“Sem amor, nenhuns olhos são
videntes” é o mote para o concerto que se realiza esta sexta-feira, a partir
das 21h00, na Sé de Lisboa. Com entrada livre (apenas sujeita à limitação do
espaço), o momento alto do concerto será a estreia nacional da peça Drei Hirtenkinder aus Fatima (Três
Pastorinhos de Fátima), da autoria de Arvo Pärt, um dos nomes de referência na
música contemporânea e talvez o mais importante compositor actual de música sacra.
A estreia coincide com o dia da
festa litúrgica dedicada a Jacinta e Francisco Marto, os dois videntes de
Fátima beatificados em 2000 pelo Papa João Paulo II, na sua última viagem ao
santuário português. A peça é uma encomenda ao compositor estoniano no contexto
da celebração do centenário dos acontecimentos de Fátima.
De acordo com informações do
Santuário, Alfredo Teixeira, consultor artístico para o referido concerto, aponta
as “caraterísticas singulares” do concerto, que se apresenta “sob o signo do
paradoxo”, a começar pelo facto de o recital de Arvo Pärt, a “mais frágil das
obras, a menor em duração, porventura a mais simples quanto ao material
musical”, se oferecer “como o lugar culminante de uma viagem musical”.
Drei Hirtenkinder aus Fatima, peça escrita em alemão, “sinaliza
esse ethos cristão que apela a uma
visão do mundo na perspetiva dos mais frágeis, lugar onde o ingénuo é
reconhecido como o mais sábio, o excluído toma os primeiros lugares, o sem voz
pode ser escutado”, acrescenta Alfredo Teixeira.
Para esta peça, o compositor
escolheu um versículo do Salmo 8, na versão que aparece no Evangelho de Mateus
(21,16): “Pela boca dos meninos e das
criancinhas de peito tiraste o perfeito louvor”.
Arvo Pärt, uma
espiritualidade intemporal
Entre as obras de Arvo Pärt podem destacar-se Passio, Da Pacem, Lamentate, Orient Occident, Tabula Rasa ou várias sinfonias. Sobre Lamentate, por exemplo, o próprio compositor escreve que a sua peça
tenta reflectir o esbatimento da fronteira entre o temporal e o intemporal.
Quando se escuta a música do estoniano, a experiência que temos é de facto a desse
esbatimento: as suas peças traduzem uma espiritualidade intensa, quase
intemporal, mas enraizada no tempo.
Inspirado em Marsyas, escultura de Anish Kapoor, Lamentate é uma obra para piano e orquestra, assumindo o piano o
carácter de instrumento solista. O que lhe dá o tom certo entre a intimidade solista
e o vigor orquestral. No início, o disco oferece-nos ainda um intenso Da pacem, Domine, composto a convite de
Jordi Savall, e que recria, com as vozes do Hilliard Ensemble, uma antífona
gregoriana do século IX.
Orient Occident também toma referências e histórias antigas,
bem como outros versos de Salmos bíblicos. No disco, três peças tentam
ultrapassar as fronteiras da morte (a Canção
do Peregrino, baseada no Salmo 121, é uma homenagem ao amigo Grigori
Kromanov), da geografia (o disco é uma peregrinação admirável entre as
sonoridades das duas metades da Europa) e da desesperança (“Como o veado
sedento” retoma os Salmos 42 e 43 para nos levar do desencanto à consolação e à
reconciliação).
A Bíblia é ainda a inspiração de Passio, uma obra intensa dedicada à
Paixão segundo São João, ou de In
Principio, título que remete para a composição com o prólogo do mesmo
Evangelho de João. O disco inclui seis peças: além da que dá o título, e por
esta ordem, La Sindone fala do
Sudário de Turim, Cecilia Vergine Romana conta
a história da padroeira da música, a mártir Santa Cecília (século II), Für Lennart In Memoriam é o requiem para
o funeral do seu amigo e antigo Presidente estónio (1992-2001), Lennart Meri, Da Pacem Domine é uma oração em memória
das vítimas dos atentados de Março de 2004 em Madrid (tocada anualmente em
Espanha desde então) e Mein Weg (escrito originalmente em 1989, para órgão) é
aqui revisitada para 14 cordas e percussão.
A música de Pärt dá-nos a
dramaticidade de histórias como as de Cecília, a emotividade de acontecimentos
como os atentados de Madrid ou a intensidade e luminosidade de um texto como o
Prólogo de São João. Compositor de uma espiritualidade vincada, Pärt neste In Principio uma etapa maior da sua
obra, já tantas vezes justamente premiada.
Também outro disco como a Symphony nº 4, entre o meditativo e o minimalista, é
outro momento alto do seu trabalho. Composta por encomenda da Los Angeles
Philharmonic e do seu director, Esa-Pekka Salonen, em parceria com o Canberra
International Music Festival/Ars Musica Australis e o Sidney Cnservatorium of
Music, estreada em Janeiro de 2009 no Disney Concert Hall, é a primeira
sinfonia do músico estoniano após 38 anos, quando escreveu a terceira.
Pärt, que vive no campo rodeado de silêncio, tinha andado a ler
sobre anjos da guarda quando recebeu a encomenda vinda de Los Angeles (os
anjos). Por isso, resolveu subintitular a obra, para cordas, harpa e percussão,
como Los Angeles. E esta é uma peça
de beleza ímpar, com o seu ponto de partida num “cânone do anjo da guarda”,
mesclada depois com a profundidade poética e musical da Igreja Ortodoxa e da
cultura eslava. Ainda com uma nota simbólica adicional: a obra é dedicada ao
empresário Mikhail Khodorkovsky, que tinha ambições políticas e foi preso em
2003 numa prisão siberiana. Não como dedicatória política, mas como expressão
de respeito por um homem que descobriu o “triunfo moral no meio da tragédia
pessoal”. E como tradução do “grande poder do espírito humano e da dignidade
humana”.
O programa do concerto
O programa do concerto de amanhã,
que pode ser consultado na íntegra aqui, consta de três partes: começa com
duas peças de canto gregoriano, seguindo-se uma Missa em honra dos pastorinhos, para
coro e órgão, da autoria do padre Joaquim dos Santos.
Esta primeira parte será executada
pelo Coro Infantil do Instituto Gregoriano de
Lisboa, dirigido por Filipa Palhares, com Sérgio Silva.no órgão.
Na segunda parte, João Santos,
organista titular do Santuário de Fátima, tocará Trivium, outra obra de Arvo Pärt, datada
de 1976, que Alfredo Teixeira aponta como “exemplar marcante” da criação do
compositor.
A terceira parte do programa
estará a cargo do Coro Anonymus, agrupamento de câmara do Porto que se
dedica à música portuguesa contemporânea e que se apresenta como “fruto da
paixão pela música de um grupo de elementos com larga experiência coral à qual
se aliou a vontade de preencher um espaço menos explorado no panorama coral da
região e do país”, como diz a nota divulgada pelo Santuário de Fátima.
O Coro Anonymus, dirigido
pelo maestro Rui Paulo Teixeira, executará apenas peças de compositores
portugueses vivos: Rui Paulo Teixeira, Eurico Carrapatoso, Gonçalo Lourenço,
Alfredo Teixeira, Mário Ribeiro e Mário Nascimento, antes da peça de Pärt.
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