Frederico Lourenço foi hoje distinguido com o Prémio Pessoa 2016. O reconhecimento do júri destaca o trabalho do ensaísta e helenista na tradução
dos clássicos, o que inclui a maratona a que Lourenço meteu ombros com a
tradução da Bíblia dos Setenta, ou Septuaginta, uma tradução do século III
a.C. feita por um conjunto de 72 sábios judeus em Alexandria do Egipto.
Já antes, Frederico Lourenço publicara O Livro Aberto (ed. Cotovia) com um conjunto de pequenos ensaios
sobre a Bíblia, no qual revelava a sua paixão pelo texto bíblico. Nesses
artigos, colocando-se claramente numa posição antagónica da infeliz frase de
Saramago, quando o escritor Nobel falou da Bíblia como um “manual de maus
costumes”, Lourenço acaba por deixar o leitor frustrado porque não leva o seu
exercício até ao fim. Ou seja, fica enredado quase numa tentação próxima da de
Saramago: a de recusar a possibilidade da hermenêutica de um texto clássico.
Uma das edições da Bíblia dos Setenta (imagem reproduzida daqui)
A 8 de Outubro, publiquei na Revista E, do Expresso, um texto
de recensão crítica do primeiro volume da Bíblia de Lourenço, no qual afirmava
que este era o acontecimento literário do ano. Fica a seguir o texto, acrescentando,
em relação ao que era dito, que a recriação da tradução da Bíblia a partir do
grego é uma marca indelével deste trabalho.
A Bíblia de Lourenço, acontecimento literário do ano
A primeira observação deveria ser uma evidência: uma nova tradução
da Bíblia (mesmo se ainda só com os quatro evangelhos) é o acontecimento
literário do ano. A Bíblia, como refere Frederico Lourenço (na apresentação
geral da obra a propósito da Bíblia grega, que serve de base a esta tradução) é
“um marco da cultura universal que – pelo seu valor religioso, estético e
histórico – urge conhecer”.
Seria fastidioso enumerar outros apelos do género, desde Goethe a
Bono Vox ou a George Steiner. Só isso deveria bastar para reconhecer a
importância de uma nova tradução bíblica. Mas, numa realidade culturalmente
deficitária em várias áreas como é a portuguesa, é de temer que isso não se
registe em toda a sua grandeza. É uma grande alegria, por isso, que alguém com
a erudição e a qualidade reconhecida de Frederico Lourenço se abalance a
traduzir a Bíblia.
Esta é uma aventura de um homem só, mesmo se não é a primeira vez
que acontece em português: o protestante João Ferreira de Almeida e os padres
Pereira de Figueiredo e Matos Soares fizeram traduções solitárias, dando todos
eles contributos riquíssimos à língua portuguesa.
João Ferreira de Almeida foi, no século XVII, um caso único: tendo
ido de Portugal para o sudeste asiático, empreendeu a tradução da Bíblia, que
não chegou a concluir antes de morrer na actual Jacarta, em 1691. Mas deixou
uma versão que, depois de completada por outros seguidores, foi já impressa em
mais de duas mil edições e perto de duzentos milhões de exemplares, em Portugal
e no Brasil – o que faz dele, como diz Herculano Alves na biografia que
escreveu, o escritor mais editado em português: as Sociedades Bíblicas
continuam a publicar o seu texto, que é a referência para os protestantes
lusófonos. Uma das últimas versões da Bíblia de Almeida, como é conhecida, foi
publicada há uma década, com texto fixado por José Tolentino Mendonça e
ilustrações de Ilda David’.
A propósito de Almeida, há duas incorrecções de Lourenço: ele não
fugiu de Portugal para traduzir a Bíblia – os dados mais seguros que
actualmente se conhecem apontam para uma saída do país a que se seguiu uma
conversão ao calvinismo, já na Holanda ou nas Índias Orientais; e ainda em
vida, em 1681 (dez anos antes de morrer) o tradutor da Bíblia viu publicado o
seu Novo Testamento.
Na noção de “a Bíblia mais completa em português” tem jogado a
informação divulgada pela editora. E isso é verdade, em parte. Mas desengane-se
quem pense que estamos perante alguma nova revelação de matéria que nos foi
escondida durante séculos. O cânone bíblico, ao contrário do que a fraca
literatura de cordel pretende, foi-se fixando ao longo de séculos e foi matéria
de grandes debates. Hoje, grosso modo, subsistem dois grandes cânones.
Se em relação ao Novo Testamento (a parte da Bíblia referente a
Jesus), os 27 livros que dele fazem parte são aceites por todos os cristãos
pelo menos desde o século XVI, já o mesmo não acontece com o Antigo Testamento
cristão (ou Bíblia hebraica), sujeito a diferentes arrumações.
Lourenço propõe-se traduzir um dos mais extensos, o da Septuaginta, ou Bíblia dos Setenta
(assim chamado porque teria sido traduzido do hebraico para grego por um
conjunto de 72 sábios judeus, em Alexandria do Egipto, no século III a.C.). A Septuaginta inclui entre 46 e 53 livros,
consoante as edições e organização interna. O mais normal são os 46 livros do
cânone usado pela Igreja Católica e boa parte das Igrejas Ortodoxas. (O
protestantismo assumiu como canónicos apenas os 39 livros usados pelos judeus
da Palestina, retirando da Bíblia os sete que eram usados pelos judeus da
diáspora, chamados deuterocanónicos.)
Em rigor, deveríamos, por isso, falar de uma outra organização da Septuaginta, pois também nesta há
versões diferentes. Por exemplo, os livros de Susana e de Bel e o Dragão,
que no plano da tradução de Lourenço aparecem separados, fazem parte do cânone
católico e estão traduzidos na edição da Bíblia
dos Capuchinhos (são os dois últimos capítulos do livro de Daniel). Já os
terceiro e quarto livros de Macabeus são considerados pela tradição cristã como
pseudo-epígrafes, uma espécie de livros de piedade popular, mais ao nível de
textos como o Talmude (comentários de rabinos judeus à Bíblia). E esta
diferença – de textos, mas sobretudo de arrumação – deveria aparecer mais clara
na introdução.
Há uma outra falta: nunca se refere, nas introduções, a chamada
fonte Q, aquele primeiro texto onde Marcos se teria inspirado para escrever o
seu evangelho, e que seria depois também fonte de Mateus e Lucas.
É nas introduções que encontramos, aliás, outras reticências: ao
dizer que esta tradução privilegia, na tradução e nos comentários, uma forma
“não-doutrinária, não-confessional e não-apologética” de compreender o texto
grego, Lourenço está a inferir que uma tradução confessional – ou feita por
pessoas ligadas às diferentes confissões – é doutrinária e apologética. Mas o
próprio, além de se assumir dentro da tradição cristã (ainda que com reservas
para com as instituições) reconhece o valor de traduções como as de Almeida,
Figueiredo ou dos padres capuchinhos. E a estas poderia acrescentar-se a
tradução da Bíblia de Jerusalém, da Escola Bíblica ligada aos padres dominicanos.
Todas elas são traduções confessionais, e todas elas têm dado grandes
contributos para a evolução dos estudos bíblicos (e da própria língua, com o
caso mais espantoso da King James para o inglês). Pode dizer-se, aliás, que tem
sido em grande parte a investigação bíblica a fazer mudar várias formas de as
igrejas cristãs pensarem e se organizarem.
Uma última referência em relação à prioridade dada à literalidade:
é pena que, em algumas ocasiões, ela não vá mais longe. Apenas um exemplo: em
Mateus 1, 18, traduz-se: “O nascimento de Jesus Cristo aconteceu deste modo.
Estando sua mãe Maria desposada com José – e antes que eles tivessem consumado
o casamento...”; em nota, o tradutor acrescenta que esta última expressão, à
letra, se traduziria: “antes que se tivessem juntado”.
De resto, sublinhe-se de novo a importância deste trabalho e a
grande beleza de determinadas passagens. E verifique-se que, como escreve
Frederico Lourenço sobre Jesus: “Bem vistas as coisas, Ele afinal não morreu.
Porque a verdade é esta: tanto crentes como não-crentes andaremos às voltas com
Jesus nas nossas cabeças, enquanto houver seres humanos na Terra.”
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