quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Músicas que falam com Deus (34) - Sem amor, nenhuns olhos são videntes - música de Arvo Pärt em Lisboa



“Sem amor, nenhuns olhos são videntes” é o mote para o concerto que se realiza esta sexta-feira, a partir das 21h00, na Sé de Lisboa. Com entrada livre (apenas sujeita à limitação do espaço), o momento alto do concerto será a estreia nacional da peça Drei Hirtenkinder aus Fatima (Três Pastorinhos de Fátima), da autoria de Arvo Pärt, um dos nomes de referência na música contemporânea e talvez o mais importante compositor actual de música sacra. 
A estreia coincide com o dia da festa litúrgica dedicada a Jacinta e Francisco Marto, os dois videntes de Fátima beatificados em 2000 pelo Papa João Paulo II, na sua última viagem ao santuário português. A peça é uma encomenda ao compositor estoniano no contexto da celebração do centenário dos acontecimentos de Fátima.
De acordo com informações do Santuário, Alfredo Teixeira, consultor artístico para o referido concerto, aponta as “caraterísticas singulares” do concerto, que se apresenta “sob o signo do paradoxo”, a começar pelo facto de o recital de Arvo Pärt, a “mais frágil das obras, a menor em duração, porventura a mais simples quanto ao material musical”, se oferecer “como o lugar culminante de uma viagem musical”.
Drei Hirtenkinder aus Fatima, peça escrita em alemão, “sinaliza esse ethos cristão que apela a uma visão do mundo na perspetiva dos mais frágeis, lugar onde o ingénuo é reconhecido como o mais sábio, o excluído toma os primeiros lugares, o sem voz pode ser escutado”, acrescenta Alfredo Teixeira.
Para esta peça, o compositor escolheu um versículo do Salmo 8, na versão que aparece no Evangelho de Mateus (21,16): “Pela boca dos meninos e das criancinhas de peito tiraste o perfeito louvor”.

Arvo Pärt, uma espiritualidade intemporal

Entre as obras de Arvo Pärt podem destacar-se Passio, Da Pacem, Lamentate, Orient Occident, Tabula Rasa ou várias sinfonias. Sobre Lamentate, por exemplo, o próprio compositor escreve que a sua peça tenta reflectir o esbatimento da fronteira entre o temporal e o intemporal. Quando se escuta a música do estoniano, a experiência que temos é de facto a desse esbatimento: as suas peças traduzem uma espiritualidade intensa, quase intemporal, mas enraizada no tempo. 

Inspirado em Marsyas, escultura de Anish Kapoor, Lamentate é uma obra para piano e orquestra, assumindo o piano o carácter de instrumento solista. O que lhe dá o tom certo entre a intimidade solista e o vigor orquestral. No início, o disco oferece-nos ainda um intenso Da pacem, Domine, composto a convite de Jordi Savall, e que recria, com as vozes do Hilliard Ensemble, uma antífona gregoriana do século IX.
Orient Occident também toma referências e histórias antigas, bem como outros versos de Salmos bíblicos. No disco, três peças tentam ultrapassar as fronteiras da morte (a Canção do Peregrino, baseada no Salmo 121, é uma homenagem ao amigo Grigori Kromanov), da geografia (o disco é uma peregrinação admirável entre as sonoridades das duas metades da Europa) e da desesperança (“Como o veado sedento” retoma os Salmos 42 e 43 para nos levar do desencanto à consolação e à reconciliação).
A Bíblia é ainda a inspiração de Passio, uma obra intensa dedicada à Paixão segundo São João, ou de In Principio, título que remete para a composição com o prólogo do mesmo Evangelho de João. O disco inclui seis peças: além da que dá o título, e por esta ordem, La Sindone fala do Sudário de Turim, Cecilia Vergine Romana conta a história da padroeira da música, a mártir Santa Cecília (século II), Für Lennart In Memoriam é o requiem para o funeral do seu amigo e antigo Presidente estónio (1992-2001), Lennart Meri, Da Pacem Domine é uma oração em memória das vítimas dos atentados de Março de 2004 em Madrid (tocada anualmente em Espanha desde então) e Mein Weg (escrito originalmente em 1989, para órgão) é aqui revisitada para 14 cordas e percussão.
A música de Pärt dá-nos a dramaticidade de histórias como as de Cecília, a emotividade de acontecimentos como os atentados de Madrid ou a intensidade e luminosidade de um texto como o Prólogo de São João. Compositor de uma espiritualidade vincada, Pärt neste In Principio uma etapa maior da sua obra, já tantas vezes justamente premiada.
Também outro disco como a Symphony nº 4, entre o meditativo e o minimalista, é outro momento alto do seu trabalho. Composta por encomenda da Los Angeles Philharmonic e do seu director, Esa-Pekka Salonen, em parceria com o Canberra International Music Festival/Ars Musica Australis e o Sidney Cnservatorium of Music, estreada em Janeiro de 2009 no Disney Concert Hall, é a primeira sinfonia do músico estoniano após 38 anos, quando escreveu a terceira.
Pärt, que vive no campo rodeado de silêncio, tinha andado a ler sobre anjos da guarda quando recebeu a encomenda vinda de Los Angeles (os anjos). Por isso, resolveu subintitular a obra, para cordas, harpa e percussão, como Los Angeles. E esta é uma peça de beleza ímpar, com o seu ponto de partida num “cânone do anjo da guarda”, mesclada depois com a profundidade poética e musical da Igreja Ortodoxa e da cultura eslava. Ainda com uma nota simbólica adicional: a obra é dedicada ao empresário Mikhail Khodorkovsky, que tinha ambições políticas e foi preso em 2003 numa prisão siberiana. Não como dedicatória política, mas como expressão de respeito por um homem que descobriu o “triunfo moral no meio da tragédia pessoal”. E como tradução do “grande poder do espírito humano e da dignidade humana”.

O programa do concerto

O programa do concerto de amanhã, que pode ser consultado na íntegra aquiconsta de três partes: começa com duas peças de canto gregoriano, seguindo-se uma Missa em honra dos pastorinhos, para coro e órgão, da autoria do padre Joaquim dos Santos.
Esta primeira parte será executada pelo Coro Infantil do Instituto Gregoriano de Lisboa, dirigido por Filipa Palhares, com Sérgio Silva.no órgão.
Na segunda parte, João Santos, organista titular do Santuário de Fátima, tocará Trivium, outra obra de Arvo Pärt, datada de 1976, que Alfredo Teixeira aponta como “exemplar marcante” da criação do compositor.
A terceira parte do programa estará a cargo do Coro Anonymus, agrupamento de câmara do Porto que se dedica à música portuguesa contemporânea e que se apresenta como “fruto da paixão pela música de um grupo de elementos com larga experiência coral à qual se aliou a vontade de preencher um espaço menos explorado no panorama coral da região e do país”, como diz a nota divulgada pelo Santuário de Fátima.
O Coro Anonymus, dirigido pelo maestro Rui Paulo Teixeira, executará apenas peças de compositores portugueses vivos: Rui Paulo Teixeira, Eurico Carrapatoso, Gonçalo Lourenço, Alfredo Teixeira, Mário Ribeiro e Mário Nascimento, antes da peça de Pärt.  


(Nota: os parágrafos sobre a música de Arvo Pärt adaptam textos publicados na Além-Mar, em Dezembro 2002, Fevereiro 2006, Maio 2009 e Outubro 2010; boa parte da discografia de Arvo Pärt está editada na ECM.)

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