Há vinte anos, a
22 de Dezembro de 1996, publiquei no Público
uma entrevista a Mário Soares, que deixara o cargo de Presidente a 9
de Março desse ano. O pretexto era o facto de que Soares participara em várias
iniciativas de carácter religioso. O mistério da morte fascinava e perturbava o
antigo Presidente, como confessava. Fica aqui o texto na íntegra, tal como está publicado no livro Diálogos com Deus
em Fundo (ed. Gradiva).
Depois de ter
deixado a Presidência da República, Mário Soares participou, como convidado
muito especial, em diferentes iniciativas católicas ou de instituições próximas
da Igreja. Embora sempre se tenha assumido como agnóstico, afirma que, “no
plano filosófico”, se voltou a interessar pelos temas das origens e do destino
da humanidade. Nesta entrevista, respondida por escrito, admite que o mistério
da morte o “fascina” e o “perturba”, e que, nos últimos anos, se insinua com
mais frequência nas suas reflexões. E cita a frase bíblica “és pó e em pó te
hás-de tornar”, para dizer que a morte é a única realidade indubitável, da qual
não se deve fazer “abstracção”.
Oposicionista à
ditadura do Estado Novo, Mário Soares nasceu a 7 de Dezembro de 1924, em
Lisboa. Esteve preso uma dúzia de vezes, chegando a ser deportado para a ilha
de São Tomé. No tempo de Marcello Caetano, foi expulso de Portugal e exilou-se
em França, em 1970, onde se encontrava quando se deu a Revolução de 25 de Abril
de 1974. Em 1973, participou na fundação do Partido Socialista, que passou a
liderar e à frente do qual veio a vencer as eleições para a Assembleia
Constituinte, em 1975 e, depois, para a nova Assembleia da República, em 1976.
Entre Maio de 1974 e Março de 1975 exerceu ainda o cargo de ministro dos
Negócios Estrangeiros de vários governos provisórios.
Foi
primeiro-ministro por três vezes (1976-77; 1978 e 1983-85), qualidade em que
assinou o tratado de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia
(hoje União Europeia), em Junho de 1985, e Presidente da República em dois
mandatos (1986-96). Desde a sua saída do cargo, passou a dirigir a Fundação
Mário Soares. Foi eleito, em 1999, deputado ao Parlamento Europeu, onde esteve
cinco anos. Em 2005, candidatou-se de novo à Presidência da República e foi
derrotado. Em 2007, foi nomeado presidente da Comissão da Liberdade Religiosa,
tendo também exercido diversos cargos internacionais. Publicou vários livros,
entre os quais Portugal Amordaçado, os dez volumes de Intervenções (que recolhem os textos
enquanto Presidente da República), Português e Europeu, Incursões
Literárias, Um Mundo
Inquietante e ainda os volumes de entrevistas com Maria João Avilez (Soares),
Mário Bettencourt Resendes e Teresa de Sousa.
A sua fé, diz,
está apenas no homem, embora admita que talvez se possa definir em termos religiosos
com uma expressão usada por Jean Guitton: “Um místico que se desconhece”. A fé,
disse-o nas Jornadas de Universitários Católicos, é uma graça. Mas acrescentou:
"nunca fui tocado por essa graça". E foi em nome da humanidade e do
humanismo, no qual diz acreditar profundamente, que participou em diferentes
iniciativas católicas antes e depois de deixar o cargo de Presidente da
República – falou, por diversas vezes, nos encontros internacionais pela paz
promovidos pela Comunidade de Santo Egídio.
Aceitou, depois de
deixar o cargo de Presidente da República, participar em diversas iniciativas
católicas ou de instituições próximas da Igreja. Que sentido dá a essa
participação?
Participei, que me
lembre, apenas em três iniciativas, que se poderão classificar como religiosas
ou, melhor, que partiram de organizações conotadas com a Igreja.
A primeira teve
lugar em Roma, onde fui a convite da Comunidade de Santo Egídio, em Outubro
último, para participar nas X Jornadas de Paz, através do diálogo ecuménico. Há
já alguns anos havia sido convidado, então para Assis, para participar nessas
interessantes jornadas, que não só reúnem crentes de todas as grandes religiões
como também não crentes. Foi, aliás, nesta última qualidade, que fui convidado,
como outros agnósticos confessos, como Jean Daniel do Nouvel Observateur e o director do prestigiado jornal italiano La Repubblica, Eugenio Scalfari.
A segunda foi na
Universidade Católica, para estar presente e usar da palavra numa homenagem ao
padre Joaquim Alves Correia, que tive a honra de conhecer pessoalmente, e que
foi uma grande figura da Igreja – exilado na América, onde faleceu, perseguido
por Salazar –, um católico progressista “avant la lettre”. [Este episódio é recordado também numa crónica de Anselmo Borges publicada hoje no DN]
A terceira foi um
convite do Movimento Católico de Estudantes para fazer uma conferência no final
de um seminário que teve lugar no Centro Diocesano do Porto, sobre o humanismo
do próximo século.
Aceitei intervir
nestas três iniciativas, tão diferentes umas das outras, mas todas
significativas e importantes, por as ter achado de grande valor pedagógico,
pelo interesse que me mereceram em si mesmas e ainda pelo espírito de abertura
e de diálogo, sem preconceitos, que revelaram. Não sendo católico, como todos
sabem, senti-me muito honrado pelos convites e por ter participado, livremente,
em todas as iniciativas, tão diferentes entre si. Repito, senti-me
completamente à vontade e compreendido nos pontos de vista que me foi dado
expressar.
O facto de o seu
pai ser católico teve alguma influência na sua opção perante a religião?
O meu falecido Pai
foi sempre e é, ainda hoje, para mim, uma grande referência moral e política.
Era um católico sincero, muito piedoso, um espírito religioso, que foi padre e
depois casou, catolicamente, com a minha Mãe, no fim da vida, muito preocupado
com a salvação, mas de uma enorme tolerância e abertura de espírito. Nunca me
impôs qualquer comportamento religioso, deixando-me inteiramente livre nas
minhas opções.
Quando ele começou
a perceber que o filho não tinha fé, não entrou em conflito?
Quando percebeu
que eu não tinha fé, respeitou sempre a minha posição, designadamente em
matéria de casamento ou de não baptismo religioso dos meus filhos. O problema
religioso, após a adolescência, foi uma questão que, para mim, deixou de se
pôr, entre nós, e que em nada afectou as nossas relações de enorme carinho
mútuo.
E a conversão da
sua esposa ao catolicismo, depois do acidente do seu filho: provocou algum
efeito na sua vida pessoal?
São conhecidas as
condições dramáticas em que o problema da fé se lhe impôs. Não somos casados
pela Igreja. Sempre foi muito discreta nesse particular. Achamos ambos que se
trata de uma opção íntima, da esfera individual própria, de cada um de nós, que
sabemos não nos é comum e, por isso mesmo, não é motivo de discussão ou sequer
de conversa. Vivemo-la no respeito mútuo e na tolerância recíproca. Bem como os
meus dois filhos.
A sua relação com
a Maçonaria pressupõe alguma espécie de “fé” deísta, tendo em conta a ideia de
um supremo arquitecto?
A minha relação
com a Maçonaria, que aliás muito respeito, na medida em que é também uma escola
de livre pensamento e de solidariedade, foi muito episódica e datada. Nunca fui
particularmente sensível ao ritual nem aos aspectos digamos esotéricos da
Maçonaria. Essa relação teve lugar, apenas, em França, durante o meu exílio, em
circunstâncias de particular isolamento. Mas nunca teve nada a ver com a “fé
deísta”, que nunca partilhei – em França falavam no “supremo arquitecto do
universo” – mas tão-só com a “fé no homem e no progresso”, outro tipo de
crença, que vem do iluminismo, embora de natureza porventura diferente.
Essa “fé no homem”
é uma afirmação que costuma fazer. Mas também tem dito que não sabe “se existe
Deus”. São coisas diferentes? Como define a sua posição religiosa actual?
Talvez seja, como
disse uma vez Jean Guitton, “um místico que se desconhece”. Não sei... Em
qualquer caso, acredito no homem e tenho fé no progresso da condição humana e
no destino do homem. Mas não acredito em Deus, ou pelo menos num Deus
antropomórfico, preocupado com os nossos problemas humanos, nem, muito menos,
na imortalidade da alma.
A minha posição
religiosa actual? Considero-me, como sempre me considerei, agnóstico. Não tenho
certezas sobre coisa nenhuma (só dúvidas e interrogações) nem, menos ainda,
certezas negativas, como acaso terei tido nos tempos em que estive mais próximo
do marxismo.
Mas, no plano
filosófico, se quiser, voltaram a interessar-me alguns problemas fundamentais,
que põem as diversas religiões e filosofias, sobre as nossas origens e destino
e sobre o estudo comparado das diferentes religiões. Nesse sentido, é
interessante verificar a aproximação, pela coexistência no respeito mútuo e
pelo diálogo permanente entre a ciência moderna e algumas religiões mais
elaboradas, como o cristianismo ou o budismo...
Como avalia a
pluralidade religiosa na sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, o fenómeno
inverso dos nacionalismos que se confundem com formas extremistas de professar
uma religião?
O professor
americano Samuel Huntington, que eu trouxe a Portugal no âmbito das
conferências A Invenção Democrática,
organizadas pela Fundação que dirijo, tem uma tese, publicada em livro, sobre o
choque de civilizações, baseado nas diferentes religiões e que, segundo ele,
será o conflito típico do próximo século.
Não li ainda o
livro. Só conheço um artigo de revista que o procura sintetizar. Mas, tanto
quanto entendi, não o acompanho nessa tese. Para mim, o grande problema do
próximo século é a pobreza, que está a cavar um fosso intransponível, uma
realidade insanável entre nações ricas e pobres e um dualismo e uma
incomunicabilidade crescentes nas sociedades ditas desenvolvidas, entre ricos e
pobres, todos no entanto igualmente informados do que se passa no Mundo,
através dos novos meios de comunicação e de intercomunicação de massa. Ou se
encontram soluções válidas e urgentes para este tremendo problema, lutando
eficazmente contra a pobreza e contra todas as outras formas de exclusão
social, ou caminhamos aceleradamente para novas e terríveis explosões,
incontroláveis.
Ser de esquerda,
hoje, é precisamente compreender que é assim, e ser capaz de lutar, a nível
mundial, regional e nacional, para resolver esta questão essencialmente social
e e justiça social. Contudo, uma questão de tal magnitude na época de
globalização económica não se pode resolver hoje no quadro nacional: tem de ser
resolvida a nível mundial ou por grandes áreas ou regiões, e então, no nosso
caso, a nível europeu. Mas esse é já outro problema...
Embora os
nacionalismos tendam a não aceitar essa ideia de globalização...
Quanto a mim – e
para voltar à sua pergunta – os nacionalismos só são perigosos num quadro
imobilista, de autêntica impotência quanto à resolução dos problemas sociais
explosivos da pobreza, do desemprego e da exclusão social. Então, podem vir a
tornar-se agressivos e temíveis. A história regista muitos casos desses.
Qual a relação
entre os nacionalismos e as religiões? No caso do mundo árabe, é muito evidente
o desespero que cresce entre a juventude, sem emprego e o fundamentalismo
islâmico. Mas não só no mundo árabe. Veja-se o que explica o aparecimento das
chamadas Igrejas da libertação na América Latina ou certo tipo de aflorações
budistas na Ásia...
Como vê o papel
dos últimos papas na Igreja e no mundo?
Vejo-o,
globalmente, como positivo. Refiro-me a João XXIII, Paulo VI e João Paulo II. O
primeiro foi quem convocou o Concílio Vaticano II, o bom Papa João do
“aggiornamento” ecuménico da Igreja. Paulo VI foi o grande Papa da modernidade
que, desde 1963, levou a bom termo os trabalhados complexos do Concílio
Vaticano II: a reforma litúrgica, a reorganização da Cúria, dando-lhe um
carácter universal, associando-a às Igrejas locais e iniciando o diálogo
ecuménico com outras religiões, designadamente com o Patriarca de
Constantinopla (ortodoxo) e com o Arcebispo de Cantuária (protestante).
Procurou adaptar a Igreja à problemática do mundo contemporâneo, como resulta
das encíclicas Ecclesiam Suam (1964)
e Populorum Progressio (1967).
Mas de João Paulo
II já não gosta tanto...
João Paulo II foi
o Papa que “veio do Leste”, que contribuiu, sem dúvida, para a implosão do
comunismo e que relançou decisivamente o diálogo ecuménico, nomeadamente
através das já referidas Jornadas de Paz de Assis. Foi um Papa sensível aos problemas
da pobreza e da solidariedade e, nesse sentido, pode considerar-se um Papa
progressista, aos olhos de um pensamento de esquerda. Mas foi muito rígido e
dogmático em questões de fé, quanto a certos aspectos litúrgicos e aos
problemas ditos de família. Nesse aspecto, tem sido incontestavelmente um Papa
conservador. Conheci ambos os Papas, Paulo VI e João Paulo II e com este último
viajei quando esteve em Lisboa, Fátima,
Porto, Madeira e Açores.
De qualquer modo,
tanto quanto posso observar, vendo do exterior, a Igreja está à beira de um
novo grande impulso de transformação para, uma vez mais, se poder adaptar, com
inteligência e sentido de oportunidade, ao mundo novo que desponta, com o
próximo milénio. Será a Igreja da mensagem evangélica – do amor pelo próximo e
da tolerância –, a Igreja dos pobres, ou perderá gradualmente a sua influência,
deixando um espaço enorme ao agressivo materialismo das seitas.
[Mário Soares
escreveu várias vezes, desde 2013, nomeadamente no DN, manifestando a sua
profunda admiração pelo Papa Francisco]
Que sentido dá a
uma festa como o Natal?
É fundamentalmente
o de uma festa de família. É um período em que os sentimentos de amor pelo
próximo e os sentimentos de simpatia por todos os outros vêm mais ao de cima.
No Natal, costumo
sobretudo pensar nas crianças, nos idosos e nos menos afortunados – os que
estão presos, os que estão nos hospitais. E lembro-me sempre de umas páginas
lindíssimas, sobre o dia de Natal e a consoada, de Ramalho Ortigão nas
Farpas...
Quando pensa na
morte, qual é o seu sentimento mais profundo?
O mistério da
morte – como o da vida – fascina-me e perturba-me. Nos últimos anos, como é
natural, são mistérios que se insinuam com mais frequência nas minhas
reflexões. Quanto à vida eterna, infelizmente, não acredito nela. Como já lhe
disse. Sou demasiado racionalista para acreditar. Cada um de nós, depois da
morte, julgo eu, vive apenas na memória dos que ficam. Já não é nada mau que
assim seja, sobretudo quando essa memória perdura, com um rasto afectivo,
estimulante e emotivo. Mas haverá coisa mais efémera do que a memória?
Quanto à morte?
Eis uma certeza que todos temos – talvez a única indubitável – e de que não
devemos fazer abstracção, sobretudo nos momentos mais eufóricos ou solares. Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem
reverteris... [Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás-de tornar.] É
triste, mas é assim. Não será essa uma das condições da grandeza humana? De
continuar a trabalhar, esforçadamente, pelo bem, pelo belo, pelos outros, pelos
grandes ideais éticos, apesar de saber que assim é, incontroversamente?
Publicação anterior no blogue
Uma música para o dia de Natal (que hoje volta a ser, no calendário ortodoxo juliano)
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