Quem foi Jesus? E quem é ele hoje?
A cada 25 de Dezembro os cristãos celebram o seu nascimento, mas, quanto à sua
vida subsistem muitas dúvidas e mistérios. Fomos saber quais as mais recentes
teses sobre este “judeu marginal” que “viveu num recanto do Império Romano”. Este texto foi originalmente publicado no Público de 23 de Dezembro de 2011.
Um profeta ou um blasfemo? Um
subversivo ou um sedutor? Um homem ou um deus? Um marginal ou um judeu da
elite? Um amigo dos pobres e das mulheres ou um opositor aos líderes religiosos
do seu tempo? Um político ou um mestre espiritual? Um sonhador ou um
revolucionário?
Impossível compor uma biografia de
Jesus de Nazaré, cujo nascimento é assinalado desde há séculos a 25 de Dezembro
– mesmo se não há certezas sobre a data exacta ou sequer sobre o próprio
nascimento. Começamos então por ver que sabemos pouco. Ou talvez não. Ed Parish
Sanders, um dos mais importantes estudiosos sobre a personagem histórica de
Jesus, escreve n’A Verdadeira História de Jesus (ed. Notícias/Casa das Letras): “Há muitos aspectos sobre o
Jesus histórico que permanecerão um mistério.”
Não se sabe, por exemplo, quando e
onde nasceu exactamente – apesar de, na festa do Natal, se assinalar a cidade
de Belém como lugar onde veio à luz, segundo a tradição. Não se sabe se teve
irmãos, embora John P. Meier, autor de Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico (ed. Imago/Dinalivro), uma das
obras maiores dos estudos contemporâneos sobre Jesus, aponte para a
probabilidade de serem legítimos os vários irmãos de Jesus.
Não se sabe ainda como viveu
durante os primeiros 30 anos da sua vida. Não se sabe se se casou – Meier diz
que tudo aponta para que tenha permanecido celibatário. Desconhece-se se Jesus
tinha consciência plena da sua missão – ou, na linguagem crente, se era Deus.
Sabemos pouco, então, sobre Jesus?
O mesmo E. P. Sanders escreve: “Sabemos que iniciou a vida pública sob João
Baptista, que teve discípulos, que esperava o Reino, que foi da Galileia para
Jerusalém, que fez algo hostil ao Templo, foi julgado e crucificado.” Sabemos
ainda “quem era, o que fez, o que ensinou e por que morreu; e, talvez o mais
importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o
entenderam, mas que lhe foram tão fiéis que mudaram a História”.
Bilhete de identidade
Uma biografia impossível? À
procura de respostas, a Sociedade Missionária da Boa Nova organizou o colóquio Quem foi, quem é Jesus Cristo? [as actas
foram entretanto publicadas, com o mesmo título, pela Gradiva]. A convite do teólogo e filósofo
Anselmo Borges, vários pensadores e especialistas contemporâneos passaram por
Valadares (Gaia), em Outubro [de 2011], dando um panorama do que se conhece
sobre Jesus, em várias áreas. Acompanhámos a iniciativa, que contou com a
participação de alguns dos mais destacados teólogos espanhóis.
O bilhete de identidade de Jesus
tem alguns elementos seguros, outros menos: sabe-se que a sua família era de
Nazaré, na Galileia (actual norte de Israel). Não há certezas sobre se terá
nascido ali ou em Belém. A tradição aponta para esta pequena cidade próxima de
Jerusalém para confirmar Jesus como o messias esperado pelos judeus, a partir
de textos do Antigo Testamento.
Mosaico de Cristo Pantocrator, na igreja de Santo Apolinário, em Ravena
O seu pai – adoptivo, segundo a
tradição cristã, já que o verdadeiro pai seria o próprio Deus – era artesão. O
que significava que a família tinha alguns meios de sobrevivência. Depois de
uns 30 anos de vida discreta, Jesus apareceu em público a ensinar uma nova
doutrina e a curar pessoas aflitas que o procuravam. Por causa disso, após
cerca de dois anos de vida pública, foi acusado pela elite religiosa e levado
junto do governador romano, Pôncio Pilatos, que o mandou crucificar. Dois dias
depois, vários dos seus seguidores começaram a dizer que o tinham visto vivo,
ressuscitado. Para lá destes dados, quem era este homem? Este “judeu marginal”,
como é designado por John P. Meier, que “viveu num recanto do Império Romano” e
que, depois de uma presença de intervenção pública que “pode não ter chegado a
dois anos”, “morreu como blasfemo religioso e subversivo social e político”. O
que fez ou disse para ser condenado à morte? Uma “morte de cruz, própria dos
escravos” numa “coligação de interesses religiosos e políticos de Jerusalém e
Roma”, nas palavras de Anselmo Borges.
Xabier Pikaza, teólogo basco
espanhol, adianta: o judeu Yeshua, ou Jesus, natural da Galileia, foi antes de
mais um profeta escatológico, ou seja, que anunciava o fim dos tempos e a
instauração do Reino de Deus. Como outros profetas escatológicos do judaísmo,
não sacralizava a ordem do Templo, não recusava a ordem social, mas insistia na
acção de Deus que iria “transformar a ordem social e política”.
Foi também um sábio, mestre de
moral, que falava através de parábolas, diz ainda Pikaza. Foi alguém
carismático, com a capacidade de curar pessoas, que gostava de estar à mesa com
amigos e conhecidos. John P. Meier entende que Jesus se via a si mesmo como um
messias na linha do rei David, considerado em Israel como libertador.
Essa foi uma das razões para que
fosse mal visto pelas autoridades – sobretudo as religiosas. Acabaria condenado
à morte, acusado de querer ser o “rei dos judeus”. O número de seguidores, a
sua crítica a aspectos da lei religiosa judaica, o facto de dizer que estava
iminente o fim da ordem social vigente e o seu apelo ao “reino de Deus” terão
sido causas essenciais para o levar à morte, diz Pikaza.
Polémicas mediáticas
Em 2003, a publicação de O Código Da Vinci, de Dan Brown,
provocou um fenómeno mediático à volta de Jesus. O autor, que não defende uma
tese original, funda-se em correntes gnósticas para afirmar um Jesus casado com
Maria Madalena e com descendência em França, para onde aquela emigrara.
O Jesus da gnose “tem pouco a ver
com o Jesus da História”, diz António Piñero, uma das autoridades mundiais
sobre o gnosticismo cristão. O Jesus gnóstico é mesmo “uma pura construção do
espírito humano”. Jesus, para os gnósticos, é “a manifestação humana da
primeira emanação de Deus transcendente, o seu unigénito, a sua palavra”.
Entendendo-se como seres
espirituais, os gnósticos vêem-se acima dos humanos, aos quais está reservado
um de dois fins: os hílicos ou pagãos terão o seu corpo destruído totalmente,
enquanto os psíquicos (cristãos integrados na Igreja), se viverem rectamente,
poderão despojar-se do corpo no momento da morte e ascender a um céu inferior.
Um entendimento coerente com o modo de olhar o mundo e a vida, vistos como
intrinsecamente maus.
Provavelmente, a perspectiva
gnóstica de Jesus fundou-se no quarto evangelho, o de João, embora este não seja
mais do que “protognóstico”. Ao contrário das correntes gnósticas que se
desenvolverão nos séculos II e III, o evangelho de João entende que Jesus viveu
historicamente e que a sua mensagem é para todos e não apenas para alguns,
poucos, eleitos.
Nas últimas décadas, e de modo
surpreendente, a arqueologia tem confirmado a historicidade do quarto
evangelho: ao contrário do que se pensava, lugares e factos narrados apenas no
evangelho de S. João tiveram existência concreta. Um desses lugares, que se
pensava serem apenas recurso narrativo, é a piscina de Siloé, perto de
Jerusalém, onde Jesus cura um cego de nascença.
No último século e meio, as
ciências bíblicas socorreram-se da arqueologia, da filologia, da crítica
textual e de muitas outras disciplinas para tentar chegar mais perto do Jesus
histórico. Nas últimas duas décadas – sinal dos tempos? – contrapôs-se a esse movimento de rigor
científico uma tendência segundo a qual basta alinhar uns quantos indícios e
algumas polémicas mediáticas para afirmar supostas verdades científicas.
A publicação do Evangelho de Judas, texto gnóstico do
século II, em 2007, foi um desses episódios mediáticos à procura de polémica.
Mas o texto, ao invés de corrigir o que se sabe dos quatro evangelhos canónicos
sobre Jesus, apenas permitia conhecer a história e convicção de um grupo de
cristãos gnósticos, os cainitas.
O Cristo de São João da Cruz (imagem reproduzida daqui)
Outro episódio foi a “descoberta”
de um ossário supostamente pertencente a Jesus e à sua família, que durante 25
anos foi encarado por especialistas como mais um conjunto de débeis vestígios
arqueológicos. Só que, em 2006, os cineastas James Cameron (realizador de Avatar) e Simcha Jacobovici realizaram
um documentário em que pretendiam provar que aquele era mesmo o túmulo perdido
de Jesus. Nos seus blogues, quer Piñero, quer Pikaza criticaram veementemente os
cineastas, na esteira de diversos investigadores israelitas, acusando-os de
querer apenas fazer dinheiro e apontando as razões de falta de sustentação
científica.
Também um filme como A Paixão, de Mel Gibson, pretendeu
mostrar no ecrã o que teriam sido os sofrimentos infligidos a Jesus. Mas,
critica Pikaza, a obra não faz mais do que apresentar um Jesus “sobrenatural”,
que está “separado da história concreta e dos conflitos sócio-religiosos que
estão em primeiro plano nos evangelhos”.
Jesus não sabia tudo
Se Jesus era Deus, conheceria ele
tudo o que lhe aconteceria? Juan Estrada, teólogo e professor na Universidade
de Granada, diz que Jesus “não sabia tudo”. Por isso é que ele era um homem
como os restantes, que aprendeu e cresceu como qualquer outra pessoa. O que não
invalida a possibilidade de ser também, ao mesmo tempo, Deus – para quem crê.
Mas já lá iremos.
“Se Jesus é filho de Deus, tem de
ser primeiro filho”, diz Estrada. “O que não podemos é projectar sobre a vida
de Jesus tudo o que viremos a saber sobre ela, depois da ressurreição.”
Estrada admite que as leituras da
vida de Jesus estão condicionadas “pela perspectiva da morte e ressurreição e
pela interpretação dogmática que se impôs no século IV”. É como um livro que se
começa a ler pelo fim: antes de contar a sua vida, já se conhece “a identidade
do personagem, desde a sua dupla identidade de filiação e divindade”.
O resultado é um “Jesus tão divino
que resulta pouco humano”, diz o teólogo espanhol. De tal modo que se faz dele
um “super-homem”. Mas, contrapõe, os textos dos evangelhos apresentam, ao
contrário, alguém que se vai descobrindo a si mesmo: Jesus crescia “em
sabedoria e graça”, lê-se no evangelho de S. Lucas. E, em vários textos em que
Jesus se relaciona com pagãos (não judeus), ele próprio se surpreende e muda a
sua teoria e prática em relação a eles.
É verdade que os evangelhos
utilizam o título de “filho do homem” para se referir a Jesus. Esse título,
usado 66 vezes, tem uma conotação messiânica, diz Estrada. E também o
distanciamento de Jesus em relação à sua família (física), que acontece durante
a sua vida pública, mostra que ele se sente enviado por Deus.
Era Jesus um keynesiano antes do
tempo? Apontado como amigo dos mais pobres e defensor de uma mais justa
distribuição da riqueza, Jesus é radical em alguns dos seus ensinamentos, diz
José Ignacio González Faus, um dos mais destacados nomes da teologia espanhola
e europeia. Um desses ensinamentos é a conhecida frase: “Não se pode servir a
dois senhores, a Deus e ao dinheiro.” Entre Deus e o dinheiro há uma “incompatibilidade
absoluta”, diz Faus, “porque o dinheiro exige do ser humano uma rendição e uma
entrega total”.
Sieger Koder, O Bom Pastor (imagem reproduzida daqui)
González Faus recorda que os
evangelhos utilizam a palavra aramaica mamôn
para designar o dinheiro. Mamôn
remete para o verbo hemin, que
significa “acreditar”, “aceitar confiadamente” – é daí que deriva a palavra ámen, que significa “assim seja” ou
“faça-se”. “O dinheiro gera um tipo de fé de índole religiosa: daí deriva a sua
incompatibilidade com a fé em Deus”, conclui o teólogo.
Faus socorre-se do economista John
Maynard Keynes, que, na sua Teoria Geral
sobre o Emprego, o Juro e o Dinheiro, escreve que o dinheiro está a
substituir a dimensão religiosa, na sua função de assegurar o futuro, sempre
“tão inseguro para o ser humano”. “A riqueza é para ajudar quem a não tem, não
para desfrutar egoisticamente dela”, comenta González Faus.
Em Jesus, antes do Cristianismo (ed. Paulinas), o sul-africano Albert Nolan,
biblista e padre da Ordem dos Pregadores, ou dominicanos, concorda: “A busca de
riqueza está diametralmente oposta à busca de Deus ou do Reino de Deus.” E acrescenta que, além de se ter oposto às
autoridades religiosas do judaísmo, Jesus também se confrontou com os homens de
negócios e as autoridades judaicas de Jerusalém.
O eurodeputado Paulo Rangel, do
PSD, que também falou no colóquio, sobre Jesus e a política, tem uma
perspectiva diferente. Refugiando-se nos textos dos quatro evangelhos, e “com a
liberdade que só a ignorância permite”, diz que não se descobre neles uma
“teoria geral de Jesus” sobre a política.
“A relação de Jesus e da sua
mensagem sobre a política” é de carácter “fragmentado, intermitente e aberto”.
Para Rangel, não se detecta na vida de Jesus um momentum maquiavélico, de afirmação de intervenção política. “Não
há um fechamento de Jesus à política e ao político, mas não há um momentum político”, diz o eurodeputado.
No debate entre “conservadores” e
“progressistas”, prossegue Rangel, foram os “progressistas” que denunciaram o
conluio da religião com o poder. Mas são estes que mais insistem numa leitura
política da personalidade de Jesus, colando-a a um modelo – ainda que, admite,
Jesus se preocupe com os mais pobres e os mais desfavorecidos. O que o
eurodeputado gostaria era de ver a Igreja Católica a deixar “cair os sinais
políticos” que foram, porventura, úteis no passado, mas que “hoje não são
necessários”.
Memória apagada
Jesus provavelmente não se casou.
Mas várias mulheres acompanharam-no, no grupo de seguidores mais próximos,
durante os dois anos e meio que terá durado a sua vida pública. Mas não
discriminou Jesus as mulheres, pelo facto de não ter nenhuma entre os doze
apóstolos?
“Não há dúvida que Jesus era judeu
e estava inserido na cultura judaica”, diz a professora universitária Isabel
Allegro de Magalhães, que tem investigado o tema. Mas Jesus fez rupturas, que
escandalizaram mesmo os mais próximos. Isabel Allegro defende que Jesus não se
limitou a seguir a ortodoxia judaica do seu tempo, mas também não foi um
reformador. Antes deu prioridade à ideia da inclusão dos mais pobres e dos
marginalizados – entre os quais as mulheres.
Diversos estudos recentes apontam
também para um papel das seguidoras de Jesus mais preponderante do que até há
pouco era admitido. Maria Joaquina Nobre Júlio, autora de Jesus e as Mulheres dos Evangelhos (ed. Multinova), disseca os episódios dos
evangelhos para verificar que várias mulheres seguiam Jesus com um papel
importante no grupo dos discípulos. E na biografia Paulo (ed. Paulinas), Murphy O’Connor escreve que S.
Paulo colocou várias mulheres a liderar as comunidades cristãs que ele fundava –
realidade que está retratada em vários mosaicos bizantinos, mas foi depois
apagada da memória cristã, como o suíço Daniel Marguerat escrevia, em 2006, em Le Monde de La Bible.
O facto que abalou o mundo
Jesus ressuscitou? Questão central
do cristianismo, a ressurreição permanece um “obscuríssimo mistério”, como diz
Andrés Torres Queiruga, teólogo galego, traduzido em vários países. Zaratrustra
já falava da ressurreição antes da Bíblia, recorda. E, na Bíblia, os relatos da
ressurreição de Jesus são todos diferentes uns dos outros.
“Estamos a falar de algo que não é
possível comprovar”, admite este teólogo. Sanders escreve: “Nada é mais
misterioso do que a história da sua ressurreição, que tenta retratar uma
experiência que os próprios autores não conseguiram compreender.”
José António Pagola que, com Jesus - Uma Abordagem Histórica, enfrentou a censura de alguns bispos espanhóis,
limita-se a verificar que, historicamente, apenas se pode comprovar a fé dos
primeiros seguidores de Jesus na ressurreição.
De outro modo, o escritor francês
Jacques Duquesne escrevia há década e meia, em Jesus, uma obra que fez polémica em França: “A História não poderá
dizer se Jesus está vivo, ou se, pelo contrário, morreu para sempre no dia 7 de
Abril do ano 30. O que pode, porém, dizer é que se passou alguma coisa naqueles
dias, um acontecimento que, abalando aqueles homens e mulheres, abalou o
mundo.”
2 comentários:
Não li todas as obras citadas no artigo; por isso só me refiro ao livro de Sanders. «A Verdadeira História de Jesus» é um título que entendo como opção do editor para promover as vendas. O título da tradução seria mais fiel ao original se fosse « a figura histórica de Jesus»
José Neto
Importante postagem, António.
Vale uma leitura muito atenta.
Bem hajas
Teresa Frazão
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