domingo, 15 de janeiro de 2017

Sobre o futebol e outros suicídios do jornalismo (ou como jornalistas e católicos são tão parecidos)

Está a decorrer em Lisboa, desde quinta-feira (acaba este Domingo), o 4º Congresso dos Jornalistas Portugueses. Sábado à tarde, apresentei no congresso uma comunicação onde falo sobretudo do jornalismo, mas também da forma como algumas questões ligadas ao tratamento do religioso com ele se cruzam. Fica aqui o texto, para eventuais interessados. (Foto ao lado reproduzida daqui)


Hesitei muito sobre a minha participação no congresso e sobre a possibilidade de fazer ou não esta comunicação – já direi porquê. Desde há anos, foi crescendo o meu desencanto com algumas práticas do jornalismo. A 7 de Julho de 2014, esse desencanto ficou gravado como um espinho na carne: nesse dia, estive à porta do DN, numa manifestação contra os despedimentos que a então Controlinveste se preparava para fazer em vários meios do grupo. Nesse dia, ou na véspera, tinha ouvido na TSF (rádio do grupo, onde também haveria despedimentos) um noticiário que abriu com as declarações de um treinador de futebol sobre as suas expectativas acerca de um jogo que seria disputado dois dias depois.
Dei comigo a pensar que estávamos ali alguns (não muitos, aliás...) a protestar contra mais uma decisão intolerável de uma administração, mas que muito do que está a acontecer com as redacções e o jornalismo é cada vez mais da nossa responsabilidade.
Infelizmente, situações deste género repetem-se com demasiada frequência sobretudo nas televisões e em algumas rádios, dando um espaço desmesurado a coisas que, em si, não são notícia (é notícia ouvir “a minha equipa vai dar o melhor?” ou são notícia cuspidelas em balneários?...); promovemos programas de suposto debate que, exacerbando clubites já de si agudas, não debatem coisa nenhuma e só contribuem para degradar o nível do debate público; somos, enquanto jornalistas, veículo da publicidade dos patrocinadores de campeonatos ou clubes; fazemos entrevistas rápidas em cenários de marcas comerciais; designamos campeonatos com o nome dos patrocinadores... Há anos, o Parlamento quis impor restrições à livre circulação dos jornalistas em S. Bento; durante um mês, omitimos o noticiário parlamentar, em protesto contra essa ideia e os deputados recuaram. Pelos vistos, é mais fácil enfrentarmos o poder político que o poder do futebol...
Em síntese, o jornalismo desportivo audiovisual reflecte a tremenda inversão das prioridades noticiosas. Recordo-me de ouvir um camarada de televisão que esteve na Alemanha a acompanhar o Mundial de Futebol de 2006, contar que nem os jogos nem o próprio torneio eram notícia nos jornais televisivos daquele país; havia, isso sim, programas especiais, bem feitos e criativos, a propósito do futebol, mas ele não ocupava horas infindas de emissão até à náusea, sem nada para dizer.

Não quero generalizar e também não digo que o jornalismo é pior agora do que antes – não creio que alguma vez tenha havido uma idade de ouro do jornalismo. Mas, para os problemas de cada tempo, os jornalistas foram procurando respostas. E hoje não vejo que isso aconteça. Este congresso pode ser o início da inversão desta tendência e por isso estou muito grato a quem teve a ideia e o organizou. 

As situações que referia não são receita para o sucesso. Se fosse, não teríamos cada vez menos leitores e audiências.
Claro que não é só o futebol o problema. Matamos o jornalismo e o melhor de nós, também, pelo facto de não querermos saber, muitas vezes, da vida das pessoas. Saúde, educação ou justiça, por exemplo, interessam, na maior parte dos casos, mais pelas guerras políticas do que pelos efeitos para cidadãos e utentes. Suspiramos por equipas Soptlight mas não investigamos coisas básicas até ao fim: em Fevereiro de 2010, o então presidente do governo regional da Madeira decretou que havia 47 mortos nas inundações no Funchal. Bastaria perguntar aos vários padres da cidade quantos funerais tinham feito e contar a história de cada pessoa que morrera para perceber se aquele número é verdadeiro ou não. Aqui fica uma ideia para o próximo 20 de Fevereiro (e não cobro direitos de autor por ela, apesar de estar desempregado). Esquecemos a importância de contar profundamente as histórias da actualidade – o que se passou com a alegada agressão dos filhos do embaixador iraquiano, em que estivemos vários dias sem perceber importantes detalhes do sucedido, é exemplo disso.
Também foi muito triste assistir aos debates televisivos que acompanharam as manifestações de Paris, no Domingo seguinte aos atentados contra o Charlie Hebdo; todos os moderadores e convidados peroravam sobre segurança, islão, terrorismo, história e religião, manifestando uma profunda ignorância sobre o islão, a história ou questões religiosas.

Suicidamo-nos enquanto profissionais quando misturamos informação e entretenimento; quando abdicamos de ser jornalistas e entregamos esse papel a comentadores que mais não são que políticos ou economistas com interesses a defender; quando destratamos a língua, adoptando o “economês”, o “politiquês” ou o inglês porque é mais sexy; quando nos encerramos cada vez mais numa bolha, sem conhecer a realidade de tantas vidas; quando as questões laborais passam a interessar quase só na sua vertente económica ou economicista; quando o emprego e o desemprego são estatísticas que se debitam sem rosto e sem nome; quando não somos críticos para com os verdadeiros poderes que hoje nos dominam e que ninguém elegeu – o financeiro e o económico. O que se passou, por exemplo, com a inconsequente divulgação dos Panama Papers, é revelador. Mas essa falta de espírito crítico revela-se na forma como se acolhe cada vez mais, no jornalismo, a legitimidade de banqueiros, agências de notação financeira e outras entidades que não são escrutinadas por ninguém e que ameaçam a sobrevivência da própria democracia enquanto escolha livre dos cidadãos sobre a forma como querem ser governados.
Grave também é que nos preocupamos cada vez mais em ser os primeiros em dar a notícia, sacrificando a correcção e o rigor. O que se passou com os obituários do Presidente Mário Soares é exemplo disso.

Esta não é, repito, a receita para o sucesso. Se fosse, não estaríamos a falar da crise do jornalismo. Falta-nos espírito autocrítico. Aliás, como eu tenho feito jornalismo religioso, vejo que muitos jornalistas e muitos católicos se parecem: num caso, a culpa é da internet, das novas tecnologias ou dos patrões; no outro, é a perda de valores e os novos padrões culturais. Nem uns nem outros procuram entender as razões profundas que levam ao afastamento das pessoas.
Entre parêntesis: mais dificilmente eu estaria no desemprego se tratasse de futebol ou de economia. Mas como trato de religião (apesar de ter ajudado várias vezes o jornal onde trabalhei a aumentar as vendas com trabalhos que fiz), sinto-me às vezes como acontece muito com as mulheres em algumas áreas: tenho de provar duplamente a minha competência, sendo-me exigidas coisas que não o são noutros trabalhos.
Também desvirtuámos o nosso papel: passámos a ter directores e editores que, em boa parte do tempo, abdicam dessas funções e da exigência de pensar o trabalho editorial, para passar a ser gestores do tempo, de orçamentos e de dinheiro; pior: em vez de assumirem o seu papel de jornalistas e se colocarem ao lado dos seus jornalistas e redacções, colocam-se, muitas vezes, contra eles, ao lado das administrações ( o caso Relvas no Público foi lamentável).

Para quem está desempregado como eu, a conversa sobre a falta de dinheiro tem uma variante: pergunta-se se estamos disponíveis para fazer um trabalho e avisa-se logo, à cabeça, que não há muito dinheiro para pagar (forma suave de dizer que o que se paga roça por vezes a indignidade). Nunca quis ser rico, só quero que o meu trabalho seja dignamente pago. E são camaradas meus que me propõem estas coisas mas, a seguir, lamentam o estado a que chegámos.
Hernest J. Gans escrevia em 2003, no livro Democracy and the news, que as pressões pelo lucro e as reduções orçamentais nos meios de comunicação “afectaram também o controlo dos jornalistas sobre as notícias e a sua autonomia profissional” na concepção das mesmas. Com isso, romperam-se os “antigos muros entre ‘igreja’ e ‘estado’” (sendo igreja, nesta leitura, o jornalismo, aquilo que para nós deveria ser sagrado, e correspondendo o estado às administrações), com os executivos do marketing e da publicidade a sugerirem aos directores e editores “que prestem mais atenção às necessidades comerciais das empresas”.
A 19 de Janeiro de 2016, Dillon Baker situava o fim dessa separação nos EUA em Setembro de 2015, quando Margaret Sullivan, editora do The New York Times, anunciou que um editor sénior do jornal iria trabalhar com a redacção para “analisar artigos e projetos” que poderiam ser patrocinados. Mas admitia que a separação vinha “morrendo lentamente há anos” e que a maioria dos editores/directores tem promovido a ideia de quebrar essa separação, alegando que uma melhor cooperação e mais transparência irá melhorar a paisagem editorial como um todo.
Sabendo das dificuldades de ser director e editor hoje em dia, o que gostaria era de ver directores e editores serem um pouco mais consequentes com o que dizem em público.

Não ignoro que a crise de alguns pilares do jornalismo coincide com a profunda crise da democracia ocidental que também atravessamos. Como profissão e serviço essenciais à democracia, a minha preocupação com o futuro da profissão coincide com a preocupação que tenho em relação ao futuro da democracia. Faltou aqui, na minha perspectiva, a leitura de alguém que nos ajudasse a relacionar o que se passa no mundo com o que se passa na profissão.

Dizia no início que hesitei muito sobre a minha participação no congresso e sobre a possibilidade de fazer ou não esta comunicação. Acabei por decidir participar pelo respeito que tenho ainda pelo trabalho de muitas e muitos camaradas que, contra ventos da moda, das imposições ou das pressões, continuam a tentar trazer-nos o melhor do jornalismo (incluindo pessoas das mais novas gerações). E também porque não desisti de ser jornalista e de acreditar que esta profissão é essencial à sociedade, quando é capaz de cumprir o seu papel. Por isso quis ajudar neste diagnóstico, com mais um contributo para um momento de que precisamos com urgência: o de parar para pensar. Espero sinceramente que este congresso confirme a minha expectativa de vir a ser o primeiro momento desse momento.

Publicações anteriores no blogue
Frei Bento Domingues conversa com Anabela Mota Ribeiro sobre (quase) toda uma vida - este domingo no CCB

Mário Soares: "Sou talvez um místico que se desconhece" - uma entrevista sobre religião, a vida e a morte


1 comentário:

Lucy disse...

belo,comovente,triste