O Papa Francisco pronunciou em 11 de setembro último um discurso curto mas de grande alcance, pelo seu significado. Foi a propósito dos 25 anos do Catecismo da Igreja Católica. O texto pode ser lido em Português aqui: http://bit.ly/2zhaYHg. Entretanto, já esta semana, o historiador italiano Massimo
Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos,
publicou um artigo de comentário a esse discurso no sítio de La Croix International, que publicamos a seguir, recorrendo à tradução feita por Moisés Sbardelotto no site noticioso do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil. Eis o texto:
"O legado
teológico de Joseph Ratzinger pode ser significativo, mas,
provavelmente, não do modo como os seus fãs neotradicionalistas podem pensar.
Um importante
estudo de caso que sugere isso está ligado ao recente discurso que o Papa
Francisco proferiu no 25º aniversário do Catecismo da Igreja Católica.
O discurso é significativo no modo como confirma vários componentes teológicos
chave desse pontificado e do atual momento do catolicismo.
Acima de
tudo, Francisco começa citando o discurso de São João XXIII na
abertura do Concílio Vaticano II, no dia 11 de outubro de 1962, comumente
conhecido pelas suas primeiras palavras, Gaudet Mater Ecclesia.
“‘É
necessário’, afirmava o papa [João XXIII] no seu discurso de abertura, ‘que a
Igreja não se distancie do sagrado patrimônio das verdades recebidas dos
Padres’”, disse o Papa Francisco.
“‘Mas, ao mesmo
tempo, ela deve olhar também para o presente, para as novas condições e novas
formas de vida que abriram novos caminhos ao apostolado católico’.”
Em todos os
seus grandes documentos e discursos, Francisco se inspira no
discurso Gaudet Mater Ecclesia.
E, em seu
discurso na semana passada, ele confirmou que é teólogo da e na tradição
católica, quando se trata do desenvolvimento do seu ensino sobre certas
questões importantes, como a pena de morte.
“Essa
problemática não pode ser reduzida a uma mera recordação de ensinamento
histórico, sem fazer com que emerja não só o progresso na doutrina por obra dos
últimos pontífices, mas também a mudança na consciência do povo cristão, que
rejeita uma atitude complacente em relação a uma pena que fere profundamente a
dignidade humana”, disse Francisco.
Ele, então,
continuou com uma passagem que não é importante só em relação à pena de morte,
mas também para a compreensão da relação entre o Evangelho e o ensino da
Igreja.
“Deve-se
afirmar com força a condenação da pena de morte pois é uma medida desumana que
humilha, independentemente de como seja perseguida, a dignidade humana. Ela é,
em si mesma, contrária ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir
uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e da qual só Deus, em
última análise, é o verdadeiro juiz e garante”, disse.
Essa passagem é
um prelúdio para a parte-chave do discurso do Papa Francisco, que se
encontra na segunda seção, em que ele explica o dinamismo da doutrina católica.
Por quatro vezes ele cita do famoso 8º parágrafo da constituição do Vaticano
II sobre a revelação divina, Dei Verbum, que reenquadrou a relação
entre Escritura, tradição e magistério.
Muitos
estudiosos católicos e não católicos ilustraram a importância crucial desse
documento – do teólogo protestante mais importante do século XX, Karl Barth, em um famoso livro
publicado pouco depois do Concílio, ao contemporâneo jesuíta
franco-alemão, Christoph
Theobald.
Comparado com
outros documentos do Vaticano II (especialmente a constituição sobre
a Igreja, Lumen Gentium), a Dei Verbum não aparece muito
frequentemente nas falas ou nos escritos de Francisco. No entanto, ele
ocupa um lugar privilegiado nas muitas obras teológicas de Joseph
Ratzinger-Bento XVI.
Há exatamente
50 anos, o jovem padre Ratzinger publicou um comentário sobre a Dei
Verbum, que – na opinião de muitos, incluindo a minha – ainda é o melhor ensaio
histórico-teológico para se compreender esse documento capital na história da
tradição católica.
O Papa
Francisco, no seu discurso que marca o 25º aniversário do Catecismo, cita
abundantemente a Dei Verbum 8, que oferece uma descrição positiva e
cumulativa da tradição:
“‘A Igreja, na
sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as
gerações tudo aquilo que ela é e tudo aquilo em que acredita’ (Conc. Ecum. Vat.
II, Const. dogm. Dei Verbum, 8). Os Padres, no Concílio, não podiam encontrar
uma expressão sintética mais feliz para expressar a natureza e missão da
Igreja. Não só na ‘doutrina’ mas também na ‘vida’ e no ‘culto’, é oferecida aos
crentes a capacidade de ser Povo de Deus. Com uma consequencialidade de verbos,
a Constituição dogmática sobre a Divina Revelação exprime a dinâmica resultante
do processo: ‘Essa Tradição progride (…), cresce (…), tende incessantemente à
plenitude da verdade, até que cheguem a cumprimento as palavras de Deus’
(ibid.). […] “Deus que, muitas vezes e de muitos modos, falou aos nossos pais,
nos tempos antigos’ (Hb 1, 1), ‘não cessa de falar com a Esposa do seu Filho’
(Dei Verbum, 8).”
A minha
intuição é de que Francisco quis conscientizar a sua plateia de que
seu pontificado conhece o papel fundamental que Joseph Ratzinger desempenhou
na elaboração da Dei Verbum e que o comentário de Ratzinger de
1967 ainda é fundamental para se entender esse documento. Não há dúvida de
que Franciscoapresenta um argumento muito “ratzingeriano” sobre o
desenvolvimento da tradição.
Em seu
comentário, Ratzinger apontou para as deficiências da Dei Verbum ao
apresentar um argumento sobre a necessidade da Igreja de ser capaz de corrigir,
quando necessário, possíveis distorções na tradição católica. Especificamente
em relação à Dei Verbum 8, o futuro Bento XVI escreveu que
a Igreja deve ser capaz de criticar a tradição quando esta não corresponde ao
Evangelho.
“A tradição não
deve ser considerada apenas afirmativamente, mas também criticamente; nós temos
a Escritura como um critério para essa crítica indispensável da tradição, e a
tradição, portanto, deve estar sempre relacionada com ela e ser medida por ela”,
escreveu ele.
Foi basicamente
isso que o Papa Francisco fez em seu discurso na semana passada,
quando ele apontou para o tratamento inadequado do Catecismo sobre a
pena de morte.
Nesse caso
particular, e também em outras questões que ele comentou durante o seu
pontificado, Francisco aplicou a leitura crítica da Dei Verbum por
parte de Ratzinger – a saber, a Igreja deve medir a tradição pelo
Evangelho, e a tradição não pode ser a medida do Evangelho.
Essa
compreensão dinâmica da tradição é o que aterroriza os oponentes do papa. Só
podemos nos perguntar se eles sabem o quanto os textos papais estão alinhados
com a teologia do papa agora aposentado.
O discurso
de Francisco para o 25º aniversário do Catecismo é
importante porque mostra que os seus oponentes se retiraram para um beco sem
saída intelectual. O problema deles não é meramente com a teologia do papa
argentino ou com o Vaticano II. Não, fundamentalmente, o real problema
deles é a compreensão deles da tradição – a relação entre Escritura, tradição
teológica, doutrina, leis e práxis da Igreja – que é plenamente católica e que
também é a de Joseph Ratzinger.
Não se pode
rejeitar o discurso do Papa Francisco para o aniversário do Catecismosem
também rejeitar a interpretação de Ratzinger sobre a teologia da
tradição na Dei Verbum e no Vaticano II (paradoxalmente, o
que possibilitou aquelas interpretações neotradicionalistas de língua inglesa
sobre Ratzinger foi um “desenvolvimento” particular dentro do
pensamento teológico de Joseph Ratzinger, especialmente entre a década
após o Vaticano II e o seu pontificado, que deslocou a questão da liturgia).
O discurso
de Francisco e a forma como alguns intelectuais católicos
conservadores reagiram a ele lançam uma luz sobre a situação intelectual dos
opositores deste pontificado e sobre três fenômenos deste momento católico.
Primeiro, o
neotradicionalismo é uma rendição católica a uma mentalidade teológica próxima
do fundamentalismo bíblico. Não é minha intenção fazer uma declaração geral
sobre todos os neotradicionalistas que, mais ou menos recentemente, entraram em
plena comunhão com Roma, porque eles representam um fenômeno muito importante e
rico dentro do catolicismo.
No entanto, é
difícil negar que alguns dos seus porta-vozes mais públicos não possuem a
habilidade de articular uma visão católica da relação entre Escritura,
tradição, magistério e teologia. Isso é visível na sua rejeição à compreensão
dinâmica da tradição, o que torna impossível para eles explicar como a
inter-relação entre novos estudos bíblicos, tradição teológica e magistério
papal já produziu desenvolvimentos no ensino católico.
Dois exemplos
claros são como a doutrina se desenvolveu sobre a liberdade religiosa e a
escravidão. Portanto, o Papa Francisco não apenas é católico, mas
também é mais ratzingeriano do que os seus críticos neotradicionalistas.
Segundo,
enquanto Francisco apresentou um poderoso argumento tanto contra o
neotradicionalismo teológico, quanto contra o antitradicionalismo, ele também
fez uma declaração clara sobre o papel do papado como ministério a serviço da
tradição da Igreja sujeita ao Evangelho.
Ao fazer isso,
ele enviou uma mensagem contundente tanto aos católicos conservadores, quanto
liberais, que temem que ele inaugurou um novo tipo de papalismo ou de
ultramontanismo, em que o Romano Pontífice oferece a primeira e última palavra
sobre todas as questões da Igreja. Ao contrário, o pontificado de Francisco está
defendendo uma compreensão católica da Escritura, da tradição e do ensino da
Igreja.
Terceiro, os
neotradicionalistas católicos escolheram um momento particular na história da
Igreja como o paradigma válido e estático da “tradição católica”. Ele se situa
em algum lugar antes do Vaticano II, talvez até o Concílio Vaticano I (1869-1870)
e o antimodernista Pio X.
Mas eles também
escolheram um momento particular na história intelectual do seu herói, Bento
XVI, e adotaram uma versão abreviada e ignorante dessa história. A rejeição
deles da teologia da Dei Verbum sobre a tradição é uma receita para o
desastre na Igreja de hoje.
Uma coisa é
ler Joseph Ratzinger à luz da tradição católica, como o Papa
Franciscoestá fazendo. Outra coisa bem diferente é ler a tradição católica à
luz dos últimos enunciados de Joseph Ratzinger, que é aquilo que alguns
dos “ratzingerianos” parecem estar fazendo".
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