Está a decorrer em Lisboa, desde quinta-feira (acaba este Domingo), o
4º Congresso dos Jornalistas Portugueses. Sábado à tarde, apresentei no
congresso uma comunicação onde falo sobretudo do jornalismo, mas também da
forma como algumas questões ligadas ao tratamento do religioso com ele se
cruzam. Fica aqui o texto, para eventuais interessados. (Foto ao lado reproduzida daqui)
Hesitei muito sobre a minha
participação no congresso e sobre a possibilidade de fazer ou não esta
comunicação – já direi porquê. Desde há anos, foi crescendo o meu desencanto com
algumas práticas do jornalismo. A 7 de Julho de 2014, esse desencanto ficou
gravado como um espinho na carne: nesse dia, estive à porta do DN, numa
manifestação contra os despedimentos que a então Controlinveste se preparava
para fazer em vários meios do grupo. Nesse dia, ou na véspera, tinha ouvido na TSF
(rádio do grupo, onde também haveria despedimentos) um noticiário que abriu com
as declarações de um treinador de futebol sobre as suas expectativas acerca de
um jogo que seria disputado dois dias depois.
Dei comigo a pensar que estávamos ali
alguns (não muitos, aliás...) a protestar contra mais uma decisão intolerável
de uma administração, mas que muito do que está a acontecer com as redacções e
o jornalismo é cada vez mais da nossa responsabilidade.
Infelizmente, situações deste
género repetem-se com demasiada frequência sobretudo nas televisões e em
algumas rádios, dando um espaço desmesurado a coisas que, em si, não são
notícia (é notícia ouvir “a minha equipa vai dar o melhor?” ou são notícia
cuspidelas em balneários?...); promovemos programas de suposto debate que,
exacerbando clubites já de si agudas, não debatem coisa nenhuma e só contribuem
para degradar o nível do debate público; somos, enquanto jornalistas, veículo
da publicidade dos patrocinadores de campeonatos ou clubes; fazemos entrevistas
rápidas em cenários de marcas comerciais; designamos campeonatos com o nome dos
patrocinadores... Há anos, o Parlamento quis impor restrições à livre
circulação dos jornalistas em S. Bento; durante um mês, omitimos o noticiário
parlamentar, em protesto contra essa ideia e os deputados recuaram. Pelos
vistos, é mais fácil enfrentarmos o poder político que o poder do futebol...
Em síntese, o jornalismo
desportivo audiovisual reflecte a tremenda inversão das prioridades noticiosas.
Recordo-me de ouvir um camarada de televisão que esteve na Alemanha a
acompanhar o Mundial de Futebol de 2006, contar que nem os jogos nem o próprio
torneio eram notícia nos jornais televisivos daquele país; havia, isso sim,
programas especiais, bem feitos e criativos, a propósito do futebol, mas ele
não ocupava horas infindas de emissão até à náusea, sem nada para dizer.
Não quero generalizar e também não
digo que o jornalismo é pior agora do que antes – não creio que alguma vez
tenha havido uma idade de ouro do jornalismo. Mas, para os problemas de cada
tempo, os jornalistas foram procurando respostas. E hoje não vejo que isso
aconteça. Este congresso pode ser o início da inversão desta tendência e por
isso estou muito grato a quem teve a ideia e o organizou.
As situações que referia não são
receita para o sucesso. Se fosse, não teríamos cada vez menos leitores e
audiências.
Claro que não é só o futebol o
problema. Matamos o jornalismo e o melhor de nós, também, pelo facto de não
querermos saber, muitas vezes, da vida das pessoas. Saúde, educação ou justiça,
por exemplo, interessam, na maior parte dos casos, mais pelas guerras políticas
do que pelos efeitos para cidadãos e utentes. Suspiramos por equipas Soptlight
mas não investigamos coisas básicas até ao fim: em Fevereiro de 2010, o então
presidente do governo regional da Madeira decretou que havia 47 mortos nas
inundações no Funchal. Bastaria perguntar aos vários padres da cidade quantos
funerais tinham feito e contar a história de cada pessoa que morrera para
perceber se aquele número é verdadeiro ou não. Aqui fica uma ideia para o
próximo 20 de Fevereiro (e não cobro direitos de autor por ela, apesar de estar
desempregado). Esquecemos a importância de contar profundamente as histórias da
actualidade – o que se passou com a alegada agressão dos filhos do embaixador
iraquiano, em que estivemos vários dias sem perceber importantes detalhes do
sucedido, é exemplo disso.
Também foi muito triste assistir aos
debates televisivos que acompanharam as manifestações de Paris, no Domingo
seguinte aos atentados contra o Charlie
Hebdo; todos os moderadores e convidados peroravam sobre segurança, islão,
terrorismo, história e religião, manifestando uma profunda ignorância sobre o
islão, a história ou questões religiosas.
Suicidamo-nos enquanto
profissionais quando misturamos informação e entretenimento; quando abdicamos
de ser jornalistas e entregamos esse papel a comentadores que mais não são que
políticos ou economistas com interesses a defender; quando destratamos a
língua, adoptando o “economês”, o “politiquês” ou o inglês porque é mais sexy; quando nos encerramos cada vez
mais numa bolha, sem conhecer a realidade de tantas vidas; quando as questões
laborais passam a interessar quase só na sua vertente económica ou
economicista; quando o emprego e o desemprego são estatísticas que se debitam
sem rosto e sem nome; quando não somos críticos para com os verdadeiros poderes
que hoje nos dominam e que ninguém elegeu – o financeiro e o económico. O que
se passou, por exemplo, com a inconsequente divulgação dos Panama Papers, é
revelador. Mas essa falta de espírito crítico revela-se na forma como se acolhe
cada vez mais, no jornalismo, a legitimidade de banqueiros, agências de notação
financeira e outras entidades que não são escrutinadas por ninguém e que ameaçam
a sobrevivência da própria democracia enquanto escolha livre dos cidadãos sobre
a forma como querem ser governados.
Grave também é que nos preocupamos
cada vez mais em ser os primeiros em dar a notícia, sacrificando a correcção e
o rigor. O que se passou com os obituários do Presidente Mário Soares é exemplo
disso.
Esta não é, repito, a receita para
o sucesso. Se fosse, não estaríamos a falar da crise do jornalismo. Falta-nos espírito
autocrítico. Aliás, como eu tenho feito jornalismo religioso, vejo que muitos
jornalistas e muitos católicos se parecem: num caso, a culpa é da internet, das
novas tecnologias ou dos patrões; no outro, é a perda de valores e os novos
padrões culturais. Nem uns nem outros procuram entender as razões profundas que
levam ao afastamento das pessoas.
Entre parêntesis: mais
dificilmente eu estaria no desemprego se tratasse de futebol ou de economia.
Mas como trato de religião (apesar de ter ajudado várias vezes o jornal onde
trabalhei a aumentar as vendas com trabalhos que fiz), sinto-me às vezes como
acontece muito com as mulheres em algumas áreas: tenho de provar duplamente a
minha competência, sendo-me exigidas coisas que não o são noutros trabalhos.
Também desvirtuámos o nosso papel:
passámos a ter directores e editores que, em boa parte do tempo, abdicam dessas
funções e da exigência de pensar o trabalho editorial, para passar a ser
gestores do tempo, de orçamentos e de dinheiro; pior: em vez de assumirem o seu
papel de jornalistas e se colocarem ao lado dos seus jornalistas e redacções,
colocam-se, muitas vezes, contra eles, ao lado das administrações ( o caso
Relvas no Público foi lamentável).
Para quem está desempregado como
eu, a conversa sobre a falta de dinheiro tem uma variante: pergunta-se se
estamos disponíveis para fazer um trabalho e avisa-se logo, à cabeça, que não
há muito dinheiro para pagar (forma suave de dizer que o que se paga roça por
vezes a indignidade). Nunca quis ser rico, só quero que o meu trabalho seja
dignamente pago. E são camaradas meus que me propõem estas coisas mas, a
seguir, lamentam o estado a que chegámos.
Hernest J. Gans escrevia em 2003,
no livro Democracy and the news, que
as pressões pelo lucro e as reduções orçamentais nos meios de comunicação
“afectaram também o controlo dos jornalistas sobre as notícias e a sua
autonomia profissional” na concepção das mesmas. Com isso, romperam-se os
“antigos muros entre ‘igreja’ e ‘estado’” (sendo igreja, nesta leitura, o
jornalismo, aquilo que para nós deveria ser sagrado, e correspondendo o estado
às administrações), com os executivos do marketing e da publicidade a sugerirem
aos directores e editores “que prestem mais atenção às necessidades comerciais
das empresas”.
A 19 de Janeiro de 2016, Dillon
Baker situava o fim dessa separação nos EUA em Setembro de 2015, quando
Margaret Sullivan, editora do The New
York Times, anunciou que um editor sénior do jornal iria trabalhar com a
redacção para “analisar artigos e projetos” que poderiam ser patrocinados. Mas
admitia que a separação vinha “morrendo lentamente há anos” e que a maioria dos
editores/directores tem promovido a ideia de quebrar essa separação, alegando
que uma melhor cooperação e mais transparência irá melhorar a paisagem editorial como um todo.
Sabendo das dificuldades de ser
director e editor hoje em dia, o que gostaria era de ver directores e editores
serem um pouco mais consequentes com o que dizem em público.
Não ignoro que a crise de alguns
pilares do jornalismo coincide com a profunda crise da democracia ocidental que
também atravessamos. Como profissão e serviço essenciais à democracia, a minha
preocupação com o futuro da profissão coincide com a preocupação que tenho em
relação ao futuro da democracia. Faltou aqui, na minha perspectiva, a leitura
de alguém que nos ajudasse a relacionar o que se passa no mundo com o que se
passa na profissão.
Dizia no início que hesitei muito
sobre a minha participação no congresso e sobre a possibilidade de fazer ou não
esta comunicação. Acabei por decidir participar pelo respeito que tenho ainda
pelo trabalho de muitas e muitos camaradas que, contra ventos da moda, das
imposições ou das pressões, continuam a tentar trazer-nos o melhor do
jornalismo (incluindo pessoas das mais novas gerações). E também porque não
desisti de ser jornalista e de acreditar que esta profissão é essencial à
sociedade, quando é capaz de cumprir o seu papel. Por isso quis ajudar neste
diagnóstico, com mais um contributo para um momento de que precisamos com
urgência: o de parar para pensar. Espero sinceramente que este congresso confirme
a minha expectativa de vir a ser o primeiro momento desse momento.
Publicações anteriores no blogue
Frei Bento Domingues conversa com Anabela Mota Ribeiro sobre (quase) toda uma vida - este domingo no CCB
Mário Soares: "Sou talvez um místico que se desconhece" - uma entrevista sobre religião, a vida e a morte
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1 comentário:
belo,comovente,triste
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