A irmã Irene Guia num dos campos de refugiados por onde passou
(foto reproduzida
daqui)
Fazer um presépio pode ser objecto
de discussão num mosteiro, como conta a irmã Maria Domingos, monja no Mosteiro
de Santa Maria, do Lumiar (Lisboa). “Não vivemos para outra coisa senão o
louvor de Deus, a celebração da liturgia, a vida fraterna, dar um testemunho de
que há outra maneira de estar na vida... damos o essencial do tempo ao silêncio”,
conta também ela, na entrevista a Manuel Vilas Boas, onde se fala do
quotidiano, de pequenas histórias e da proposta de uma espiritualidade
diferente. E onde se termina a conversa evocando a cítara e a poesia de José
Augusto Mourão. Para ouvir aqui.
Bem mais longe, Irene Guia, que
estudou música em Viena, fala de um presépio com outras músicas, um presépio
que “anda por aí”, em pleno Curdistão iraquiano, depois de ter estado em
missões de apoio a refugiados em lugares como os Camarões, Timor, Ruanda ou
República Democrática do Congo. “Estar onde haja
gritos”, diz esta religiosa das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, que quer
apenas ajudar a “manter a esperança”, incluindo a dos yazidis, populações que
têm sido chacinadas e cujas mulheres são, muitas vezes, vendidas e revendidas.
A entrevista pode ser escutada aqui.
Na revista Bíblica, de Maio-Junho 2015, publiquei um texto sobre a irmã Irene
Guia, onde ela conta o seu trajecto pessoal e nas várias missões de apoio a
refugiados, com o Serviço Jesuíta aos Refugiados. O artigo fica a seguir na
íntegra.
Ter na pele a sensação de ter salvo uma vida
Viu Saidi a correr para ela e
nesse momento sentiu na pele a sensação de ter salvo uma vida. Viu Jimmy morrer
com um tumor e foi pedir mais meios para evitar mortes assim. E viu a esperança
que faz com que pessoas no limite “consigam padecer o incalculável.”
Chegou de capacete na cabeça,
partiu depois de o colocar de novo, sentada na motorizada da congregação, que
utiliza nas suas deslocações em Lisboa.
Houve um dia, num campo de
refugiados do Congo, em que a motorizada poderia ter dado jeito à irmã Irene
Guia, 55 anos, das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. O pequeno Saidi, 14
anos que mais pareciam oito, mal nutrido, ventre enorme, mãe doente, foi
identificado como precisando de cuidados de saúde. Mas tinha de andar 100
metros até ao posto de atendimento. Quando percebeu isso, começou a chorar.
“Um homem que me acompanhava pô-lo
às cavalitas e ele parou o choro.” A mãe, que tinha um cancro e era igualmente
mal nutrida, foi levada com o filho para o hospital. “Duas semanas depois, fui
visitá-los. Quando me viu, Saidi desatou a correr. Nesse dia, tive a sensação
na pele de que tinha salvo uma vida.”
Nem sempre tiveram um final assim
feliz as histórias desses pouco mais de quatro anos (2006-2010) nos campos de
refugiados do Ruanda e do Congo. Numa outra ocasião, ainda em Goma, província
de Kivu Norte (Congo), apareceu Jimmy, uma criança de quatro anos com um tumor
na cabeça que já lhe saía por um dos olhos, do qual cegara. Um dos
oftalmologistas – dois médicos para dois milhões de pessoas – pôs ainda a
hipótese de lhe extrair uma parte do tumor. “O que eles tinham para trabalhar
era boa vontade e um medidor de dioptrias. Não havia sequer lentes nem óculos.”
Jimmy acabou por morrer. Mas houve
consequências. “As mortes só são em vão se não acordarmos”, diz, convicta. Por
causa do rapaz, a irmã Irene foi, com um coronel dos capacetes azuis,
oftalmologista num hospital para militares da ONU, falar com responsáveis da
Organização Mundial de Saúde na região. Ganharam a promessa de equipar o
hospital de oftalmologia de Goma.
Da experiência nos campos de
refugiados, guarda memória viva da esperança: “Nunca experimentei tanto a
fidelidade de Deus como quando estamos junto do mal. E nunca vivi a esperança
como com aquelas pessoas: não é optimismo, é uma graça que faz com que elas
consigam padecer o incalculável.”
Uma ideia que não se acalmava no coração
A vontade de trabalhar com
refugiados e o JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados) foi-se formando aos poucos.
Começou vagamente após ter vivido, na Áustria, com duas refugiadas curdas do
Iraque. Só mais tarde se apaixonaria pelo tema, quando leu textos do padre
Pedro Arrupe, geral dos jesuítas, que fundara o JRS.
Em 1989, no Porto, recebeu um fax
da superiora geral a perguntar se queria trabalhar num colégio em Bikop, a 80
quilómetros da capital dos Camarões, Yaoundé. A escola, destinada a meninas de
uma zona de selva, dava formação profissional e a escolaridade básica. Esteve
lá dois anos e isso fez aumentar a vontade de um trabalho com pessoas
ainda mais fragilizadas.
“Desde que conheci o trabalho do
JRS que pedia à superiora geral um tempo para trabalhar com refugiados.” No
final de 2005, quando escrevia a carta anual à geral, deu consigo a pensar que
a ideia a acompanhava há muito. E o facto de Pedro Arrupe ter tido uma trombose
que o deixou imobilizado logo após fundar o JRS (a 14 de Novembro de 1980, data
do seu aniversário) dava-lhe a “certeza de que o JRS era obra de Deus”.
A ideia “não se acalmava no coração”.
Perguntou de novo à geral se podia partir. Meses depois, em Abril de 2006, a
geral telefonou com a resposta positiva. O JRS pediu-lhe para trabalhar,
primeiro, com refugiados congoleses de etnia tutsi no Ruanda; depois, com os
hútus e deslocados internos à força no Kivu Norte, em Goma (Congo). Tutsis e
hútus viraram-se uns contra outros, com um “terrível sofrimento”.
Acabou por ficar mais tempo que os
dois anos que duram normalmente as missões do JRS. O governo geral da
congregação queria colaborar com a organização, mas só num segundo momento foi
possível outra irmã “substituir” Irene Guia.
Nos campos, o JRS tinha a seu
cargo a educação. A escola é, naqueles lugares, “protecção e esperança”. Todo
esse tempo permitiu-lhe viver por dentro a parábola do capítulo 25 do evangelho
de São Mateus: “Eu não sofria como eles, mas estava a protegê-los.” E não
experimentava medo quando reunia com políticos ou polícias, que sabia serem
ex-criminosos. “Vivi a liberdade que Cristo nos dá.”
Não é por acaso que Irene Guia
cita o texto de Mateus. A Bíblia – que estudou na Universidade Gregoriana
(Roma), com Bruna Costacurta, uma “extraordinária professora” – “é palavra
viva: preciso de conhecer o contexto em que foi escrita para que ela me fale.”
Há vários textos que se tornaram
referência: nos três primeiros capítulos do livro do Génesis, “está tudo: quem
somos, de onde vimos, para onde vamos, a relação com Deus e com os outros, as
grandes questões que nos colocamos”.
Do Novo Testamento, cita a
parábola dos trabalhadores que, contratados a horas diferentes, recebem o mesmo
salário. “A bondade de Deus está fora dos nossos esquemas. É isso que a
parábola diz.” E há ainda outro texto que vê como o seu ADN: nos Actos dos
Apóstolos, Pedro e João sobem ao templo para rezar e respondem ao coxo de
nascença: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te dou. Em nome de
Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda.”
“O mundo andará sem nós...”
Nascida em Lisboa, embora com as
raízes no Norte (mãe) e Ribatejo (pai), Irene tem duas irmãs, além de um irmão
que morreu. Herdou dos pais a boa disposição, o sentido da autonomia e do
serviço aos outros. “Eles diziam que, qualquer que fosse a profissão,
deveríamos ser os primeiros na entrega.”
Desde cedo, estudou música na
Academia de Santa Cecília. “A música educa muito o coração.” Aprendeu piano até
aos 18 anos, quando foi para a Áustria estudar contrabaixo. Ficou numa
residência universitária internacional e foi aí que se cruzou com as refugiadas
curdas. “Fiquei muito amiga da comunidade, ainda sem perceber que eram
refugiados. E isso deu-me uma grande abertura ao universal.”
Aos 13 anos, deixou de ir à missa.
Aos 17, depois da morte do irmão, começou um processo de busca inverso. O final
veio quatro anos depois, num retiro no seminário do Fundão, por altura do
Natal, com péssimas condições e um frio imenso. Ouviu: “Deus ama-nos e Jesus
deu a vida por nós.” A frase feita levou-a, no contexto, a perguntar o que
devia fazer. Voltou para a Áustria, já com o Novo Testamento na bagagem e a
anunciar aos amigos da residência que, nesse domingo, queria participar na
eucaristia. Ofereceu-se para colaborar na paróquia, aprendeu a rezar com um
pequeno grupo evangélico, teve “conversas muito giras” sobre Deus, a fé, a
Bíblia...
Voltou para Portugal, trabalhou
três anos num banco, envolvendo-se ao mesmo tempo num grupo de jovens que se
reunia no colégio das Escravas. “Às tantas, aparece-me a questão vocacional.
Nuns Exercícios Espirituais, percebi que era essa a espiritualidade em que me
encontrava em casa e configurava a minha vida à vida de Jesus Cristo.”
Procurou várias congregações, mas
foi nas Escravas que ficou. E não lhe faz confusão o nome? “O que eu não
gostava mesmo era do ‘Coração de Jesus’. A iconografia ligada à devoção
complicava-me mais do que ‘Escravas’.” Reconciliou-se com a ideia também
através de um texto do padre Arrupe, intitulado “Só nele a esperança – por uma
teologia do sagrado coração”. Com a ideia, mas não com a iconografia, que
considera “pornografia religiosa: nem tudo serve para transmitir a mensagem, a
Igreja deveria ter mais cuidado com o que propõe quando fala de Deus”.
As Escravas, como todas as
congregações, são “convocadas para a missão: se esta não for o centro, podemos
ser solteirões e egoístas, ainda mais sabendo que temos o futuro assegurado.”
Os riscos da vida religiosa contemporânea, diz, são a solidão, a inveja, a
falta de entusiasmo. “A nossa vida tem de estar centrada em Jesus. Se não, o
que andamos a fazer?”
Preocupa-a também o lugar das
mulheres na Igreja: “Tem de haver uma alteração muito grande na Igreja.” Que
pode chegar ao sacerdócio, sim. “O papel da mulher vai ser uma questão central
do mundo. E o mundo não pode aceitar uma Igreja que, sendo misericórdia,
continua a reduzir a mulher a um papel secundário”.
Também aqui, recorda uma frase de
Pedro Arrupe: “Não me preocupa que
o mundo mude. Preocupa-me que demos respostas de ontem aos problemas de hoje. O
mundo anda sem nós, de nós depende que ande connosco.”
Publicação anterior no blogue
Sem comentários:
Enviar um comentário