O
antigo bispo de Coimbra (entre 1976 e 2001), D. João Alves, morreu ontem na cidade, aos
87 anos. Apesar de a sua morte pouca atenção ter despertado nos nosso media,
devemos a D. João, enquanto presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
(CEP), entre 1993 e 1999, o empurrão decisivo para a negociação (com o Governo
liderado por António Guterres) que levou à revisão da Concordata de 1940, culminando
com a assinatura de uma nova Concordata entre Portugal e o Vaticano, em
2004.
Nascido
a 13 de Dezembro de 1925, em Torres Novas, João Alves foi ordenado padre em
Junho de 1951 e nomeado bispo auxiliar de Coimbra em 1975. No seu mandato
enquanto presidente da CEP, João Alves enfrentou também questões polémicas,
como a imigração e os feriados, durante os governos de Cavaco Silva.
A
2 de Maio de 1993, no “Público”, eu e o Jorge Wemans publicámos uma entrevista
a D. João Alves (a primeira que ele deu enquanto presidente da CEP). Nela, e
sobre questões que voltaram a ter plena actualidade, o bispo de Coimbra dizia
que nem só a economia interessa, pois a vida também é descanso e direito ao
feriado.
Enquanto
bispo, D. João interessou-se muito pelo papel dos leigos na Igreja. A sua forma
de estar – próxima, apesar de ser um homem formal – nunca escondeu o interesse
que tinha por uma maior participação dos leigos no interior da Igreja Católica.
Sobre essa questão, acrescentava na entrevista que os católicos não devem ter
medo de ir para a praça pública: “Que assumam as suas responsabilidades, com
humildade e simplicidade, e que proponham corajosamente o contributo do
Evangelho à mudança e à transformação do nosso país.”
Alguns
excertos:
Estamos
num mundo em profunda transformação, não apenas nos aspectos económicos, ou de
instalações ou das comunicações, mas também numa transformação muito profunda
na ordem cultural e dos valores. Ser-se cristão numa época tranquila, em que
esta evolução se não dá, ou ser-se cristão numa época como esta é muito
diferente e põe muitas exigências.
A
prioridade das prioridades é a pastoral da fé, que procura ajudar os cristãos
na sua formação cristã, no aprofundamento das razões de crer e a motivá-los
para tomarem as suas responsabilidades na Igreja e no mundo. Ajudá-los a não
fugirem, mas a aceitarem os desafios que a sociedade lhes coloca. Para isto é
precisa a catequese, é precisa a leitura cristã, são precisas escolas
diocesanas de formação, etc.
Apercebo-me
de que a sociedade portuguesa olha para a Igreja com uma atitude muito
exigente.
Referi
a necessidade da formação cristã e reconheço que muitos estratos sociais já não
têm essa formação aprofundada. Mas, no entanto, praticamente todos os
portugueses intuem qual é a missão da Igreja. E, quando têm a ideia de que não
está a corresponder, são exigentes. Querem que a Igreja esteja presente, que
colabore, que a Igreja explicite o seu pensamento, que intervenha.
[A
atitude da hierarquia católica] é de interesse e de colaboração e não só de
crítica ou de condenação. Evidentemente, quando há questões doutrinais, quando
há princípios em questão, a Igreja tem de dizer e esclarecer o que pensa, por
fidelidade à sua própria missão. Mas a atitude é colaborante. A atitude
maniqueia – do lado de cá dos muros da cidadela é que está a verdade, todo o
bem e toda a perfeição, e do lado de lá é que está o mal –, isso não existe
entre nós.
Se
estou satisfeito ou se nós, bispos, estamos satisfeitos com a situação, devo
dizer que ainda temos de progredir e de avançar. Mas posso garantir que a visão
da relação Igreja-mundo progrediu muito nos últimos anos. Até em relação aos
que, sem renegar a Igreja, se afastaram da prática, ou aqueles que não têm fé,
que se dizem ateus, verifico que se progrediu muito para uma visão positiva e
de abertura ao diálogo. Este diálogo com pessoas que abandonaram a prática, ou
que negam ostensivamente Deus e a transcendência, não é fácil. Exige atitudes
novas.
Hoje,
quando se fala em formação cristã e formação da fé, procura-se que a pessoa
ganhe uma estrutura e um dinamismo interiores, à maneira de Jesus Cristo, à
maneira dos apóstolos de Jesus, que os leve a comunicar esses grandes valores à
sociedade, correspondendo às grandes necessidades sociais — seja no plano da
vida, da justiça, da liberdade, da responsabilidade, da honestidade, da
partilha fraterna e da solidariedade.
A
nossa sociedade de hoje é diferente e faz um maior exercício da liberdade e
expressão de pensamento. Graças a Deus, a sociedade em que nós vivemos tem
muito mais consciência da sua autonomia.
A
posição dos cristãos há-de ser uma posição simples, humilde, dialogante e
compreensiva, de quem sabe que não tem sempre uma visão clara sobre todos os
assuntos, nem tem sempre a última palavra sobre todos os problemas. Há,
portanto, uma aprendizagem a fazer para este diálogo.
Não
é só a nível dos católicos, mas a nível da população em geral: não custa
verificar que há dificuldades nesta convivência com os outros numa sociedade
plural, de posições, situações, critérios, maneiras de ver diferentes. Por isso
não tenho dúvidas em dizer que estamos num processo de descoberta.
A
convivência pacífica – compreensiva, sem abdicação das convicções pessoais e
dos princípios –, esta convivência fraterna, solidária, assente nas diferenças
e no são pluralismo, que pode existir numa sociedade, é uma tarefa muito
difícil e que exige muito trabalho e muita colaboração. Não tenho dúvidas – e
acho que isso não perturba ninguém – de dizer que estamos num processo de
educação e de formação, incluindo os próprios cristãos.
Quase
se dá a entender que, resolvidos os problemas económicos, ficará garantido o
bem maior da pessoa humana. A pessoa não se restringe apenas à dimensão
económica, à solução das suas necessidades diárias de subsistência, de saúde,
etc. Há a dimensão transcendente na pessoa humana, a dimensão religiosa, há os
valores culturais. Neste sentido, temo que não só no presente, mas também no
próximo futuro, se possa comprometer a realização integral da pessoa humana de
cada português.
É
certo que, numa visão algo economicista se farão contas e com um ou dois
feriados [a menos], poupar-se-ia, em princípio, uma quantia determinada de dinheiro.
É muito natural que esses cálculos estejam feitos e que sejam todos muito
correctos. Mas a vida não se esgota no económico, a vida é também convivência,
é descanso, até a própria alegria do feriado...
É
também essa alegria manifestada inclusivamente no Carnaval, um feriado que tem
uma tradição e que o povo muito estima. Estas dimensões também têm de ser
ponderadas quando se pensa em pôr ou tirar algum dos feriados. Não sei, não me
quero pronunciar, se todos estes aspectos estiveram igualmente presentes na
mesa de estudo deste problema.
Acrescente-se
ainda que alguns dos feriados têm uma dimensão religiosa e comunitária, o que
vai tocar nas comunidades cristãs e na sua sensibilidade, que compreendem a
maioria do povo português, mesmo que nem sempre “praticante”.
Este
problema pode parecer simples, à primeira vista. Mas, na realidade, é muito
complexo, pela sua dimensão cultural, social e religiosa. Por isso, ao
tocar-se-lhe, exige sempre muito senso humano, social, político, cultural e
religioso.
[Aos católicos diria] que não tenham medo. Que vão para a praça pública. Que assumam as suas responsabilidades, com humildade e simplicidade, e que proponham corajosamente o contributo do Evangelho à mudança e à transformação do nosso país.
[Aos católicos diria] que não tenham medo. Que vão para a praça pública. Que assumam as suas responsabilidades, com humildade e simplicidade, e que proponham corajosamente o contributo do Evangelho à mudança e à transformação do nosso país.
(Foto reproduzida daqui)
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