In Memoriam (Porto, 10/02/1933 – Lisboa, 15/09/2017)
As últimas semanas ficaram marcadas pela partida de pessoas que se
tinham tornado referências em diversos âmbitos e para diferentes gerações. Depois
do bispo do Porto, D. António Francisco, e antes de D. Manuel Martins, primeiro bispo de Setúbal, e de
Jorge Listopad, encenador e escritor, morreu, no dia 15 de Setembro, o padre José Maria
Cabral Ferreira. Natural do Porto, onde viveu e trabalhou durante as últimas
décadas, estava em Lisboa quando morreu, pois para ali tinha sido encaminhado para
receber cuidados de saúde.
Jesuíta há 65 anos, padre há 54
anos, sociólogo de formação e profissão, o padre José Maria era uma pessoa que
marcava todos os que com ele se cruzavam. Um deles, companheiro na Ordem e
amigo de muitos anos, foi o padre Vasco Pinto de Magalhães, que publicou esta
semana, na página dos Jesuítas de Portugal, o testemunho que a seguir se reproduz (o título e subtítulos são aqui acrescentados
ao texto).
Vida e morte do P. José Maria Cabral Ferreira sj
(texto do padre Vasco Pinto de Magalhães sj)
Falar do padre Zé Maria, na hora
da sua morte?… Sinto um turbilhão de imagens e de conversas que se atropelam no
meu espírito. Uma amizade espontânea e construída, sobretudo nestes últimos 30
anos, dezoito deles a viver na mesma comunidade jesuíta do Porto, não se resume
facilmente. Uma das suas características era a de fazer e deixar amigos por todo
o lado. Como se nada fosse!
Posso partilhar algumas coisas que
fizemos juntos e foram marcantes, recorrendo ao meu “Álbum de memórias”. Abro à
sorte, aqui, por exemplo, estamos na Sicília. Percorremo-la, nesse verão, de
uma ponta à outra, contemplativamente… Ele sempre se distraiu com as horas! Mas
sempre havia onde ficar, pois em todo o lado (e isto também no resto da Itália)
encontrava um casal amigo, um arquiteto seu conhecido, um padre de paróquia
aonde, antes, teria vindo ajudar na Páscoa, etc. Agora, aqui, esta foto é no
Centro Pedro Arrupe (Istituto di formazione politica), que ele tanto queria
visitar em Palermo: conversando sobre os grandes desafios impostos pela Máfia e
as questões sociais graves da região. Mas, no dia seguinte, sem horas marcadas,
em Agrigento, no Vale dos Templos, mergulhámos num grande silêncio só
interrompido quando, de repente, ele começava a recitar algum texto dos
clássicos ou uma poesia que parecia responder a alguma observação minha sobre a
paz ou a estética do lugar, mas ele ia muito mais além.
Torno a abrir o Álbum e, agora,
estamos em Exercícios Espirituais, nada mais, nada menos do que no grande
Mosteiro cisterciense de Santa Maria la Real de Oseira. Oito dias, bem
inacianos, dando pontos de meditação um ao outro, e participando nas horas
canónicas cantadas no coro dos monges. Largos passeios silenciosos; uma paragem
debaixo de um grande castanheiro e lá vinha a sua reflexão a partir das
saborosas bolachas que os monges fabricavam e nos ofereciam e dali nos levava o
pensamento até S. Bento e à construção da Europa (em Ora et Labora), e daí saltava para o seu Douro vinhateiro ou para
as pequenas aldeias de Trás-os-Montes onde tinha trabalhado e deixado grande
parte da sua alma social.
Aulas que marcaram gerações
O padre Zé Maria não era um
sociólogo de cátedra. As suas aulas, quer na Faculdade de Arquitetura quer no
Instituto de Serviço Social do Porto, marcaram fortemente várias gerações. Mas
onde se sentia mesmo bem era no trabalho de campo, ou melhor, comunicando com as
“gentes” de todo o tipo e com todo o afecto. O tempo e cuidado que dedicava à
JARC, aos grupos que vinham das suas terras reunir com ele ao Porto, a alegria
com que participava nas celebrações da Comunidade da Serra do Pilar e a
admiração pelos seus amigos “padres operários”, a presença no Banco Alimentar
do Porto, a importância que dava aos encontros e às pessoas ligadas ao
Metanoia, à CNIS (Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade) de
que foi um dos fundadores e, como ele próprio dizia, a sua “quase-obsessão” pelo
“Bairro Português de Malaca” onde trabalhou, viveu e escreveu, mostram bem a
sua inquietação pela justiça e pelos “esquecidos”, juntamente com seu sentido
crítico e ao mesmo tempo apaixonado, fazem o seu retrato.
Era um intelectual afectivo e um
afectivo intelectual, para fascínio de uns e irritação de outros. De facto não
sabia falar, numa conferência, numa homilia ou cara a cara sem trespassar e/ou
comentar o seu pensamento lúcido pela poesia (por vezes em francês ou em
latim…) que o faziam perder-se num voo lírico que já nos escapava. Um
distraído, ou um híper concentrado no seu modo de sentir o Reino de Deus? Eu
diria: uma forma própria de contemplativo na acção, não cabendo no
convencional.
Voltando ao meu Álbum interior,
abro agora na página de férias na Praia do Baleal. O p. Zé Maria sonhava com
esses dias de descanso, sem horários rígidos, em pequena comunidade com
jesuítas mais novos com quem se entretinha a conhecer e a trocar opiniões.
Aqueles dias faziam parte do programa anual. E o prato forte do dia era
caminhar aqueles cinco quilómetros pela areia até Peniche. Aí saíamos. E o
ritual era: um jornal, um café e uma visita a uma daquelas igrejas de azulejos
tão típicas da zona. Ele conhecia-as de cor, mas a conversa sempre chamava a
atenção para algo de novo. Não queria voltar logo e a sua intenção “escondida”
era avançar mais uns quilómetros até à Senhora dos Remédios, junto ao cabo
Carvoeiro. Aí se perdia… até que eu dissesse: são horas, temos de completar a conversa
e as nossas mútuas “confissões” pela praia fora, antes da próxima maré cheia.
Futebol: “mais importância do que as pessoas julgam”
Há outros dois capítulos do Álbum
que, neste retrato, não posso esquecer: o futebol e a política. O Zé sempre
gostou de jogar à bola e tinha muita jeiteira. Ainda tentou o rugby quando
passou pela Agronomia, sem ir muito longe. Mas o que agora interessa é o modo
como entendia e definia (e até ligava) essas duas actividades sociais,
envolventes do povo, identitárias, quase formas de religiosidade. E ele expressamente
falou sobre isso.
Em 1996, deu uma grande entrevista
a António Baldaia (para a Página da Educação)
publicada com o título “Um homem do Porto que viveu muito Douro e algum
Oriente”. Vamos “ouvi-lo”:
Uma das perguntas era:
considera-se mais tripeiro ou mais portista?
- “…É um tema com muito mais
importância do que as pessoas lhe atribuem, ou dizem que atribuem. No fundo,
creio que às vezes se disfarça a importância disso. Estou a referir-me ao
futebol: o futebol e a cidade; o futebol e a identificação local e regional; o
futebol como fenómeno religioso, como creio que funciona para muita gente, como
substituto funcional das religiões – o futebol tem uma liturgia, tem uma
simbologia, tem os seus rituais! (…) A capacidade de afirmação no campo
desportivo foi – e creio que ainda é muito – um suporte de identificação
pessoal e colectiva. Para a minha geração, o FC Porto foi uma bandeira de
identificação com a região, face a um poder bastante central. O que não quer
dizer, obviamente, que as pessoas nortenhas devam ser todas simpatizantes do
FCP. Mas creio que, apesar de tudo, este tipo de identificação serve, muitas
vezes, de suporte face a outras entidades mais poderosas – as pessoas desta
geração não fazem ideia do que era a nossa pertinácia em aguentarmos a troça
constante e sucessiva de anos a fio a perder. Eu bem sei o que isso é.”
Liberdade: “ser criativo dentro das regras – e isso é Arte”
Não foi, certamente, por razões de
conveniência ou interesse pessoal que dedicou tantos anos da sua vida ao
trabalho na Comissão de Coordenação da Região Norte. Razões profundas de um
cristianismo incarnado e prático, praticante, através de uma responsabilidade
autárquica quer para com a própria cidade (ensinava urbanismo em Arquitetura)
quer no compromisso com as regiões pobres e mais distantes do centro.
Voltando à entrevista,
perguntaram-lhe também: olhando para a sociedade actual, acha que há uma
“geração rasca”? Respondeu: - “Não há, mas há rasquices. E problemas muito
sérios a que é preciso dizer não. Por exemplo, a questão da autoridade – não se
vive sem autoridade; e a questão do respeito pelas instituições – as
instituições são a liberdade, são democracia. O homem não cabe nas
instituições, mas não vive sem elas. Portanto, o que é preciso é viver nelas e
depois inventar outras – isso é que demora e é difícil, mas as instituições são
a linguagem, são as possibilidades de entendimento. Por outro lado, a liberdade
não é viver fora das regras, é ser criativo dentro delas – isso chama-se Arte.”
Os grandes problemas são, então, a
crise de autoridade e o desrespeito pelas instituições?
– “Acho que sim. Os miúdos
vivem sem autoridade (os pais têm medo) e depois vão por aí fora e chocam com
os outros, porque (para eles) liberdade é não ter autoridade… Mas a autoridade
é a liberdade partilhada e consensualizada – na partilha dessa aceitação há a
libertação, e a isso chama-se Democracia.”
E noutro passo da entrevista
comentou: “A juventude não é exactamente como as colheitas de vinho; é uma
realidade perene, mas é verdade que há situações muito difíceis. Na minha
geração, nascíamos muito mais caracterizados, muito mais ligados a formas
culturais e sub-culturais, e muitas vezes as mudanças sociais eram entre dois
estádios. Hoje, a grande mudança é para uma situação de mudança; ou seja, a
estabilidade tem de ser a estabilidade na mudança. Quer dizer, é ser capaz de
viver a mudar, e isto é difícil – exige realmente muita mudança, pondo em risco
a nossa estabilidade, ao mesmo tempo que há o risco de nos perdermos um bocado
nisto.”
“Acho que os jovens vivem isto e
muitas outras coisas melhor do que nós; mas não sei dizer isto – não gosto de
dizer melhor ou pior, porque acho que os Homens são sagrados: procuram e querem
desesperadamente o Bem, e não o Mal; provavelmente, procuram o Bem através de
coisas que lhes fazem mal… (parece-me que é assim).”
“Agora, é verdade que as
construções sociais não facilitam encontrar a Harmonia e o Bem, construídos
coletivamente. E os jovens não terão a sensação da identidade perdida, mas,
provavelmente, muitas vezes não saberão o que é ter uma identidade
relativamente definida (parece-me isto, mas não tenho a certeza que seja
assim). E esta situação é muito consentânea com a desvalorização de todas as
coisas – neste sentido, da fragilidade e do efémero de todas as coisas.”
Realidade descartável e perda de fé
Era bom e desafiante ouvi-lo falar
com todo o cuidado para não julgar e incluir! E continuou:
“A realidade material de hoje é
descartável. As coisas não são feitas para durar. Antigamente comprava-se um
casaco porque era bom, e durava muito tempo. Hoje, bom ou mau, ao fim de certo
tempo já não é bom porque o temos há muito tempo. Esta mentalidade pode
aproximar-se um bocado de tudo, inclusive do convívio e do uso das pessoas.”
“No fundo, há uma certa perda de
fé – e aqui não quero dizer fé religiosa; a fé é a lei humana por essência! Num
mundo tão rápido, que acelerou tanto, a gente demora muito pouco em todas as
coisas, sendo difícil dar o valor devido às pessoas e a todas as coisas.”
O padre José Maria escolhia muito
bem as suas leituras (e combinava-as) da arte à teologia, das questões sociais
à poesia. As amizades aconteciam-lhe com toda a naturalidade com a sua especial
capacidade de se fazer próximo. Cuidava muito a escrita à mão, quase desenhada,
com os amigos distantes. Nos grupos e encontros em que participava, com
frequência, deixava as pessoas perplexas, pois, sendo ele um defensor das
instituições e organizações, intervinha saltando fora das regras e das
convenções, levando a pensar que se teria despistado… Ou era apenas a tal
criatividade que tanto buscava?
Vou deixar de lado as memórias de
infância e as relações familiares deste trineto de Dona Antónia Ferreira sempre
pronto a voltar ao Douro, a revisitar a Quinta do Monsul onde, em cada esquina,
recordava com emoção os ditos e os feitos de seu pai, as conversas e as
caminhadas, os piqueniques…
Por fim, abro mais uma vez o meu
Álbum, escolhendo uma página dos últimos anos. Quando já começavam a ser
visíveis alguns sinais de debilidade propus-lhe aproveitar o tempo, que então
lhe parecia sobrar, fazendo a tradução do francês de dois ensaios do Pe. Pierre
Teilhard de Chardin, um “Sobre a Felicidade” e outro “Sobre o Amor”, duas peças
que considero fundamentais e que não havia ainda editadas em português. O Pe.
Zé Maria animou-se, pegou no seu francês, culto e actualizado e, apesar de
alguns “apesares” próprios do tempo, levou a tarefa, nada fácil, ao fim com
grande rigor, qualidade e alegria. As ed. Tenacitas publicaram esse livro que
faltava.
Fecho aqui o nosso Álbum, porque
há muito a dizer e a agradecer. Um homem não se resume numa narrativa, nem cabe
numa definição; e a amizade oferece uma objectividade própria.
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