domingo, 10 de abril de 2016

O padre 112 do Mediterrâneo faz uma chamada de emergência pela Europa

O padre católico que já salvou milhares de vidas disse em Fafe, no Encontro Terra Justa, que a União Europeia está a trair os seus princípios fundadores.


O padre Mussie Zerai, em Fafe, quinta-feira passada 
(foto Manuel Meira/Câmara Municipal de Fafe)

O “112 do Mediterrâneo” quer ser o 112 da Europa? “A União Europeia [UE] está a trair a Convenção de Genebra e os princípios fundamentais da sua instituição, está a dar carta branca à ditadura que se está a instaurar na Turquia.”
Quem fala assim não é europeu de nascimento, mesmo se vive há largos anos na Europa. O padre Mussie Zerai, 41 anos, eritreu, ajudou milhares de pessoas a salvar-se de traficantes, de travessias pelo deserto, de prisões, de naufrágios no Mediterrâneo.
Depois de sair da Eritreia aos 14 anos, Zerai foi ordenado padre, já em Itália. A partir de 1995, começou a ajudar os refugiados – sobretudo os eritreus, o terceiro maior contingente dos que chegam à Europa, depois dos sírios  e iraquianos – que chegavam a Itália sem documentos.
Em 2003, um jornalista que conhecera num debate pediu-lhe ajuda para servir de tradutor nas conversas com refugiados do seu país. “Eu não podia limitar-me ao papel de tradutor, tinha de fazer alguma coisa.” Deixou o seu número de telefone numa prisão líbia: “Para qualquer emergência, ligue para este número.” A partir daí, milhares de pessoas procuraram-no a pedir socorro.
Ainda na semana passada, conta, recebeu um pedido de socorro do meio do Mediterrâneo. “Um barco com várias pessoas esteve oito horas para ser socorrido. Se houvesse um dispositivo eficaz, elas teriam recebido socorro imediato. Com essa espera, morreram duas pessoas.”
Mussie Zerai esteve dois dias em Fafe, a participar no Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade. A organização que dirige, a Agenzia Habeshia (que significa “mistura”) foi uma das homenageadas no terceiro dia do encontro, quinta-feira passada. 

O padre Zerai tem bem presente o contraste do actual momento com aquilo que os “pais fundadores” da União pretendiam: “Os pais fundadores queriam uma UE baseada na solidariedade e no respeito pelos direitos humanos, que fosse farol para o resto do mundo. A única coisa que a UE conseguiu, nos últimos 20 anos, foi deixar a guerra na casa dos outros, porque não conseguiu fazer uma prevenção dos conflitos.”
“A verdadeira crise da Europa não é económica, mas é de ter esquecido as suas próprias raízes. Temos uma UE baseada numa moeda, mas não sobre valores comuns ou sobre a solidariedade”, acrescentou. Para criticar ainda: “Não podemos pensar em transferir para a Europa metade de África ou Ásia. Os sírios e iraquianos devem viver nos seus países. Mas a UE vendeu armas no valor de 15 mil milhões aos países do Médio Oriente. O que se deve então fazer? Não vender armas, e transformar esses recursos em instrumentos de paz.”

Sensibilizar a opinião pública

O trabalho fundamental e mais decisivo é sensibilizar a opinião pública, diz Mussie Zerai. Por isso, começou a contactar instituições e meios de comunicação, a denunciar rotas de tráfico humano que passavam pelo Sudão ou pelo Sinai... “Descobrimos redes de tráfico de órgãos, pessoas que eram mortas para que os seus órgãos fossem vendidos.”
O tráfico está a ser, aliás, favorecido pelas própria políticas europeias, acusa ainda o padre eritreu. “O que estamos a fazer é dizer às pessoas: ‘se queres viajar, vende um rim’. Depois, quando estão na mesa de operações, tira-se-lhe não só o rim, mas vários outros órgãos. Encontrámos três mil cadáveres no Sinai, escondidos na areia. Fechar as fronteiras é um grande favor que se faz aos traficantes.”
A afirmação é confirmada pelos próprios: o padre Zerai cita uma reportagem recente em que um traficante disse ao jornalista que, num ano, o tráfico humano rendeu mil milhões de dólares. “Os 90 milhões de euros que a UE gasta para proteger as suas fronteiras, sem resultado, para que servem? Falta vontade política para resolver o assunto.”
Há caminhos para se resolver o problema, insiste Mussie Zerai. Acabar com a venda de armas para as regiões em guerra é um deles, abrir corredores humanitários, apoiar os países que estão na linha da frente do acolhimento, abrir as embaixadas, são outras medidas necessárias. “Todas as coisas têm de ser feitas ao mesmo tempo.” E iniciativas como o Terra Justa são importantes: “Se a sociedade civil estiver sensibilizada, os políticos não terão desculpa”.
O recente acordo da UE com a Turquia é muito criticado pelo padre Zerai: “Será a Turquia a decidir quem pode entrar na Europa. Os perseguidos, os curdos e muitos outros ficarão sujeitos aos critérios da Turquia”, que não são os mais respeitadores dos direitos humanos.
O que define políticas é o dinheiro, insiste. Mesmo no Parlamento Europeu, ou em encontros internacionais, quando se fala dos refugiados, acaba-se a falar de petróleo, gás natural, economia e finança. “A pessoa e a dignidade humana não estão no centro dos debates. Se a economia não está ao serviço das pessoas, para que serve?”
Mussie Zerai recorda a Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando ela diz, no início que “cada ser humano nasce com a mesma dignidade e os mesmos direitos”. A Declaração “é actualmente letra morta”, porque estamos a dizer a estas pessoas que elas não são dignas de entrar no meu território ou de ser tratadas como eu.”
Para final de conversa, cita ainda o evangelho, que diz para amar o próximo. “Como posso chamar-te clandestino, ilegal, inferior a mim, se te devo tratar como igual a mim?...” E conclui: “Sem justiça, não haverá paz; sem paz, teremos sempre milhões de refugiados, milhões de pessoas em fuga.”

Texto anterior no blogue
Os que pagam para morrer fazem perguntas - Terra Justa ouviu Tareke Brhane, líder do Comitato 3 Ottobre, contar na primeira pessoa o que passa um refugiado para chegar à Europa



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