Manuel da Silva Martins (1927-2017) - In memoriam
D. Manuel Martins (foto de Luís Vasconcelos/Global Imagens, reproduzida daqui)
Próximo de todos, brincalhão, o
antigo bispo de Setúbal morreu ontem em casa de família. Manuel Martins
insistia na ideia de que o apoio a quem mais precisa é uma consequência da fé
cristã. O que lhe valeu críticas do poder político e de responsáveis... da
Igreja.
Foi em meados da década de 1980.
Como dezenas de outras empresas da região, uma metalomecânica de Setúbal, a
fábrica dos Clérigos, estava para fechar. As máquinas iam ser retiradas para
pagar aos credores e os trabalhadores ficariam de vez sem emprego. O bispo de
Setúbal, D. Manuel Martins, soube da situação e pediu a Eugénio Fonseca,
presidente da Cáritas diocesana, para o acompanhar numa visita às instalações.
Naquele caso concreto, que o
próprio recordou numa entrevista ao Expresso em 2014, os trabalhadores tinham tomado conta da fábrica e a
empresa até estava a recuperar clientes e encomendas. Mas os credores queriam
dinheiro rápido. D. Manuel esteve reunido com vários deles, pedindo que
adiassem a cobrança de dívidas e a falência. Sem resultado. Quando saiu, D.
Manuel e Eugénio Fonseca ainda ouviram os gritos de mulheres agarradas às
máquinas, que não queriam deixar ir embora.
O bispo só disse “o capital não
tem coração”, antes de se remeter ao silêncio no resto da viagem de regresso.
Quando reentrou em casa, as lágrimas vieram finalmente aos olhos e ele só
conseguiu dizer a Eugénio Fonseca: “Trata de ir ter com cada família daquela
fábrica, de modo a que ninguém passe fome. Ninguém.”
O agora presidente da Cáritas
Portuguesa era uma das pessoas que estavam com o seu antigo bispo quando este
morreu, ontem, domingo, às 14h05, na Maia, na casa de familiares onde se
encontrava. Um padre tinha sido chamado para lhe administrar o sacramento da
unção dos doentes. Depois disso, Eugénio Fonseca abraçou o bispo e ele morreu
em paz.
“Há fome em Setúbal”
Manuel da Silva Martins tinha 90
anos e uma vida preenchida, mesmo se foi a sua acção enquanto primeiro bispo da
diocese de Setúbal, entre 1975 e 1998, que o tornou mais conhecido. Nomeado num
tempo de ebulição política, teve de pensar bem na decisão. “A minha missão é
anunciar o evangelho da libertação, da justiça e da paz”, disse à chegada. Começou
por optar por viver numa casa modesta, em vez da casa episcopal. Logo depois,
apanhou anos de uma profunda crise económica e social. Essa situação, que levou
a uma realidade de desemprego, fome e aumento de suicídio, fez com que o bispo
sentisse que não podia ficar calado, perante os casos de pessoas que lhe batiam
à porta, desesperadas, a pedir pão, comida ou dinheiro para pagar bens
essenciais.
Em 1984, numa entrevista a O Comércio do Porto, citada no livro D. Manuel Martins – O Bispo de Todos
(ed. Âncora), dizia: “Os suicídios têm aumentado extraordinariamente em
Portugal. Na maior parte dos casos, isso assenta na situação económica. A
desesperança e a perda de alegria causada por essa situação económica é a
grande responsável por esses actos tresloucados.”
“Há fome em Setúbal”, denunciou
ele, várias vezes. No final de 1985, havia em Setúbal mais de 100 mil pessoas
sem meios de subsistência mínimos, nota Alcídio Torres (D. Manuel Martins – A Esperança de um Povo, ed. Âncora). Mas, no
poder político, negava-se o grito do bispo, pelo menos no primeiro momento:
Mário Soares, o primeiro-ministro da época, Maria Barroso, o então governador
civil Mata Cáceres, Alfredo Barroso, que desempenhava funções de secretário de
Estado ou Cavaco Silva, que sucedeu a Soares como primeiro-ministro – todos
eles, de uma forma ou de outra, tentaram contrariar as afirmações do
bispo.
Todos reconheceriam, mais tarde,
que a razão estava do lado de D. Manuel. “Era evidente que Mário Soares e
Cavaco Silva não gostavam das minhas intervenções. Eu falava do que sabia, da
fome que o povo passava”, recordaria o próprio, mais tarde. Mas a sua acção
nesse tempo não ficou pela denúncia: o bispo criou um Fundo de Solidariedade.
Paróquias, instituições, pessoas anónimas, mesmo entidades internacionais
contribuíram para esse fundo, que tentava minorar o sofrimento de tantos. “É o
evangelho que continua escrever-se”,
respondia o bispo à onde de generosidade.
As respostas do poder político,
depois de um primeiro momento de negação, começaram a chegar em Abril de 1984,
quatro meses depois da criação do Fundo de Solidariedade, com um Plano de
Emergência para o distrito de Setúbal. “Evidentemente que todas as tomadas de
posição de tipo humanista merecem a minha melhor atenção”, admitia Mário
Soares. Cavaco Silva entregar-lhe-ia a Ordem de Cristo em 2007, a Assembleia da
República distinguiu-o, em 2008, com o prémio dos Direitos Humanos.
As denúncias feitas por D. Manuel
valeram-lhe o epíteto de “bispo vermelho”, expressão fácil e pobre para
designar uma opção muito mais funda: a de alguém que, em nome da fé que
professava, se queria identificar com os mais pobres, os mais débeis, os mais
necessitados. “Chamavam-me ‘bispo vermelho’ porque ocupava espaços de onde a
Igreja nunca devia ter saído”, dizia D. Manuel, numa entrevista a Manuel Vilas
Boas, na TSF, há ano e meio.
Inspirações
Além do evangelho, a sua
inspiração primordial, Manuel Martins ia buscar longe as referências, a D.
Hélder Câmara, também designado por “bispo vermelho”, no Brasil dos anos da
ditadura e da miséria das décadas de 1960 e 1970 – e que, em 1986, acolheu em Setúbal,
durante a sua vinda a Portugal.
A outra referência nas ideias era
o antigo bispo do Porto. D. António Ferreira Gomes, com quem tinha uma relação
de “grande fidelidade”, recorda agora D. Januário Torgal Ferreira, ex-bispo das
Forças Armadas, de quem D. Manuel Martins também se sentia muito próximo.
Com Ferreira Gomes, o bispo que
Salazar forçara ao exílio, Manuel Martins aprendera também essa capacidade de
não ter medo de afrontar poderes ou de guardar conveniências – mesmo se,
depois, o bispo de Setúbal era muito mais próximo, bem humorado e afável que o
antigo bispo do Porto.
Um conjunto de documentos do
antigo bispo do Porto, que Manuel Martins tinha lido há alguns anos, eram
suficientes para julgar uma época, dizia. “Como é possível sobreviver um regime
em trilhos de tamanha iniquidade?”, perguntava, no livro-entrevista publicado
em 2003 pelo jornalista Manuel Dias (Conversas
Com D. Manuel Martins, um Bispo Incómodo, EditorAusência)
Foi também pela memória e gratidão
em relação a D. António que Manuel Martins presidiu, durante vários anos, e já
depois de sair da diocese de Setúbal, a Fundação Spes. Esta instituição tinha
sido criada pelo antigo bispo do Porto, por testamento, e tem vindo a publicar
vários livros de documentos legados por Ferreira Gomes.
“Brincalhão, um verdadeiro homem
do povo”, é como Januário Ferreira define o primeiro bispo de Setúbal. Mas nem
só com os políticos Manuel Martins viveu tensões e conflitos. Vários
responsáveis da Igreja à qual ele se dedicou também não lhe fizeram a vida
fácil. “Enganaram-me bem com a cruz que me deram”, costumava ele desabafar,
meio a brincar meio a sério, a alguns amigos.
Outubro de 2016: D. Manuel Martins com o então bispo do Porto, António Francisco dos Santos, que morreu há duas semanas (foto Artur Machado/Global Imagens, reproduzida daqui)
Cale-se, diz-lhe o Vaticano
Um dos casos foi quando se
empenhou na defesa dos direitos dos timorenses. Enquanto presidente da secção
portuguesa da Pax Christi, movimento católico pela paz, ele “levantou muitas
vezes a questão de Timor em instâncias do Vaticano e na Conferência Episcopal”,
recorda Alfreda Fonseca, que trabalhava no grupo A Paz É Possível em
Timor-Leste.
Não tinha muita sorte, o bispo: no
Vaticano, a questão era quase desconhecida, tal como sucedia em todo o mundo –
Portugal e Timor excluídos. O massacre de Santa Cruz, quando foram mortos cerca
de 300 timorenses, tivera direito a apenas algumas linhas em breves notícias de
jornais em Itália. Ao Vaticano, só chegava a voz da diplomacia indonésia.
O bispo de Setúbal era um dos
poucos que tentava romper esse cerco. Um dia, promoveu um abaixo-assinado de
bispos católicos contra a ocupação indonésia. Isso valeu-lhe ser chamado pelo
núncio (embaixador do Vaticano) em Lisboa, Edoardo Rovida, com ordens para se
calar sobre o assunto. Uma situação que dava razão ao seu inspirador António
Ferreira Gomes que, no livro de memórias Cartas
ao Papa (ed. Figueirinhas), criticava a diplomacia do Vaticano considerando
que ela não contribui para “o bem da Igreja”.
D. Manuel lamentava continuamente
essas pressões a que era sujeito, recorda ainda Alfreda Fonseca. Mas não se
importava com isso. Continuava sempre a defender o que achava que tinha de
defender. “A semente é feita de silêncio e é no silêncio que ela gosta de
desenvolver-se e actuar”, escrevia ele no texto de apresentação do livro Reconciliação – Caminho para a Paz (ed.
Fundação Spes), que recolhe homilias do antigo bispo do Porto acerca da paz. Os
timorenses agradeceram-lhe, com a Ordem de Timor-Leste, atribuída em 2015. “Guardaremos
sempre o seu testemunho de anunciador do Evangelho da justiça, da paz e do
amor. Um testemunho de coragem, firmeza e serenidade empenhada, enraizada na
certeza de que o projeto de Deus para o Homem passa pela construção da Paz com
Justiça e Fraternidade”, agradeceu hoje a Pax Christi Portugal, em comunicado.
Nascido em Leça do Balio
(Matosinhos), em 20 de Janeiro de 1927, Manuel da Silva Martins foi ordenado
padre em 1951, após o que foi estudar Direito Canónico em Roma. Pároco da
Cedofeita, no centro do Porto, entre 1960 e 1969, a sua acção começou a ser
notada pela inovação das propostas que fazia, num tempo em que se começavam a
sentir os ventos de renovação que o Concílio Vaticano II propunha para a
Igreja.
Em Outubro do ano passado, apesar
de já fragilizado pela idade e alguns problemas de saúde, Manuel Martins ainda
encontrou forças para participar numa iniciativa da Campo Aberto, uma
associação ambientalista do Porto. O debate era sobre a encíclica do Papa
acerca da ecologia, Laudato Si’. Parecia ouvir-se a voz do bispo de Setúbal nos
idos de 1980, criticando o poder “sem coração” que, desta vez, ameaça não só as
pessoas, mas o planeta no seu conjunto.
(Este texto foi publicado na edição de 25 de Setembro do Expresso Diário; uma crónica de Joaquim Franco
sobre D. Manuel Martins pode ser lida na página da SIC; a entrevista de Manuel Vilas Boas na TSF, ao antigo bispo de Setúbal, em 2016, em que ele dizia que a Igreja deve ser de
esquerda e não de direita, pode ser escutada aqui)
Manuel da Silva Martins (foto Pedro Granadeiro/Global Imagens, reproduzida daqui)
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