sábado, 30 de abril de 2016

O padre jesuíta checo a quem o Marquês de Pombal roubou a luz do dia

Evocação


O Forte de São Julião da Barra, local da prisão do padre Karel Přikryl

“... É um subterrâneo que faz lembrar uma cave funda, ou melhor, uma tumba funerária antiga. A sua posição na orla marinha causa uma humidade constante. Estranhamente, há aqui muitos vermes pequenos. Sofro imenso com eles. Abriram buracos na parede para que uma luz fusca, que por eles apenas com dificuldade consegue penetrar, mostrasse o caminho àqueles que nos trazem algum alimento. Mas nas nossas masmorras não penetra nem ar, nem a luz do dia. Deixo ao vosso juízo o quanto esta cave não deve feder e ser insalubre. O óleo rançoso do candeeiro que nos ilumina espalha um mau cheiro insuportável. A cela em que me encontro tem dezasseis pés de comprimento e treze pés de largura. Outras aqui há ainda mais pequenas, onde viver a dois se torna muito apertado…”
A descrição é de 1766, e é feita pelo padre jesuíta checo Karel Přikryl que, detido em Goa, foi deportado para o forte de São Julião da Barra, depois de o Marquês de Pombal ter ordenado a expulsão dos jesuítas. A sua história será evocada hoje, sábado, numa leitura encenada das cartas do padre Přikryl, que decorrerá a partir das 16h, precisamente no mesmo local onde esteve preso, com mais 170 padres da Companhia de Jesus. A evocação terá a participação do padre e teólogo checo Tomáš Halík, autor de Paciência Com Deus (e que está em Portugal para apresentar o seu último livro, Quero que tu sejas – Podemos acreditar no Deus do amor?)
O acto comemorativo que decorre neste sábado, encenado por Milena Štráfeldová e H. Svatošová, tem o título Seis Anos Numa Masmorra e é organizado pela embaixada da República Checa em Portugal.
Karel Přikryl esteve detido seis anos – pouco tempo, se comparado com muitos dos seus colegas, que chegaram a estar presos 18 anos. O padre Přikryl teve a sorte de a imperatriz Maria Teresa, da Áustria, ter intercedido pelo seu súbdito, através do embaixador em Lisboa.

Na prisão, consta que os jesuítas criaram uma espécie de código morse, através do qual enviavam mensagens de umas celas para as outras. Mas os guardas proibiram o seu uso, receando que os jesuítas planeassem escapar da fortaleza. Em alternativa, os jesuítas usaram a  palha em que dormiam para criar apitos com os quais assobiavam o código simplificado.
Com o passar do tempo, explica o texto de apresentação que será lido esta tarde em São Julião, trocaram mesmo mensagens escritas em folhas de papel arrancadas de livros: a partir do pão endurecido faziam a caneta e, como tinta, usavam o borralho do óleo queimado. Por fim, treinaram gatos, que os havia às dezenas na prisão, para trocar mensagens entre celas.
Karel Přikryl, nascido em 1712, numa família burguesa de Praga, suportou, tal como os seus companheiros, uma cela subterrânea, fria e húmida, apenas a pão e água e sem qualquer vigilância médica.
O padre checo, que fizera os votos de jesuíta em 1748, em Jičín, partiu logo a seguir da Boémia para Itália e Portugal e, daqui, para Goa e os então territórios portugueses da Índia. Aí, o padre checo dedicou-se ao estudo das línguas locais (escreveu um manual de gramática goesa) e ao ensino no seminário diocesano.
Em 1776, depois da ordem de expulsão, Přikryl fez a viagem de regresso à Europa, já na condição de prisioneiro. Durante os cinco meses que demorou a travessia, morreram 23 passageiros, conta ele numa das cartas. Quando desembarcaram, após três dias fundeados junto ao forte, os jesuítas vindos do Oriente juntaram-se aos que tinham vindo do Maranhão, no Brasil. “No primeiro dia após a nossa chegada, não tive mais que a terra húmida como leito e o meu breviário como almofada”, descreve, numa outra carta, onde também fala da impossibilidade imposta aos presos, de falarem entre si ou, sequer, de se confessarem uns aos outros. “Estamos aqui nas nossas sepulturas. Só o tempo e a miséria, ou melhor, a Providência de Deus, nos possibilitou mais tarde criar uma ligação duma cela para a outra e conhecer-nos mutuamente...”

Depois de libertado, o padre Přikryl voltou à Boémia natal em 1767. Colocado como responsável espiritual do Colégio da cidade de Hradec Králové, acabaria por ser o último jesuíta, depois da abolição da Ordem, em 1773. Viria, ainda assim, a sobreviver a mais esse acontecimento, morrendo em 1785.

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