Comentário
No
debate instalado sobre o chamado “cheque-ensino” há muitos falsos argumentos
que estão a ser trocados. Desde logo, porque em Portugal se parte de uma
divisão estanque entre ensino público e ensino privado. Em outros países (por
exemplo no norte da Europa), as bases do sistema de ensino são definidas pelo
Estado mas, depois, são os pais e os professores que se organizam para criar
escolas e definir, para elas, vários aspectos concretos de currículos,
programas e orientação.
Neste debate, as escolas
católicas – pelo peso que têm no sistema de ensino e no país – deveriam
participar de uma outra maneira, recordando precisamente aqueles que foram, em
muitos casos, os objectivos que estiveram presentes em muitas das suas origens:
projectos de inclusão para crianças de meios sociais desfavorecidos e de
alargamento da educação de base a toda a sociedade.
Não vale a pena ficar pela
discussão sobre se as escolas católicas são apenas para “meninos bem”. Essa,
sabemos, é a verdade em muitos casos. Mas todos conhecemos casos de famílias em
dificuldade que têm os seus filhos a estudar em escolas privadas católicas,
graças aos apoios que a escola dá. E também há pais que preferem sacrificar
outros bens (férias, carros, móveis) para ter os seus filhos a estudar em
escolas católicas. Por isso, a casuística não serve (completamente) para este
debate.
O que as escolas católicas
deveriam estar a reflectir, isso sim, é de que modo podem voltar a ser factores
de inclusão (e não de exclusão) e lugares onde se promove a educação para todos
– mesmo para pais e para o meio envolvente. Mesmo sabendo que já muita coisa se
faz, a reflexão sobre as origens de cada escola (ou do respectivo instituto
religioso) deveria levar a discussão a um outro nível, sobretudo quando crescem
na sociedade portuguesa os factores de exclusão, provocados pelas políticas de
austeridade dirigidas sobretudo para quem já não aguentava a vida que levava.
Vale a pena, por isso,
regressar à crónica de José Vítor
Malheiros no Público de 13 de Agosto, com o título "A direita continua a odiar a escola pública", onde a questão do
cheque-ensino era abordada. Embora o ponto de partida seja diferente daquele
que aqui me trouxe, reproduzo a seguir a crónica na íntegra, mas permito-me
sublinhar dois parágrafos que mereciam ser objecto de reflexão aprofundada nas
escolas católicas.
O Governo, através do
Ministério da Educação e Ciência, decidiu aproveitar a situação de estado de
choque em que vive a sociedade portuguesa para lançar mais uma investida contra
a escola pública, ressuscitando a velha questão do chamado “cheque-ensino”, bandeira
original do neoliberalismo.
A direita reaccionária
sempre odiou a escola pública que, sendo o instrumento de eleição para o
combate às desigualdades sociais, constitui o principal obstáculo ao seu
programa de reforço do poder e da riqueza de uma casta de privilegiados à custa
do empobrecimento e do embrutecimento da restante população. O programa é
velho, mas é sempre novo porque a direita reaccionária nunca desistiu dele e a
ele regressa sempre que a ocasião se proporciona, adaptando o argumentário ao
ar do tempo.
O Governo apresenta a
questão do “cheque-ensino” como uma medida que visa garantir “o direito de
opção educativa das famílias”, o que significa, em português corrente, que o
Governo considera que os pais têm o direito de escolher as escolas que os seus
filhos devem frequentar e que essa escolha deve poder ser feita não apenas de
entre o universo das escolas públicas, mas no universo de todas as escolas,
públicas, privadas ou cooperativas. Às vezes o Governo fala mesmo no “dever” do
Estado “apoiar o acesso das famílias às escolas particulares e cooperativas.”
A propaganda do Governo, e
a do neoliberalismo em geral, usa neste debate como palavra-chave a “liberdade
de escolha” dos cidadãos. E a liberdade de escolha é uma coisa boa por
definição. Quem não é a favor da liberdade de escolha? Só que esta liberdade de
escolha é uma falácia, porque não existe nenhum direito à escola privada que o
Estado deva garantir a todos os cidadãos. O que existe, sim, é o dever do
Estado fornecer educação de qualidade a todos os cidadãos, independentemente
das suas condições particulares. A pobres e ricos, brancos e pretos, ateus e
budistas. Frequentar uma escola privada não faz parte dos direitos
humanos ou dos direitos cívicos de que um cidadão goza e não faz certamente
parte dos deveres do Estado garantir esse “direito”. Numa sociedade
capitalista, como a nossa, os cidadãos têm acesso aos serviços privados que
possam comprar e nada mais. E não compete ao Estado (a todos nós) financiar
serviços privados a não ser em condições excepcionais, quando seja evidente que
essa entidade particular oferece um serviço insubstituível de interesse
público, de acesso universal e em condições vantajosas para a comunidade. Não é
o caso da escola privada.
O “cheque-ensino” visa vários
objectivos: financiar empresas privadas, no âmbito do programa ideológico da
direita, de transferência de recursos financeiros para o sector privado e de
pauperização do Estado, à la PPP; desviar recursos da escola
pública de forma a reduzir o âmbito e a qualidade da oferta (o que está a
suceder); impor a ideia de uma escola privada “boa”, que o Governo quer
proporcionar a todos, e de uma escola publica “má”, que deve ser marginalizada;
e, como corolário dos anteriores, dar origem a um sistema dual de ensino, de
qualidade diferenciada, para ricos e pobres.
Há no discurso do Governo
uma outra falácia, não menos grave do que a anterior: a ideia de que as escolas
públicas e privadas são estabelecimentos de ensino absolutamente equivalentes,
com culturas e práticas em tudo semelhantes e cuja única diferença é a forma de
propriedade. De facto, não é assim. A escola pública tem, antes de mais, uma
dimensão inclusiva e universal, que a escola privada não tem (nem tem de ter).
A escola pública é igualitária no acesso e no funcionamento, por vontade, por
definição e por missão e a escola privada não o é nem tem de ser. Dizer que a
escola privada é igual à escola pública releva da mesma miopia e da mesma falta
de sentido social que leva a dizer que a escola serve apenas para fornecer
conhecimentos técnicos de forma a satisfazer as necessidades do mercado de
trabalho, como pretende o actual Ministério da Educação e Ciência.
É por isso que comparar o
custo de um aluno na escola pública e o de um aluno na escola privada não tem
sentido. A comparação serve actualmente a escola pública, mais barata, mas
mesmo que ela custasse o dobro da privada ela deveria continuar a ser suportada
pela comunidade. Porque a escola pública trabalha para transformar todos os
indivíduos do país em cidadãos e não apenas para produzir alguns técnicos bem
pagos. A grande diferença é que a escola pública quer que todos sejamos
melhores e assume esse objectivo em relação a todos, mesmo aos mais
problemáticos. A escola privada é selectiva por natureza – faz com frequência a
mais injusta das selecções, a selecção de classe – e convive com naturalidade
com um sistema de castas que a escola pública tem como missão destruir. Fazer outsourcing da
educação pública a um sistema produtor de exclusão como a escola privada não
faz sentido.
Há uma outra razão para um
Estado democrático privilegiar a escola pública: a sua qualidade. A escola
pública, em Portugal e no mundo, é talvez o mais bem sucedido de todos os
empreendimentos humanos, tendo sido central no combate à ignorância, à pobreza
e à injustiça e na construção da democracia, da cultura e da ciência modernas.
Algo que deveria fazer pensar os nossos governantes, se o seu objectivo não se
resumisse a servir os poderosos à custa dos mais fracos.
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