá ignorar este princípio fundamental do pensamento da Igreja.
- O direito de propriedade
privada, mesmo sobre bens produtivos, tem valor permanente, pela simples razão
de ser um direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de
cada ser humano em relação à sociedade. (João XXIII, Mater et Magistra, 109)
- Também por esta via se vê que
esse direito é um direito universal (baseado na natureza humana, tenha ou não
tenha propriedade).
É precisamente porque a
propriedade privada é tão importante ao ser humano que é um mal social que
existam tantos homens e mulheres a quem é negado esse direito.
Todos conhecemos o modelo de vida
na primeira comunidade cristã de Jerusalém. Lê-se nos Atos dos Apóstolos:
“Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou
casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos
Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse.”
(At 4, 34-35)
Na encíclica Deus Caritas est, o Papa Bento XVI tece algumas considerações a
propósito deste modelo de vida cristã. Antes do mais, afirma o universalismo da
caridade. Como se vê na parábola do Samaritano (Lucas), a nossa caridade deve
exercer-se com aquele que acontece encontrarmos, aquele que precisa de nós,
seja quem for, conhecido ou desconhecido. Porém, ressalvado este universalismo,
afirma Bento XVI que mantém atualidade a noção de que entre os cristãos não
deve haver ninguém necessitado. “[N]o seio da comunidade dos crentes não deve
haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários
para uma vida condigna.” (Bento XVI, Deus Caritas est, nº 20)
É evidente que nada disto se
resolve com sobras. Disse o Papa Francisco na mensagem quaresmal de 2014:
“Desconfio da esmola que não custa nem dói.”
S. Basílio Magno disse numa das
suas homilias o seguinte: “Quando alguém rouba os vestidos de um homem dizemos
que é um ladrão. Não devemos dar o mesmo nome a quem, podendo vestir o nu, não
o faz? O pão que existe na tua despensa pertence ao faminto; o agasalho
pendurado, sem uso, no teu guarda-fatos pertence a quem dele necessita; os
sapatos que se estragam no teu armário pertencem ao descalço; o dinheiro que
acumulas pertence ao pobre” (S. Basílio Magno, Homilia “Destruiré mis
graneros”, sobre Lc. 12, 16-21, 7 (PG 31, 277), citado por González-Carvajal
(1991), pp. 47-48.)
S. Basílio Magno trava um diálogo
com o jovem rico do evangelho de Mateus (Mt 19, 16-26; Mc 10, 17-27; Lc 18,
18-27. Embora os três sinópticos narrem o episódio, Marcos refere-se a um
homem, e Lucas a um chefe. Só Mateus alude a um jovem.)
Recordemos o episódio.
Tendo o jovem perguntado a Jesus o
que deveria fazer de bom para “alcançar a vida eterna”, Jesus propõe-lhe os
mandamentos, destacando o do amor do próximo. Tenho cumprido tudo isto,
responde o jovem, que me falta ainda? Jesus responde: “Se queres ser perfeito,
vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu;
depois, vem e segue-me”. E acrescenta o evangelista que ao ouvir tais palavras,
“o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens”.
S. Basílio aprecia as qualidades
do jovem, designadamente porque era sincero e não havia nas suas perguntas qualquer
fingimento. Mas analisa, também as fraquezas que o levaram a retirar- se.
“Se as tuas pretensões fossem
justificadas, e se observasses desde a juventude o preceito da caridade, dando
a cada um o mesmo que te dás, donde te viria essa profusão de riqueza? O cuidado
que se dá aos pobres consome as fortunas.”
E mais adiante:
“Se tivesses vestido o que estava
nu, se estenderas o teu pão ao faminto e abriras a tua porta aos estranhos, se
te tivesses tornado um pai para os órfãos, se todas as mágoas te magoassem,
sobre que bens chorarias hoje? Custar-te-ia acaso tanto ceder aquilo que te
resta, se há muito cuidasses em distribuí-lo aos pobres?” (S. Basílio Magno, Homilia contra os Ricos, in AA. VV.
(1964), A Pobreza na Igreja, Livraria
Morais Editora, Lisboa, pp. 4-25.)
Estas palavras são do século IV.
Será que hoje devem ter uma leitura aguada, que não chega a interpelar?
Por vezes, ficamos muito
impressionados com a generosidade de alguns empresários e homens ricos que
utilizam parte dos seus lucros ou da sua riqueza para criar fundações para
fazer bem aos pobres ou à sociedade em geral.
Não digo que não devemos apreciar
estes gestos. Mas o problema que se põe é o de saber como é que essas pessoas e
empresários se comportaram na sua atividade económica, de forma a acumular essa
riqueza. Na perspetiva de S. Basílio Magno, essa riqueza seria mesmo deles?
***
Uma outra obra de misericórdia
consiste em «dar pousada aos peregrinos», ou, no dizer de S. Mateus, «recolher
o peregrino».
O profeta Isaías fala em “dar
abrigo aos infelizes sem casa.» (Is. 50, 1-9a)
As obras de misericórdia corporais
e o Evangelho de S. Mateus em que as mesmas se inspiram querem exemplificar
algumas necessidades humanas básicas. Penso que se colocam duas questões a este
respeito: primeiramente, as obras são indicadas a título ilustrativo e não
exaustivo. Em segundo lugar, fazem-no segundo o modo de entender no tempo em
que foram formuladas. [ao lado: Rembrandt, O pai misericordioso e os seus dois filhos, reproduzido daqui]
Resulta daqui que uma das nossas
tarefas deve ser a de verificar se as necessidades então verificadas continuam
a verificar-se hoje e se não haverá hoje novas necessidades que não existiam
noutros tempos.
Hoje, talvez se não ponha com a
mesma acuidade o problema dos peregrinos, mas há outras formas de situações
semelhantes:
- Temos os migrantes (o problema
massivo das migrações do Médio Oriente e da Ásia para a Europa), com mais
incertezas e inseguranças do que as dos peregrinos.
- Temos o fenómeno dos sem-abrigo
(quer como famílias inteiras, quer como indivíduos).
- Temos os idosos que ou são
abandonados ou colocados em lares (por vezes em condições desumanas), porque
não têm lugar na família, nem apoios domiciliários para continuarem a viver na
sua própria casa. “A família é o melhor lar para os idosos” disse o Papa
Francisco. (O nome de Deus é Misericórdia,
p. 91)
Se quisermos ter uma ideia clara
do lugar dos idosos na sociedade, vale a pena lermos o artigo 23º da Carta Social
Europeia do Conselho da Europa.
- Etc.
Na maior parte destes casos, não
se trata apenas de facultar um teto. O teto é importante, mas as pessoas
precisam também de acolhimento, de cuidado, de viver em dignidade.
Na Audiência Geral de Quarta-Feira
de Cinzas de 2016, o Papa Francisco concluiu a sua mensagem com estas palavras:
“Contribuir para edificar uma terra sem pobres quer dizer construir sociedades
sem discriminações, baseadas na solidariedade que leva a compartilhar quanto se
possui, numa divisão de recursos assente na fraternidade e na justiça.”
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