Terra Justa ouviu Tareke Brhane,
líder do Comitato 3 Ottobre, contar na primeira pessoa o que passa um
refugiado para chegar à Europa
Tareke Brhane (Foto Câmara Municipal de Fafe)
Tareke Brhane tinha 17 anos quando
saiu do seu país, a Eritreia, um dos mais pobres do mundo. A ideia era chegar à
Europa e começar vida nova. “Sem conhecer a língua, sem trabalho, sem quase
nada de meu, a começar do zero.” Tareke fugiu pelo deserto, esteve preso, foi
vendido por traficantes – pagaram por ele 50 dólares, cerca de 44 euros –,
sentiu a morte por perto várias vezes, atravessou o mar Mediterrâneo como tentaram
milhares de outras pessoas nos últimos 15 anos.
Brhane esteve dois dias em Fafe, a
participar na edição 2016 do Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e
Valores da Humanidade. A organização que dirige – o Comité 3 de Outubro – foi uma
das homenageadas de quinta-feira à noite, o terceiro dia da iniciativa.
É por ter atravessado o mar que
Tareke se considera “um filho do Mediterrâneo, um dos que sobreviveram a
prisões, ao deserto”. E acrescenta: “Noventa e nove por cento de nós pagam para
ir morrer. Arrisco a minha vida por um por cento de possibilidades.”
Não será tanto assim o que as
estatísticas mostram: dos mais de um milhão que atravessaram o Mediterrâneo
desde o início da década, morreram algumas dezenas de milhar naquele que se
tornou um grande cemitério de água (em 2015, terão sido quase três mil pessoas,
segundo a Organização Internacional das Migrações). Mas os números, já de si
trágicos, são apenas uma pequena parte do que sofrem os refugiados: no caso de
Tareke, e dos eritreus que fogem (são o terceiro maior grupo em fuga, após os
sírios e os afegãos), eles tentam escapar a uma violenta ditadura que viola
permanentemente os mais elementares direitos.
Um refugiado passa a vida a ter de
se “justificar”, a ser metido em prisões ou em campos – no Sudão, na Líbia, ou
na Europa. “Eu fui metido com 34 pessoas num pequeno jeep. Imaginem que vos
roubam o vosso smartphone. Ficariam irritados. Agora imaginem que vos tiram a
casa, os bens, a família, tudo... Como ficariam?” Para comer, muitos dias só há
farinha misturada com água. “O refugiado torna-se um produto de um traficante
que vende a outro traficante...”
Há outras realidades: “Comigo
havia uma família, marido e mulher. Se houver uma mulher, uma mãe ou uma irmã,
elas correm o risco de ser violadas à tua frente, sem que nós possamos reagir.”
A vida – o que resta dela – está nas mãos de outra pessoa, que fica com o
passaporte, o dinheiro, o poder de vender pessoas.
As mãos. São elas, muitas vezes, a
última ponta do desespero, quando finalmente chegam – os que chegam – à costa.
As mãos que, mostraram as alunas da Escola de Ballet de Fafe na conferência e
espectáculo da noite de quinta-feira, se esticam de um lado a pedir socorro, ou
se estendem do outro, a ajudar quem chega – mesmo contra as vontades de tantos
governos e de uma União Europeia desnorteada.
“Sou uma pessoa com sentimentos, amo e choro como vocês”
“O que são os que chegam? Eu sou apenas
um número para as estatísticas dos que morrem ou dos que sobrevivem. Mas eu sou
uma pessoa com sentimentos, amo, choro, faço tudo o que vocês fazem”, afirmava
Tareke, numa das intervenções, no Café Com Letras cheio e com muitos
estudantes, durante uma das conversas de quinta-feira.
Cinco anos depois de ter saído do
seu país, Tareke Brhane chegou à Europa, começando a colaborar como tradutor
com os Médicos Sem Fronteiras ou a Save The Children.
A 3 de Outubro de 2013, pelo menos
368 pessoas morreram num naufrágio no Mediterrâneo, ao largo de Lampedusa. O
Papa Francisco disse que era “uma vergonha” e Tareke achou que era altura de
começar a fazer alguma coisa para sensibilizar as opiniões públicas europeias.
Nasceu o Comitato 3 Ottobre, para defender a institucionalização de um dia de
memória e reflexão sobre os refugiados que procuram viver em paz.
A boa notícia surgiu há três
semanas, quando o Parlamento italiano aprovou a ideia. Tareke espera, agora,
que ainda em Abril o Parlamento Europeu tome idêntica decisão realtiva a todos
os Estados-membros da União.
“Agora é giro: o Tareke vai a Bruxelas,
está com o Papa, etc... Antes, não era ninguém”, conta o próprio, na terceira
pessoa. “Vocês nasceram aqui, podem viajar por todo o mundo. Ser livre quer
dizer poder decidir onde viver e onde morrer. E, por ter nascido onde nasci,
tenho de ficar ali, não posso ir para sítio nenhum.”
E do que se fala quando se fala dos
refugiados que procuram a Europa? Apenas três por cento deles querem vir viver
para aqui. Por contraste, só o maior campo de refugiados do mundo, no Quénia,
tem cerca de dois milhões de refugiados. “Dediquem só cinco minutos para tentar
compreender, não para mudar a vossa opinião. Os que morrem no Mediterrâneo são
mortos invisíveis, por isso é importante colocar o tema da imigração nas
escolas e dar instrumentos para decidir.”
Tareke sabe, no entanto, que falar
não é fácil – não tão fácil como vestir uma tshirt como a do Comité, por
exemplo, que diz “proteger as pessoas, não as fronteiras”. “A experiência
enriqueceu-me muito, mesmo se com muito sofrimento. Tenho de falar de
violência, de mortes; fiz uma volta pela Itália, mas custa muito.” E de novo o
apelo à fantasia: “Imaginem que são violados e têm de contar essa experiência
dezenas de vezes... Eu faço-o, porque é preciso dar voz a estas pessoas... Caso
contrário, ninguém falará delas.”
Texto anterior no blogue
Um refugiado pode ser um rosto detrás desta cortina - Encontro Terra Justa, em Fafe
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