domingo, 12 de março de 2017

Com Misericórdia, novos estilos de vida

Documento 

Na Sessão de Estudos promovida pelo Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, há um ano (5 de Março de 2016), Alfredo Bruto da Costa, que morreu em Novembro últimodesenvolveu o tema “Com Misericórdia, novos estilos de vida”.
Na sua intervenção, ex-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz usa o seu estilo inconfundível, de referência permanente ao texto bíblico, à teologia dos teólogos dos primeiros séculos do cristianismo e ao pensamento  social contemporâneo para propor um caminho exigente de fidelidade ao Evangelho. Publica-se a seguir o texto que serviu de base à sua intervenção, pleno de actualidade e com referências ao tempo de Quaresma que, de novo, os cristãos estão a viver. 


Alfredo Bruto da Costa na Sessão de Estudos do Metanoia, em Março de 2016 
(foto de António José Paulino)

Agradeço o convite para falar neste encontro do Metanoia.
Devo anunciar que não tenho qualquer qualificação para falar da Misericórdia. Aceitei o convite no pressuposto de que os que me convidaram admitem que eu tenha alguma coisa de útil a dizer. É confiado neles que aqui estou.
Peço, pois, que me ouçam com redobrado espírito crítico.

***

Pareceu-me que poderia ter interesse para vós refletir no tema da Misericórdia em três pontos:
a) a importância da misericórdia na mensagem evangélica e na espiritualidade cristã;
b) como devemos entender hoje as exigências da Misericórdia, designadamente as chamadas «obras da misericórdia»;
c) o grau de transformação individual e comunitária que a Misericórdia recomenda. Designadamente, se será um problema de pequenos acertos ou, como se diz no título deste encontro, serão necessários «novos estilos de vida».

A importância da misericórdia na mensagem cristã

Creio que todos nós ouvimos falar, desde criança, da Misericórdia de Deus. «Deus é misericordioso» é uma expressão que certamente nos é familiar. A questão que se coloca é a da noção que tínhamos da Misericórdia de Deus e como a entendemos no conjunto dos atributos de Deus. Deus é justiça, é amor, é omnipotente, etc. É também misericórdia. Como conciliar todos estes atributos de Deus?
Vou socorrer-me do livro A Misericórdia [ed. Lucerna], do cardeal Walter Kasper, que é teólogo, para situar o problema. Faço-o de forma esquemática.
- a misericórdia, que é tão fundamental na Bíblia, ou caiu largamente no esquecimento na teologia sistemática, ou é tratada apenas de uma forma muito pouco cuidada. (...) [A] espiritualidade e a mística vão muito adiante da teologia académica. (p. 19-22)
- se não somos capazes de anunciar de uma forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que padecem de aflição corporal e espiritual, deveríamos calar-nos sobre Deus. (p. 15)
- Depois das terríveis experiências vividas no século XX e no ainda incipiente século XXI, a questão sobre a compaixão de Deus e sobre as pessoas compassivas é hoje mais urgente do que nunca. (p. 15)
- A misericórdia é uma dimensão importante do pontificado do Papa Francisco. Já era preocupação quando ainda era Bispo de Buenos Aires. Mas o Papa situa-se numa sucessão de papas que se ocuparam do assunto: João XXIII (nos seus escritos e no discurso de abertura do Concílio Vaticano II), João Paulo II (designadamente na encíclica Dives in Misericordia, Bento XVI também valorizou o tema, além do mais, na encíclica Caritas in Veritate. (pp. 15-19)
- É necessário repensar do princípio ao fim a doutrina sobre os atributos de Deus, concedendo à misericórdia divina o lugar que lhe pertence. (p. 21)

- Como disse, um dos problemas que tem dificultado o desenvolvimento da teologia da misericórdia parece ser o da compatibilização dos diversos atributos de Deus, designadamente a misericórdia com a justiça de Deus. A este respeito, diz Walter Kasper: “A misericórdia deve ser entendida como a própria justiça de Deus, como a sua santidade.” (p. 24)

A misericórdia de Deus e nós

Na Mensagem para a Quaresma de 2016, texto cuja meditação recomendo muito vivamente, o Papa começa por convidar a Igreja a vivê-la mais intensamente “como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus”.
Vale a pena notar: celebrar e experimentar.
O Papa Francisco tem frases muito fortes para tornar claro que em Deus, a misericórdia não é um atributo secundário. Vejamos.
“A misericórdia, diz, (...) é o primeiro atributo de Deus”. (Papa Francisco, O Nome de Deus é Misericórdia, p. 71).  
Já Bento XVI tinha afirmado que “A Misericórdia é na realidade o núcleo central da mensagem evangélica”, acrescentando: “é o nome de Deus”. (Cit. em Papa Francisco, O Nome de Deus é Misericórdia, p. 25).
Como sabemos isso?
O Papa Francisco nota que “O mistério da misericórdia divina desvenda-se no decurso da história da aliança entre Deus e o seu povo Israel”. O Papa apresenta o drama da infidelidade de Israel como um drama de amor, e conclui dizendo que este drama de amor “alcança o seu ápice no Filho feito homem. N’Ele [Filho], Deus derrama a sua misericórdia sem limites até ao ponto de fazer d’Ele a Misericórdia encarnada”. Jesus é a Misericórdia que se fez homem.
Na homilia da Missa de abertura do Jubileu e da Porta Santa, a 8 de Dezembro de 2015, disse Francisco:
“(...) a própria história do pecado só é compreensível à luz do amor que perdoa. (...) Se tudo permanecesse ligado ao pecado, seríamos os mais desesperados entre as criaturas. Mas não! A promessa da vitória do amor de Cristo encerra tudo na misericórdia do Pai.”
Na entrevista que está publicada em livro intitulado O Nome de Deus é Misericórdia, entre muitas outras coisas interessante e importantes, o Papa Francisco conta a história de uma velhinha que lhe pediu para confessar (ele ainda era bispo auxiliar de Buenos Aires).
«Mas se a senhora não pecou...?», perguntou o bispo Bergoglio.
«Todos temos pecados» respondeu a senhora. «Mas o Senhor talvez não os perdoe...», replicou o bispo.
E ela: «O Senhor perdoa tudo».
«Como sabe a Senhora?», perguntou o Bispo. «Se o Senhor não perdoasse tudo, o mundo não existiria».

Misericórdia com os outros

Acontece, no entanto, que “A misericórdia de Deus transforma o coração do homem (...) tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia”.
Quer isto dizer que somos não apenas recetores da misericórdia de Deus, mas também capazes de misericórdia para com os outros.
Com referência ao Papa Francisco, diz o cardeal Kasper; “Um pequeno gesto de misericórdia entre os homens pode mudar o mundo para melhor” (Walter Kasper, Papa Francisco – A Revolução da Misericórdia e do amor, Paulinas, Portugal. Original alemão de 2015.) [ao lado: ilustração de Sieger Koder, reproduzida daqui]


***

Tradicionalmente, o exercício da Misericórdia para com os outros realiza-se através das chamadas «14 obras de Misericórdia», sete «corporais» e sete «espirituais».
Como sabemos, estas obras, sobretudo as chamadas corporais, apoiam-se no evangelho de S. Mateus (cap. 25), passagem em que Jesus não apenas aponta quem são as pessoas e os grupos que devem merecer a nossa atenção preferencial, mas Ele próprio, Jesus, se identifica com os «pobres»: pessoas com fome, com sede, peregrinos, nus, doentes presos.
Como nota o Papa, estes «pobres» não só mendigam pão e água e vestes, mas mendigam também, a nossa conversão.
O pobre chamado Lázaro, do evangelho de S. Lucas, aparece com uma dupla missão. Por um lado, é alguém com quem Jesus se identifica ao ponto de nos dizer que o que fizermos a Lázaro fazemos a Ele, Jesus.
Por outro, Lázaro aparece como “figura de Cristo que, nos pobres, mendiga a nossa conversão”. “Lázaro – diz o Papa – é a possibilidade de conversão que Deus nos oferece e talvez não vejamos”.

O exercício da misericórdia não é só interpessoal

Acresce que essa conversão, este exercício da misericórdia se não limita à dimensão individual ou interpessoal. Nota o Papa que a cegueira que faz com que não vejamos Lázaro, o pobre que está à nossa porta, pode assumir também formas sociais e políticas, como mostram alguns exemplos:
- os totalitarismos do século XX e hoje 

- as ideologias do pensamento único e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e reduzir o homem a massa possível de 
instrumentalizar. 

- as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a vê-los. (Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2016). 

Creio que todos ou a maior parte destes problemas são do nosso conhecimento. Penso, todavia, que os cristãos em geral não têm estas questões no primeiro plano das suas preocupações de serem fiéis à mensagem evangélica. Cada um saberá como e quanto mudar, mas estes são, porventura, aspetos em que terá que ocorrer a busca de «novos estilos de vida» de que fala o título deste encontro. 
O Papa fala em “escuta orante da Palavra, especialmente a palavra profética” (Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2016).
Este é o contexto em que devemos refletir sobre as obras de Misericórdia. O Papa Francisco insiste em que nunca devemos separar as obras de misericórdia corporais das obras espirituais. Gostaria de sublinhar este ponto. Todavia, iremos aqui limitar-nos a refletir apenas numa ou outra, a título de exemplo. Lembremo-nos dessas obras: 


Obras Corporais:

Dar de comer a quem tem fome;
Dar de beber a quem tem sede;
Vestir os nus;
Dar pousada aos peregrinos; Assistir aos enfermos;
Visitar os presos;
Enterrar os mortos.

Obras Espirituais:

Dar bons conselhos;
Ensinar os ignorantes; Corrigir os que erram;
Consolar os tristes;
Perdoar as injúrias;
Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; Rogar a Deus por vivos e defuntos.

***

Podemos começar por colocar algumas questões prévias:
a) Será que as obras de misericórdia continuam válidas nos nossos dias?
Se olharmos para o mundo que nos cerca, não vejo que possa haver dúvida quanto à sua atualidade, porventura com uma ou outra modificação.
b) Será que hoje existem situações novas que deveriam ser incluídas nas obras de misericórdia?
Creio que sim. Teremos oportunidade para aludirmos a um ou outro caso.
c) Como deveremos entender as situações e que atitudes e comportamentos essas situações devem suscitar hoje?
Se a consideração desta alínea não nos levar a «novos estilos de vida», receio que o resultado do Jubileu será mais atenuado do que poderá ser.

O que significa «dar de comer» hoje?

Analisemos a primeira obra de misericórdia: dar de comer a quem tem fome.
a) Quem é aquele que tem fome? Uma pessoa? Uma família? Um país? Um continente? O mundo?
b) Como devemos entender hoje a expressão «dar de comer»?
c) Ter fome é um problema que se resolve em si mesmo, ou exige a solução de um conjunto de problemas?

Comecemos pela situação de uma pessoa (um indivíduo) com fome (o pobre chamado Lázaro, por exemplo).
Que atitude se espera que a situação de fome suscite em mim?
A resposta é precisa: dar de comer.
E o que devemos entender por «dar de comer»? 
[ao lado: Jesus toma os pãesilustração de Bernadette Lopez, Berna, reproduzida daqui]

Estamos na segunda questão. É uma questão importante, por duas razões: em primeiro lugar porque a resposta pode evoluir ao longo do tempo: dar de comer no tempo de S. Mateus não é necessariamente o mesmo que hoje; em segundo lugar, há formas de «dar de comer» mais conformes com a dignidade humana e outras que até podem ofender a dignidade humana, sobretudo de quem «recebe». Também o sentido da dignidade desenvolveu-se ao longo do tempo.
Convém sermos claros a este respeito.
A fome é um problema que exige remédio imediato.
Quem tem fome precisa de comer já. Há um sentido de urgência ligado à situação de fome, urgência que tem de ser respeitada.
Voltemos ao que disse: o que se espera que eu faça perante alguém com fome é que lhe dê de comer e já. Tomemos isto no sentido restrito: matar a fome.
O que resulta deste «dar de comer»?
Resulta que o faminto já não tem fome.
E depois?
Depois, passado o efeito nutricional ou alimentar da refeição, o homem volta a ter fome, regressa à sua condição de faminto, ou seja, continua a precisar que alguém lhe dê de comer. Volta à sua condição de Lázaro.
Por outras palavras, continua pobre.

Demos aqui um salto conceptual: de fome para pobreza. Estamos na terceira questão.
Se eu me limitar a dar de comer, eu contribuo para matar a fome, mas a causa dessa fome (pobreza) mantém-se intacta e continua a causar fome.
Quer isto dizer que dar de comer é necessário (mata a fome), mas não é suficiente (porque mantém a situação de pobreza).
Estaremos, assim, diante de duas atitudes possíveis:
- ou nos dispomos a alimentar o faminto indefinidamente – diretamente ou através de al- guma instituição –, mantendo-o numa situação crónica de dependência, que não dignifica nenhuma das partes; 

- ou vamos à busca das causas da sua fome, para as erradicar, ajudando-o a libertar-se da pobreza. Aqui põe-se, por exemplo, o problema do emprego, de uma pensão digna, de reforma ou outra, etc. Na verdade, a situação daquele faminto só fica resolvida com dignidade quando ele tiver uma fonte de rendimento normal (salário, pensão de reforma, etc.) e puder comprar o seu alimento como o normal dos cidadãos. Quando já não precisar de ajudas extraordinárias para se alimentar e satisfazer as suas necessidades humanas básicas.
Este objectivo requer humanidade, justiça, solidariedade, compaixão, mas também qualificação científica e técnica, e pode requerer intervenção social e intervenção política. Pode requerer associar-me com outros para combater a pobreza. 

Donde se vê que, tal como acontece com a relação entre a caridade e a verdade, também a relação entre a misericórdia e a verdade é incontornável. “Um cristianismo de caridade sem verdade – disse Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate –, pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais.” (Bento XVI, Caritas in Veritate, nº 4)
Motivações fortes e profundas não dispensam o concurso da verdade, incluindo a verdade científica. 

Assim teremos também alargado o âmbito da nossa preocupação e ação: não nos limitamos a olhar por Lázaro, mas pelos muitos lázaros que existem neste país e no mundo.

A todos os níveis

Isto é válido para o comportamento individual de cada um de nós, como é válido para as instituições sociais e mesmo para a Igreja enquanto comunidade, ou para a sociedade como um todo (à escala nacional ou à escala mundial).
Recordo uma das passagens do Papa que atrás citei: “as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a vê-los.”
Estamos perante um fenómeno coletivo e comunitário em dois sentidos: relativamente às vítimas (“destino dos pobres”) e aos responsáveis (“as pessoas e as sociedades mais ricas”).
Há pessoas e instituições sociais que optam pela primeira fase de intervenção: matar a fome, dar de comer em sentido restrito. E neste patamar realizam uma obra notável e indispensável que ajuda muitos famintos, de pão e de outros bens. É o plano da assistência, respeitável em si, desde que se não confunda com assistencialismo.
É preciso explicar o sentido destas palavras.
Na Europa central e do norte, a assistência é um direito integrado no rol dos direitos humanos. É um direito consagrado no artigo 13º da Carta Social Europeia, do Conselho da Europa, carta que foi ratificada por Portugal.
Assim entendida, a assistência nada tem de parecido com o que acontece entre nós: a chamada «assistência» é uma área onde as decisões são aleatórias e discricionárias, dependentes da boa vontade das pessoas, instituições e governos, quer na sua formulação das medidas, quer na sua gestão. É isto que costumo designar por assistencialismo. Não falo de todas as pessoas e instituições, mas creio poder falar em muitas pessoas e instituições, incluindo instituições públicas e privadas.
Diversamente, a assistência de que falo é um direito consagrado na lei, definido em termos precisos, de modo a que o cidadão saiba quais são as regras que regem a medida. Direito que, em caso em que o cidadão se sinta prejudicado, por negação, cancelamento ou redução de algum benefício, possa recorrer a uma entidade independente daquela que gere o recurso, desejavelmente um tribunal.
Por maior que seja a boa vontade dos que praticam o assistencialismo, este não respeita a dignidade do faminto.
Será melhor eliminar o assistencialismo e deixar as pessoas passarem fome? Trata-se de um falso dilema. Não é aceitável colocar em termos alternativos a fome ou a ofensa da dignidade humana. A única opção aceitável é matar a fome com respeito da dignidade humana.
Como disse, a assistência, a assistência respeitadora da dignidade humana, é necessária. Porém, deve ser uma medida transitória, o que implica que, ao mesmo tempo, se desenvolvam ações que permitam ao pobre vencer a pobreza e já não precisar de medidas assistenciais.
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, disse o Papa Francisco:
“Os planos de assistência, que acorrem a de- terminadas emergências, deveriam considerar- se apenas como respostas provisórias.” E acrescentou: “Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum.” (EG 202)
Neste entendimento, se o critério de sucesso da nossa ação de «dar de comer» for apenas a do número de refeições que fornecemos ou de famílias que são ajudadas através do Banco Ali- mentar, estaremos a olhar para um indicador que, embora positivo, é um indicador menor. O que realmente importa saber é quantas pessoas ou famílias deixaram de ser pobres, deixaram de precisar da nossa ajuda, por causa da nossa intervenção.
Falei atrás da relação entre a misericórdia e a verdade. Ao pensarmos em dar de comer com respeito pela dignidade ocorre ressaltar também a relação da misericórdia com a justiça.
Durante a Audiência geral de Quarta Feira de Cinzas deste ano, disse o Papa: “se o jubileu não chegar aos bolsos, não será um verdadeiro jubileu.”
Mais precisamente, explicou o Papa Francisco que prescrições como a do jubileu “serviam para combater a pobreza e a desigualdade, garantindo uma vida digna para todos e uma distribuição equitativa da terra onde habitar e da qual haurir o próprio sustento”. E acrescentou: “A ideia central é que a terra pertence originariamente a Deus e foi confiada aos homens (cf. Gn 1, 28-29), e por isso ninguém pode reivindicar para si a sua posse exclusiva, criando situações de desigualdade. Hoje podemos reconsiderar isto; cada qual no seu coração pense se possui demasiados bens. Mas por que motivo não os deixar a quantos nada possuem? Dez por cento, cinquenta por cento... Digo: que o Espírito Santo inspire cada um de vós.”
Isto tem a ver com um dos princípios fundamentais do pensamento social da Igreja: o do destino universal dos bens da terra.
Apoiando-se nesse princípio, realçado pelo Concílio Vaticano II, afirmou o Papa Paulo VI: “todo o homem tem direito (...) de nela encontrar o que lhe é necessário.” (Paulo VI, Populorum Progressio, nº 22) E acrescentou: “Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados”. (Ibidem)
O conceito cristão de justiça não poderá ignorar este princípio fundamental do pensamento da Igreja.
- O direito de propriedade privada, mesmo sobre bens produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de ser um direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de cada ser humano em relação à sociedade. (João XXIII, Mater et Magistra, 109)
- Também por esta via se vê que esse direito é um direito universal (baseado na natureza humana, tenha ou não tenha propriedade).

É precisamente porque a propriedade privada é tão importante ao ser humano que é um mal social que existam tantos homens e mulheres a quem é negado esse direito.
Todos conhecemos o modelo de vida na primeira comunidade cristã de Jerusalém. Lê-se nos Atos dos Apóstolos: “Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse.” (At 4, 34-35) 

Na encíclica Deus Caritas est, o Papa Bento XVI tece algumas considerações a propósito deste modelo de vida cristã. Antes do mais, afirma o universalismo da caridade. Como se vê na parábola do Samaritano (Lucas), a nossa caridade deve exercer-se com aquele que acontece encontrarmos, aquele que precisa de nós, seja quem for, conhecido ou desconhecido. Porém, ressalvado este universalismo, afirma Bento XVI que mantém atualidade a noção de que entre os cristãos não deve haver ninguém necessitado. “[N]o seio da comunidade dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna.” (Bento XVI, Deus Caritas est, nº 20)
É evidente que nada disto se resolve com sobras. Disse o Papa Francisco na mensagem quaresmal de 2014: “Desconfio da esmola que não custa nem dói.”
S. Basílio Magno disse numa das suas homilias o seguinte: “Quando alguém rouba os vestidos de um homem dizemos que é um ladrão. Não devemos dar o mesmo nome a quem, podendo vestir o nu, não o faz? O pão que existe na tua despensa pertence ao faminto; o agasalho pendurado, sem uso, no teu guarda-fatos pertence a quem dele necessita; os sapatos que se estragam no teu armário pertencem ao descalço; o dinheiro que acumulas pertence ao pobre” (S. Basílio Magno, Homilia “Destruiré mis graneros”, sobre Lc. 12, 16-21, 7 (PG 31, 277), citado por González-Carvajal (1991), pp. 47-48.)

S. Basílio Magno trava um diálogo com o jovem rico do evangelho de Mateus (Mt 19, 16-26; Mc 10, 17-27; Lc 18, 18-27. Embora os três sinópticos narrem o episódio, Marcos refere-se a um homem, e Lucas a um chefe. Só Mateus alude a um jovem.)
Recordemos o episódio.
Tendo o jovem perguntado a Jesus o que deveria fazer de bom para “alcançar a vida eterna”, Jesus propõe-lhe os mandamentos, destacando o do amor do próximo. Tenho cumprido tudo isto, responde o jovem, que me falta ainda? Jesus responde: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me”. E acrescenta o evangelista que ao ouvir tais palavras, “o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens”.
S. Basílio aprecia as qualidades do jovem, designadamente porque era sincero e não havia nas suas perguntas qualquer fingimento. Mas analisa, também as fraquezas que o levaram a retirar- se.
“Se as tuas pretensões fossem justificadas, e se observasses desde a juventude o preceito da caridade, dando a cada um o mesmo que te dás, donde te viria essa profusão de riqueza? O cuidado que se dá aos pobres consome as fortunas.”
E mais adiante:
“Se tivesses vestido o que estava nu, se estenderas o teu pão ao faminto e abriras a tua porta aos estranhos, se te tivesses tornado um pai para os órfãos, se todas as mágoas te magoassem, sobre que bens chorarias hoje? Custar-te-ia acaso tanto ceder aquilo que te resta, se há muito cuidasses em distribuí-lo aos pobres?” (S. Basílio Magno, Homilia contra os Ricos, in AA. VV. (1964), A Pobreza na Igreja, Livraria Morais Editora, Lisboa, pp. 4-25.)
Estas palavras são do século IV. Será que hoje devem ter uma leitura aguada, que não chega a interpelar?
Por vezes, ficamos muito impressionados com a generosidade de alguns empresários e homens ricos que utilizam parte dos seus lucros ou da sua riqueza para criar fundações para fazer bem aos pobres ou à sociedade em geral.
Não digo que não devemos apreciar estes gestos. Mas o problema que se põe é o de saber como é que essas pessoas e empresários se comportaram na sua atividade económica, de forma a acumular essa riqueza. Na perspetiva de S. Basílio Magno, essa riqueza seria mesmo deles?

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Uma outra obra de misericórdia consiste em «dar pousada aos peregrinos», ou, no dizer de S. Mateus, «recolher o peregrino».
O profeta Isaías fala em “dar abrigo aos infelizes sem casa.» (Is. 50, 1-9a)
As obras de misericórdia corporais e o Evangelho de S. Mateus em que as mesmas se inspiram querem exemplificar algumas necessidades humanas básicas. Penso que se colocam duas questões a este respeito: primeiramente, as obras são indicadas a título ilustrativo e não exaustivo. Em segundo lugar, fazem-no segundo o modo de entender no tempo em que foram formuladas. [ao lado: Rembrandt, O pai misericordioso e os seus dois filhos, reproduzido daqui]

Resulta daqui que uma das nossas tarefas deve ser a de verificar se as necessidades então verificadas continuam a verificar-se hoje e se não haverá hoje novas necessidades que não existiam noutros tempos.
Hoje, talvez se não ponha com a mesma acuidade o problema dos peregrinos, mas há outras formas de situações semelhantes:
- Temos os migrantes (o problema massivo das migrações do Médio Oriente e da Ásia para a Europa), com mais incertezas e inseguranças do que as dos peregrinos.
- Temos o fenómeno dos sem-abrigo (quer como famílias inteiras, quer como indivíduos).
- Temos os idosos que ou são abandonados ou colocados em lares (por vezes em condições desumanas), porque não têm lugar na família, nem apoios domiciliários para continuarem a viver na sua própria casa. “A família é o melhor lar para os idosos” disse o Papa Francisco. (O nome de Deus é Misericórdia, p. 91)
Se quisermos ter uma ideia clara do lugar dos idosos na sociedade, vale a pena lermos o artigo 23º da Carta Social Europeia do Conselho da Europa.
- Etc.
Na maior parte destes casos, não se trata apenas de facultar um teto. O teto é importante, mas as pessoas precisam também de acolhimento, de cuidado, de viver em dignidade.

Na Audiência Geral de Quarta-Feira de Cinzas de 2016, o Papa Francisco concluiu a sua mensagem com estas palavras: “Contribuir para edificar uma terra sem pobres quer dizer construir sociedades sem discriminações, baseadas na solidariedade que leva a compartilhar quanto se possui, numa divisão de recursos assente na fraternidade e na justiça.”

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