quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Montserrat Figueras, voz de transparências infindas (1942-2011)

Recordo um momento curto e belo, em 2004, num final de tarde no Parlamento das Religiões do Mundo, que decorreu em Barcelona: num final de tarde, Jordi Savall e a sua mulher, a soprano Montserrat Figueras, executaram três ou quatro músicas, entre as quais o terno El cant dels aucells. Pouco depois, saíam ambos do Fórum das Culturas, Jordi transportando a caixa com a viola de gamba, Montserrat ao lado. Ela era uma figura frágil e firme, como que esvoaçando ao atravessar a rua, olhar luminoso e sorridente. Ambos discretos, como se não fossem dois dos maiores artistas contemporâneos, responsáveis por nos devolver tantas horas de beleza escondida na música antiga, dos tempos medievais ao barroco.

Montserrat morreu quinta-feira em Barcelona.

Na apresentação do disco Invocation a la Nuit, escreve Jordi Savall: «'A noite é a salvação da alma', diz-nos o poeta árabe do século X num dos contos das Mil e Uma Noites (História de Doce-Amiga). Uma cifra mágica essas 1001 noites que percorrem a vida como um instante fugaz, um instante que dura menos de 3 anos (exactamente 2 anos e 271 noites). Rapidamente me dou conta de que tive a sorte de viver 20 vezes Mil e uma noites. Noites de infância, cheias de descobrimentos maravilhosos, mas também de noites tristes, escondidas pelos temores da guerra e a incerteza do amanhã. Noites de adolescência marcadas pela descoberta e a aprendizagem do amor, da amizade e o som cálido do violoncelo. Noites claras de uma primavera de 1965 cheia de encontros inesquecíveis, o da amada ideal e o da viola de gamba e suas músicas esquecidas.»

Esta sexta-feira, às 11h da manhã (10h portuguesas), a despedida de Montserrat decorre no Mosteiro de Pedralbes, em Barcelona. O mesmo lugar que Jordi Savall evoca no disco onde invoca as "noites estreladas nos jardins do Mosteiro de Pedralbes onde, com Montserrat Figueras, decidimos fazer juntos a nossa viagem até ao futuro, até essas manhãs ainda incertas mas já cheios de confiança e esperança, decididos a partilhar felicidades e desgraças, músicas e amizades, caminhos e sonhos de toda uma vida".
A voz de Montserrat abria-nos para transparências infindas. Que melhor evocação senão escutá-la?

 

1 comentário:

Lucy disse...

Obrigada, António, pela atenção que dá, e transmite, a tudo o que bom e belo mesmo quando triste como é o caso...