sábado, 16 de setembro de 2017

No tenim por (Não temos medo) - Notas depois do atentado de Barcelona (e de Londres)


Uma agente da polícia a socorrer uma das vítimas do atentado de ontem.
(foto Stefan Rousseau/AP, reproduzida daqui)

O presidente da Conferência Episcopal de Inglaterra e Gales, cardeal Vincent Nichols, manifestou a sua consternação pelo atentado desta sexta-feira, 15 de Setembro, na estação de metro de Parsons Green, na capital inglesa. O arcebispo de Westminster disse que a reacção dos cidadãos na ajuda aos feridos mostrou “o bom que há na humanidade, perante alguns poucos que querem dividir a nossa sociedade”. E acrescentou que “todos devemos estar alerta, mantendo a calma”.
Sabemos que a resposta das lideranças políticas tem oscilado entre o aumento da segurança e as operações militares, entre a retórica oca de que não serão dadas tréguas ao terrorismo e a venda de armas e o apoio político a governantes que mantêm uma forte relação com grupos terroristas. E que essas respostas têm sido inconsequentes – e, pelo contrário, têm continuado os atentados, tem aumentado a sensação de insegurança e tem-se degradado a situação de vários países atingidos por guerras e conflitos internos (Síria, Paquistão, Iraque...)
Qual deve ser, então, a resposta dos cidadãos? O que se passou em Barcelona, em Agosto, mereceu também uma resposta de afirmação unívoca de socorro às vítimas (entre as quais duas portuguesas, avó e neta) e de afirmação de que a vida tem de continuar, sem medo.
Essa é a perspectiva deste texto, que a seguir se publica, escrito por monsenhor Manuel Nin i Güell, exarca dos católicos gregos de rito bizantino, monge de Montserrat. 
A tradução é de Lucy Wainewright.

No tenim por – Não temos medo

Quando éramos crianças e íamos em família a Barcelona para tratar de diversos assuntos, quase sempre viajávamos de comboio e aquela visita à capital  acabava sempre, antes de apanhar o comboio de volta, com uma meia hora de passeio ao longo das Ramblas, onde víamos uma infinidade de tendas com animais mais ou menos exóticos e com plantas, especialmente catos de grande beleza. Era uma vitória conseguir arrancar da generosidade de pais ou avós a decisão de comprar algum animal – um pássaro ou um peixe – ou alguns catos, quanto mais cheio de espinhos melhor, para levar para casa.
Nunca imaginei que aquele lugar de descontração, de tranquilidade, de vida famíliar, pudesse, alguma vez, tornar-se lugar de terror e morte. Qualquer atentado, qualquer forma de terrorismo gera em nós – não digo suscita, mas gera, porque é algo que surge, que vem de dentro – gera, digo, repugnância, tristeza e medo. E estas duas últimas reações podem constituir a verdadeira vitória do terrorismo e dos terroristas: a tristeza e, acima de tudo, o medo. O medo de que possam voltar de novo, que nos possa acontecer um dia a nós, em qualquer lugar e nos lugares mais variados, até mesmo nos locais de lazer e tranquilidade.

A vitória do terrorismo consiste em nos fazer mudar não só os hábitos, mas também aquilo que somos. Ver as ruas de Roma, Paris, Barcelona, Londres e de outras cidades europeias com tanta polícia (e por vezes, mesmo com o exército) não me deixa tranquilo – embora reconheça e agradeça os esforços que fazem essas pessoas que arriscaram as suas próprias vidas.
Conheço as Ramblas, conheço o Passeio dos Ingleses em Nice, lugares onde homens e mulheres, idosos e crianças vão passear, conversar tranquilamente, olhar, caminhar  em silêncio, sós ou acompanhados. Os seres humanos são fundamentalmente “peripatéticos”, o que quer dizer, “passeadores”; damos passeios: sozinhos para pensar e talvez para decidir; com amigos, com as pessoas que amamos, para confrontar, para avaliar..., talvez até para discutir.
É isto que o terrorismo atinge, como se quisesse não apenas matar o homem, mas sobretudo o seu ato de pensar, de decidir, de dialogar livremente e de forma responsável, matar para evitar que o homem “peripatético” pense, decida e o faça livremente, que confronte, que partilhe, que dialogue, que ame. O oposto de passear é ficar quieto, imóvel, fechado em si mesmo: o oposto de passear, de refletir, é não ter um pensamento próprio, não decidir, deixar que outro, do lado errado, o faça por ti. O oposto da partilha, do diálogo, do confronto é, precisamente, ficar encerrado no isolamento, no terror. Um terror que se infiltra no coração do homem e, quando estiver bem construído – não digo amadurecido, porque nunca é maduro –, explode, sai para fora com a fúria e a frieza de um vulcão e colhe vidas humanas que pensam, que  amam – uma colheita que não é uma colheita de abundância mas uma colheita de dispersão e de morte.
As imagens das Ramblas varridas em ziguezague para ter a certeza que ninguém escapa, e que ninguém, talvez fossem muitos, pudesse erguer uma barreira humana, uma parede, para se proteger a si e aos outros. Estas imagens, como as de outras cidades europeias antes de Barcelona, foram um golpe para mim não só porque é uma cidade que amo muito, mas acima de tudo porque quiseram dar um golpe no nosso modo de falar, pensar, refletir, partilhar.
E estou convencido de que é uma maneira “nossa” porque a aprendemos d’Aquele que caminhava com seus discípulos subindo a Jerusalém, daquele, o Senhor Jesus Cristo, que andava pelo templo, que se sentava para ensinar, que de noite ia rezar em locais afastados e recolhidos, mas nunca isolado, sempre em comunhão com o seu e nosso Pai. E o seu evangelho da comunhão, de vida e nunca de morte e terror, é o que tem deixado a sua marca indelével nessas cidades Europeias atingidas agora pelo terror e não pelo amor, pelo desespero e não pela comunhão, pela morte e não pela vida. Cidades que acreditamos foram pioneiras do diálogo e do acolhimento.
Vejo e revejo os rostos das vítimas, que têm aparecido nos meios de comunicação. Também os milhares de homens e mulheres que na praça da Catalunha, no dia seguinte ao ataque, gritaram: “não temos  medo” como para dar uma resposta clara, cheia de coragem. Mas resposta a quê? A quem? A alguém, a uma realidade que não sabe nem quer dialogar, nem ouvir, mas apenas cortar vidas humanas inocentes. Teremos de dizer que afinal tem razão quem afirma que estamos diante de um “mal incurável, com metástases que nenhuma terapia é capaz de erradicar”?
Nós, os cristãos, partilhamos aquele “não temos medo” que nasce de nossa fé cristã, da nossa fé naquele que, morrendo na cruz, venceu o pecado e a morte. Nestes dias, as Ramblas, cheias de flores, de luzes, de cartões  e de mensagens, tornam-se local de peregrinação, ícone de sofrimento, mas também de esperança, lugar de oração e de memória na fé. Não temos medo.

(Um cântico de Taizé, inicialmente composto em catalão, diz: “O Senhor é a minha força, o Senhor (é) o meu canto. Ele me deu a salvação, nele eu confio e não tenho medo”.)


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