terça-feira, 17 de outubro de 2017

Uma compreensão dinâmica da tradição da Igreja: o caso da pena de morte


O Papa Francisco pronunciou em 11 de setembro último um discurso curto mas de grande alcance, pelo seu significado. Foi a propósito dos 25 anos do Catecismo da Igreja Católica. O texto pode ser lido em Português aqui: http://bit.ly/2zhaYHg. Entretanto, já esta semana, o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, publicou um artigo de comentário a esse discurso no sítio de La Croix International, que publicamos a seguir, recorrendo à tradução feita por Moisés Sbardelotto no site noticioso do Instituto Humanitas da Unisinos, Brasil. Eis o texto:

"O legado teológico de Joseph Ratzinger pode ser significativo, mas, provavelmente, não do modo como os seus fãs neotradicionalistas podem pensar.
Um importante estudo de caso que sugere isso está ligado ao recente discurso que o Papa Francisco proferiu no 25º aniversário do Catecismo da Igreja Católica. O discurso é significativo no modo como confirma vários componentes teológicos chave desse pontificado e do atual momento do catolicismo.

Acima de tudo, Francisco começa citando o discurso de São João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II, no dia 11 de outubro de 1962, comumente conhecido pelas suas primeiras palavras, Gaudet Mater Ecclesia.
“‘É necessário’, afirmava o papa [João XXIII] no seu discurso de abertura, ‘que a Igreja não se distancie do sagrado patrimônio das verdades recebidas dos Padres’”, disse o Papa Francisco.
“‘Mas, ao mesmo tempo, ela deve olhar também para o presente, para as novas condições e novas formas de vida que abriram novos caminhos ao apostolado católico’.”
Em todos os seus grandes documentos e discursos, Francisco se inspira no discurso Gaudet Mater Ecclesia.
E, em seu discurso na semana passada, ele confirmou que é teólogo da e na tradição católica, quando se trata do desenvolvimento do seu ensino sobre certas questões importantes, como a pena de morte.
“Essa problemática não pode ser reduzida a uma mera recordação de ensinamento histórico, sem fazer com que emerja não só o progresso na doutrina por obra dos últimos pontífices, mas também a mudança na consciência do povo cristão, que rejeita uma atitude complacente em relação a uma pena que fere profundamente a dignidade humana”, disse Francisco.
Ele, então, continuou com uma passagem que não é importante só em relação à pena de morte, mas também para a compreensão da relação entre o Evangelho e o ensino da Igreja.
“Deve-se afirmar com força a condenação da pena de morte pois é uma medida desumana que humilha, independentemente de como seja perseguida, a dignidade humana. Ela é, em si mesma, contrária ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e da qual só Deus, em última análise, é o verdadeiro juiz e garante”, disse.
Essa passagem é um prelúdio para a parte-chave do discurso do Papa Francisco, que se encontra na segunda seção, em que ele explica o dinamismo da doutrina católica. Por quatro vezes ele cita do famoso 8º parágrafo da constituição do Vaticano II sobre a revelação divina, Dei Verbum, que reenquadrou a relação entre Escritura, tradição e magistério.
Muitos estudiosos católicos e não católicos ilustraram a importância crucial desse documento – do teólogo protestante mais importante do século XX, Karl Barth, em um famoso livro publicado pouco depois do Concílio, ao contemporâneo jesuíta franco-alemão, Christoph Theobald.
Comparado com outros documentos do Vaticano II (especialmente a constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium), a Dei Verbum não aparece muito frequentemente nas falas ou nos escritos de Francisco. No entanto, ele ocupa um lugar privilegiado nas muitas obras teológicas de Joseph Ratzinger-Bento XVI.
Há exatamente 50 anos, o jovem padre Ratzinger publicou um comentário sobre a Dei Verbum, que – na opinião de muitos, incluindo a minha – ainda é o melhor ensaio histórico-teológico para se compreender esse documento capital na história da tradição católica.
O Papa Francisco, no seu discurso que marca o 25º aniversário do Catecismo, cita abundantemente a Dei Verbum 8, que oferece uma descrição positiva e cumulativa da tradição:
“‘A Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo aquilo em que acredita’ (Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 8). Os Padres, no Concílio, não podiam encontrar uma expressão sintética mais feliz para expressar a natureza e missão da Igreja. Não só na ‘doutrina’ mas também na ‘vida’ e no ‘culto’, é oferecida aos crentes a capacidade de ser Povo de Deus. Com uma consequencialidade de verbos, a Constituição dogmática sobre a Divina Revelação exprime a dinâmica resultante do processo: ‘Essa Tradição progride (…), cresce (…), tende incessantemente à plenitude da verdade, até que cheguem a cumprimento as palavras de Deus’ (ibid.). […] “Deus que, muitas vezes e de muitos modos, falou aos nossos pais, nos tempos antigos’ (Hb 1, 1), ‘não cessa de falar com a Esposa do seu Filho’ (Dei Verbum, 8).”
A minha intuição é de que Francisco quis conscientizar a sua plateia de que seu pontificado conhece o papel fundamental que Joseph Ratzinger desempenhou na elaboração da Dei Verbum e que o comentário de Ratzinger de 1967 ainda é fundamental para se entender esse documento. Não há dúvida de que Franciscoapresenta um argumento muito “ratzingeriano” sobre o desenvolvimento da tradição.
Em seu comentário, Ratzinger apontou para as deficiências da Dei Verbum ao apresentar um argumento sobre a necessidade da Igreja de ser capaz de corrigir, quando necessário, possíveis distorções na tradição católica. Especificamente em relação à Dei Verbum 8, o futuro Bento XVI escreveu que a Igreja deve ser capaz de criticar a tradição quando esta não corresponde ao Evangelho.
“A tradição não deve ser considerada apenas afirmativamente, mas também criticamente; nós temos a Escritura como um critério para essa crítica indispensável da tradição, e a tradição, portanto, deve estar sempre relacionada com ela e ser medida por ela”, escreveu ele.
Foi basicamente isso que o Papa Francisco fez em seu discurso na semana passada, quando ele apontou para o tratamento inadequado do Catecismo sobre a pena de morte.
Nesse caso particular, e também em outras questões que ele comentou durante o seu pontificado, Francisco aplicou a leitura crítica da Dei Verbum por parte de Ratzinger – a saber, a Igreja deve medir a tradição pelo Evangelho, e a tradição não pode ser a medida do Evangelho.
Essa compreensão dinâmica da tradição é o que aterroriza os oponentes do papa. Só podemos nos perguntar se eles sabem o quanto os textos papais estão alinhados com a teologia do papa agora aposentado.
O discurso de Francisco para o 25º aniversário do Catecismo é importante porque mostra que os seus oponentes se retiraram para um beco sem saída intelectual. O problema deles não é meramente com a teologia do papa argentino ou com o Vaticano II. Não, fundamentalmente, o real problema deles é a compreensão deles da tradição – a relação entre Escritura, tradição teológica, doutrina, leis e práxis da Igreja – que é plenamente católica e que também é a de Joseph Ratzinger.
Não se pode rejeitar o discurso do Papa Francisco para o aniversário do Catecismosem também rejeitar a interpretação de Ratzinger sobre a teologia da tradição na Dei Verbum e no Vaticano II (paradoxalmente, o que possibilitou aquelas interpretações neotradicionalistas de língua inglesa sobre Ratzinger foi um “desenvolvimento” particular dentro do pensamento teológico de Joseph Ratzinger, especialmente entre a década após o Vaticano II e o seu pontificado, que deslocou a questão da liturgia).
O discurso de Francisco e a forma como alguns intelectuais católicos conservadores reagiram a ele lançam uma luz sobre a situação intelectual dos opositores deste pontificado e sobre três fenômenos deste momento católico.
Primeiro, o neotradicionalismo é uma rendição católica a uma mentalidade teológica próxima do fundamentalismo bíblico. Não é minha intenção fazer uma declaração geral sobre todos os neotradicionalistas que, mais ou menos recentemente, entraram em plena comunhão com Roma, porque eles representam um fenômeno muito importante e rico dentro do catolicismo.
No entanto, é difícil negar que alguns dos seus porta-vozes mais públicos não possuem a habilidade de articular uma visão católica da relação entre Escritura, tradição, magistério e teologia. Isso é visível na sua rejeição à compreensão dinâmica da tradição, o que torna impossível para eles explicar como a inter-relação entre novos estudos bíblicos, tradição teológica e magistério papal já produziu desenvolvimentos no ensino católico.
Dois exemplos claros são como a doutrina se desenvolveu sobre a liberdade religiosa e a escravidão. Portanto, o Papa Francisco não apenas é católico, mas também é mais ratzingeriano do que os seus críticos neotradicionalistas.
Segundo, enquanto Francisco apresentou um poderoso argumento tanto contra o neotradicionalismo teológico, quanto contra o antitradicionalismo, ele também fez uma declaração clara sobre o papel do papado como ministério a serviço da tradição da Igreja sujeita ao Evangelho.
Ao fazer isso, ele enviou uma mensagem contundente tanto aos católicos conservadores, quanto liberais, que temem que ele inaugurou um novo tipo de papalismo ou de ultramontanismo, em que o Romano Pontífice oferece a primeira e última palavra sobre todas as questões da Igreja. Ao contrário, o pontificado de Francisco está defendendo uma compreensão católica da Escritura, da tradição e do ensino da Igreja.
Terceiro, os neotradicionalistas católicos escolheram um momento particular na história da Igreja como o paradigma válido e estático da “tradição católica”. Ele se situa em algum lugar antes do Vaticano II, talvez até o Concílio Vaticano I (1869-1870) e o antimodernista Pio X.
Mas eles também escolheram um momento particular na história intelectual do seu herói, Bento XVI, e adotaram uma versão abreviada e ignorante dessa história. A rejeição deles da teologia da Dei Verbum sobre a tradição é uma receita para o desastre na Igreja de hoje.

Uma coisa é ler Joseph Ratzinger à luz da tradição católica, como o Papa Franciscoestá fazendo. Outra coisa bem diferente é ler a tradição católica à luz dos últimos enunciados de Joseph Ratzinger, que é aquilo que alguns dos “ratzingerianos” parecem estar fazendo".

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