terça-feira, 26 de setembro de 2017

D. Manuel Martins: “Que ninguém passe fome. Ninguém.”

Manuel da Silva Martins (1927-2017) - In memoriam


D. Manuel Martins (foto de Luís Vasconcelos/Global Imagens, reproduzida daqui)

Próximo de todos, brincalhão, o antigo bispo de Setúbal morreu ontem em casa de família. Manuel Martins insistia na ideia de que o apoio a quem mais precisa é uma consequência da fé cristã. O que lhe valeu críticas do poder político e de responsáveis... da Igreja.

Foi em meados da década de 1980. Como dezenas de outras empresas da região, uma metalomecânica de Setúbal, a fábrica dos Clérigos, estava para fechar. As máquinas iam ser retiradas para pagar aos credores e os trabalhadores ficariam de vez sem emprego. O bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, soube da situação e pediu a Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas diocesana, para o acompanhar numa visita às instalações.
Naquele caso concreto, que o próprio recordou numa entrevista ao Expresso em 2014, os trabalhadores tinham tomado conta da fábrica e a empresa até estava a recuperar clientes e encomendas. Mas os credores queriam dinheiro rápido. D. Manuel esteve reunido com vários deles, pedindo que adiassem a cobrança de dívidas e a falência. Sem resultado. Quando saiu, D. Manuel e Eugénio Fonseca ainda ouviram os gritos de mulheres agarradas às máquinas, que não queriam deixar ir embora.
O bispo só disse “o capital não tem coração”, antes de se remeter ao silêncio no resto da viagem de regresso. Quando reentrou em casa, as lágrimas vieram finalmente aos olhos e ele só conseguiu dizer a Eugénio Fonseca: “Trata de ir ter com cada família daquela fábrica, de modo a que ninguém passe fome. Ninguém.”
O agora presidente da Cáritas Portuguesa era uma das pessoas que estavam com o seu antigo bispo quando este morreu, ontem, domingo, às 14h05, na Maia, na casa de familiares onde se encontrava. Um padre tinha sido chamado para lhe administrar o sacramento da unção dos doentes. Depois disso, Eugénio Fonseca abraçou o bispo e ele morreu em paz. 

“Há fome em Setúbal”

Manuel da Silva Martins tinha 90 anos e uma vida preenchida, mesmo se foi a sua acção enquanto primeiro bispo da diocese de Setúbal, entre 1975 e 1998, que o tornou mais conhecido. Nomeado num tempo de ebulição política, teve de pensar bem na decisão. “A minha missão é anunciar o evangelho da libertação, da justiça e da paz”, disse à chegada. Começou por optar por viver numa casa modesta, em vez da casa episcopal. Logo depois, apanhou anos de uma profunda crise económica e social. Essa situação, que levou a uma realidade de desemprego, fome e aumento de suicídio, fez com que o bispo sentisse que não podia ficar calado, perante os casos de pessoas que lhe batiam à porta, desesperadas, a pedir pão, comida ou dinheiro para pagar bens essenciais.

Em 1984, numa entrevista a O Comércio do Porto, citada no livro D. Manuel Martins – O Bispo de Todos (ed. Âncora), dizia: “Os suicídios têm aumentado extraordinariamente em Portugal. Na maior parte dos casos, isso assenta na situação económica. A desesperança e a perda de alegria causada por essa situação económica é a grande responsável por esses actos tresloucados.”
“Há fome em Setúbal”, denunciou ele, várias vezes. No final de 1985, havia em Setúbal mais de 100 mil pessoas sem meios de subsistência mínimos, nota Alcídio Torres (D. Manuel Martins – A Esperança de um Povo, ed. Âncora). Mas, no poder político, negava-se o grito do bispo, pelo menos no primeiro momento: Mário Soares, o primeiro-ministro da época, Maria Barroso, o então governador civil Mata Cáceres, Alfredo Barroso, que desempenhava funções de secretário de Estado ou Cavaco Silva, que sucedeu a Soares como primeiro-ministro – todos eles, de uma forma ou de outra, tentaram contrariar as afirmações do bispo. 
Todos reconheceriam, mais tarde, que a razão estava do lado de D. Manuel. “Era evidente que Mário Soares e Cavaco Silva não gostavam das minhas intervenções. Eu falava do que sabia, da fome que o povo passava”, recordaria o próprio, mais tarde. Mas a sua acção nesse tempo não ficou pela denúncia: o bispo criou um Fundo de Solidariedade. Paróquias, instituições, pessoas anónimas, mesmo entidades internacionais contribuíram para esse fundo, que tentava minorar o sofrimento de tantos. “É o evangelho que continua  escrever-se”, respondia o bispo à onde de generosidade.
As respostas do poder político, depois de um primeiro momento de negação, começaram a chegar em Abril de 1984, quatro meses depois da criação do Fundo de Solidariedade, com um Plano de Emergência para o distrito de Setúbal. “Evidentemente que todas as tomadas de posição de tipo humanista merecem a minha melhor atenção”, admitia Mário Soares. Cavaco Silva entregar-lhe-ia a Ordem de Cristo em 2007, a Assembleia da República distinguiu-o, em 2008, com o prémio dos Direitos Humanos.
As denúncias feitas por D. Manuel valeram-lhe o epíteto de “bispo vermelho”, expressão fácil e pobre para designar uma opção muito mais funda: a de alguém que, em nome da fé que professava, se queria identificar com os mais pobres, os mais débeis, os mais necessitados. “Chamavam-me ‘bispo vermelho’ porque ocupava espaços de onde a Igreja nunca devia ter saído”, dizia D. Manuel, numa entrevista a Manuel Vilas Boas, na TSF, há ano e meio.

Inspirações

Além do evangelho, a sua inspiração primordial, Manuel Martins ia buscar longe as referências, a D. Hélder Câmara, também designado por “bispo vermelho”, no Brasil dos anos da ditadura e da miséria das décadas de 1960 e 1970 – e que, em 1986, acolheu em Setúbal, durante a sua vinda a Portugal.
A outra referência nas ideias era o antigo bispo do Porto. D. António Ferreira Gomes, com quem tinha uma relação de “grande fidelidade”, recorda agora D. Januário Torgal Ferreira, ex-bispo das Forças Armadas, de quem D. Manuel Martins também se sentia muito próximo.
Com Ferreira Gomes, o bispo que Salazar forçara ao exílio, Manuel Martins aprendera também essa capacidade de não ter medo de afrontar poderes ou de guardar conveniências – mesmo se, depois, o bispo de Setúbal era muito mais próximo, bem humorado e afável que o antigo bispo do Porto.
Um conjunto de documentos do antigo bispo do Porto, que Manuel Martins tinha lido há alguns anos, eram suficientes para julgar uma época, dizia. “Como é possível sobreviver um regime em trilhos de tamanha iniquidade?”, perguntava, no livro-entrevista publicado em 2003 pelo jornalista Manuel Dias (Conversas Com D. Manuel Martins, um Bispo Incómodo, EditorAusência)
Foi também pela memória e gratidão em relação a D. António que Manuel Martins presidiu, durante vários anos, e já depois de sair da diocese de Setúbal, a Fundação Spes. Esta instituição tinha sido criada pelo antigo bispo do Porto, por testamento, e tem vindo a publicar vários livros de documentos legados por Ferreira Gomes.
“Brincalhão, um verdadeiro homem do povo”, é como Januário Ferreira define o primeiro bispo de Setúbal. Mas nem só com os políticos Manuel Martins viveu tensões e conflitos. Vários responsáveis da Igreja à qual ele se dedicou também não lhe fizeram a vida fácil. “Enganaram-me bem com a cruz que me deram”, costumava ele desabafar, meio a brincar meio a sério, a alguns amigos.


Outubro de 2016: D. Manuel Martins com o então bispo do Porto, António Francisco dos Santos, que morreu há duas semanas (foto Artur Machado/Global Imagens, reproduzida daqui)

Cale-se, diz-lhe o Vaticano

Um dos casos foi quando se empenhou na defesa dos direitos dos timorenses. Enquanto presidente da secção portuguesa da Pax Christi, movimento católico pela paz, ele “levantou muitas vezes a questão de Timor em instâncias do Vaticano e na Conferência Episcopal”, recorda Alfreda Fonseca, que trabalhava no grupo A Paz É Possível em Timor-Leste.
Não tinha muita sorte, o bispo: no Vaticano, a questão era quase desconhecida, tal como sucedia em todo o mundo – Portugal e Timor excluídos. O massacre de Santa Cruz, quando foram mortos cerca de 300 timorenses, tivera direito a apenas algumas linhas em breves notícias de jornais em Itália. Ao Vaticano, só chegava a voz da diplomacia indonésia.
O bispo de Setúbal era um dos poucos que tentava romper esse cerco. Um dia, promoveu um abaixo-assinado de bispos católicos contra a ocupação indonésia. Isso valeu-lhe ser chamado pelo núncio (embaixador do Vaticano) em Lisboa, Edoardo Rovida, com ordens para se calar sobre o assunto. Uma situação que dava razão ao seu inspirador António Ferreira Gomes que, no livro de memórias Cartas ao Papa (ed. Figueirinhas), criticava a diplomacia do Vaticano considerando que ela não contribui para “o bem da Igreja”.
D. Manuel lamentava continuamente essas pressões a que era sujeito, recorda ainda Alfreda Fonseca. Mas não se importava com isso. Continuava sempre a defender o que achava que tinha de defender. “A semente é feita de silêncio e é no silêncio que ela gosta de desenvolver-se e actuar”, escrevia ele no texto de apresentação do livro Reconciliação – Caminho para a Paz (ed. Fundação Spes), que recolhe homilias do antigo bispo do Porto acerca da paz. Os timorenses agradeceram-lhe, com a Ordem de Timor-Leste, atribuída em 2015. “Guardaremos sempre o seu testemunho de anunciador do Evangelho da justiça, da paz e do amor. Um testemunho de coragem, firmeza e serenidade empenhada, enraizada na certeza de que o projeto de Deus para o Homem passa pela construção da Paz com Justiça e Fraternidade”, agradeceu hoje a Pax Christi Portugal, em comunicado.
Nascido em Leça do Balio (Matosinhos), em 20 de Janeiro de 1927, Manuel da Silva Martins foi ordenado padre em 1951, após o que foi estudar Direito Canónico em Roma. Pároco da Cedofeita, no centro do Porto, entre 1960 e 1969, a sua acção começou a ser notada pela inovação das propostas que fazia, num tempo em que se começavam a sentir os ventos de renovação que o Concílio Vaticano II propunha para a Igreja.
Em Outubro do ano passado, apesar de já fragilizado pela idade e alguns problemas de saúde, Manuel Martins ainda encontrou forças para participar numa iniciativa da Campo Aberto, uma associação ambientalista do Porto. O debate era sobre a encíclica do Papa acerca da ecologia, Laudato Si’. Parecia ouvir-se a voz do bispo de Setúbal nos idos de 1980, criticando o poder “sem coração” que, desta vez, ameaça não só as pessoas, mas o planeta no seu conjunto.

(Este texto foi publicado na edição de 25 de Setembro do Expresso Diário; uma crónica de Joaquim Franco sobre D. Manuel Martins pode ser lida na página da SICa entrevista de Manuel Vilas Boas na TSF, ao antigo bispo de Setúbal, em 2016, em que ele dizia que a Igreja deve ser de esquerda e não de direita, pode ser escutada aqui)


Manuel da Silva Martins (foto Pedro Granadeiro/Global Imagens, reproduzida daqui)

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