Evocação
“... É um subterrâneo que faz lembrar uma cave funda, ou melhor, uma tumba
funerária antiga. A sua posição na orla marinha causa uma humidade constante.
Estranhamente, há aqui muitos vermes pequenos. Sofro imenso com eles. Abriram
buracos na parede para que uma luz fusca, que por eles apenas com dificuldade
consegue penetrar, mostrasse o caminho àqueles que nos trazem algum alimento.
Mas nas nossas masmorras não penetra nem ar, nem a luz do dia. Deixo ao vosso
juízo o quanto esta cave não deve feder e ser insalubre. O óleo rançoso do
candeeiro que nos ilumina espalha um mau cheiro insuportável. A cela em que me
encontro tem dezasseis pés de comprimento e treze pés de largura. Outras aqui
há ainda mais pequenas, onde viver a dois se torna muito apertado…”
A descrição é de 1766, e é feita pelo padre jesuíta checo Karel Přikryl
que, detido em Goa, foi deportado para o forte de São Julião da Barra, depois
de o Marquês de Pombal ter ordenado a expulsão dos jesuítas. A sua história
será evocada hoje, sábado, numa leitura
encenada das cartas do padre Přikryl, que decorrerá a partir das 16h,
precisamente no mesmo local onde esteve preso, com mais 170 padres da Companhia
de Jesus. A evocação terá a participação do padre e teólogo checo Tomáš Halík, autor de Paciência Com Deus (e que está em Portugal para apresentar o seu último livro, Quero que tu sejas – Podemos
acreditar no Deus do amor?)
O
acto comemorativo que decorre neste sábado, encenado por Milena Štráfeldová e H. Svatošová, tem o título
Seis Anos Numa Masmorra e é
organizado pela embaixada da República Checa em Portugal.
Karel Přikryl esteve detido seis anos – pouco tempo, se comparado com
muitos dos seus colegas, que chegaram a estar presos 18 anos. O padre Přikryl
teve a sorte de a imperatriz Maria Teresa, da Áustria, ter intercedido pelo seu
súbdito, através do embaixador em Lisboa.
Na prisão, consta que os jesuítas criaram uma espécie de código morse, através
do qual enviavam mensagens de umas celas para as outras. Mas os guardas
proibiram o seu uso, receando que os jesuítas planeassem escapar da fortaleza. Em
alternativa, os jesuítas usaram a palha
em que dormiam para criar apitos com os quais assobiavam o código simplificado.
Com o passar do tempo, explica o texto de apresentação que será lido esta
tarde em São Julião, trocaram mesmo mensagens escritas em folhas de papel
arrancadas de livros: a partir do pão endurecido faziam a caneta e, como tinta,
usavam o borralho do óleo queimado. Por fim, treinaram gatos, que os havia às
dezenas na prisão, para trocar mensagens entre celas.
Karel Přikryl, nascido em 1712, numa família burguesa de Praga, suportou,
tal como os seus companheiros, uma cela subterrânea, fria e húmida, apenas a
pão e água e sem qualquer vigilância médica.
O padre checo, que fizera os votos de jesuíta em 1748, em Jičín, partiu
logo a seguir da Boémia para Itália e Portugal e, daqui, para Goa e os então
territórios portugueses da Índia. Aí, o padre checo dedicou-se ao estudo das
línguas locais (escreveu um manual de gramática goesa) e ao ensino no seminário
diocesano.
Em 1776, depois da ordem de expulsão, Přikryl fez a viagem de regresso à
Europa, já na condição de prisioneiro. Durante os cinco meses que demorou a
travessia, morreram 23 passageiros, conta ele numa das cartas. Quando
desembarcaram, após três dias fundeados junto ao forte, os jesuítas vindos do
Oriente juntaram-se aos que tinham vindo do Maranhão, no Brasil. “No primeiro
dia após a nossa chegada, não tive mais que a terra húmida como leito e o meu
breviário como almofada”, descreve, numa outra carta, onde também fala da
impossibilidade imposta aos presos, de falarem entre si ou, sequer, de se
confessarem uns aos outros. “Estamos aqui nas nossas sepulturas. Só o tempo e a
miséria, ou melhor, a Providência de Deus, nos possibilitou mais tarde criar
uma ligação duma cela para a outra e conhecer-nos mutuamente...”
Depois de libertado, o padre Přikryl voltou à Boémia natal em 1767.
Colocado como responsável espiritual do Colégio da cidade de Hradec Králové, acabaria
por ser o último jesuíta, depois da abolição da Ordem, em 1773. Viria, ainda
assim, a sobreviver a mais esse acontecimento, morrendo em 1785.
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