António Francisco dos Santos (1948-2017)
– In memoriam
D. António Francisco em Fátima, em 2015 (foto António Marujo)
Era um homem, um padre e um bispo
com uma visão rara, que colocava as pessoas, cada pessoa, no centro da acção da
Igreja – e da sua própria. D. António Francisco dos Santos, padre da diocese de
Lamego, onde nasceu, era bispo do Porto desde 2014. Tinha sido bispo de Aveiro
entre 2006 e 2014 e bispo auxiliar de Braga de 2004 a 2006. Morreu esta manhã,
na casa episcopal do Porto. Vai fazer-nos muita falta. Pelo
seu carácter, pela sua proximidade com as pessoas, pela sua visão pastoral.
D. António Francisco completou 69
anos no passado dia 29 de Agosto. Acabara de estar em Fátima, sábado passado,
presidindo à peregrinação diocesana ao santuário. Na sua homilia, disse que os
cristãos devem ser capazes de “construir uma Igreja bela, como uma casa de
família” e que seja capaz de atender sobretudo aos mais frágeis: “Não podemos
viver distantes dos dramas humanos nem ficar insensíveis aos seus clamores e
indiferentes aos seus sofrimentos”, declarou, convidando os diocesanos a
“entrarem na vida concreta dos que sofrem” (a homilia pode ser lida aqui na íntegra).
A sua visão e acção pastoral
tinham uma perspectiva muito coincidente com a do Papa Francisco: centrada na
misericórdia, na atenção a cada pessoa, na proximidade quotidiana com todos –
clero, fiéis, não-crentes, na dedicação aos mais pobres e a quem mais sofre. Isso
mesmo é recordado por várias pessoas, de diferentes âmbitos, no perfil que se
pode ler no Público.
Nessa perspectiva, D. António
Francisco apoiou com vigor intenso as muitas iniciativas pastorais de padres e
leigos que, na diocese de Aveiro, faziam um caminho de busca de novas soluções
para a integração eclesial dos divorciados que tinham voltado a casar, também
na linha (mas já antes) do que o Papa Francisco tem proposto.
A propósito dessa realidade, e
numa entrevista que lhe fiz, em 2015, para a revista espanhola Vida Nueva,
dizia D. António: “Diante da Igreja e na Igreja todas as pessoas têm nome,
rosto, alma e coração. Muitas vezes, um coração partido, a sofrer, dorido, por
muitas desventuras! Mas a Igreja tem de saber acolher e fazer um caminho em
comum nesse sentido.”
Este modo de actuar não
perspectivava, no entanto, apenas uma atitude passiva ou a imposição de
decisões, mesmo que abertas. Ele entendia que os interessados deveriam também
participar no processo de reflexão: “Temos também de saber reflectir com eles,
não apenas acolher. Importa saber ouvir e decidir com os casais divorciados
recasados os caminhos de cada um no empenhamento concreto na vida da Igreja.
Mesmo com aqueles que estejam em situações de ruptura ou de não aceitação das
orientações da Igreja, sabemos que nunca podem ser marginalizados e que podem
sempre encontrar a Igreja aberta.”
Quando tomou posse do lugar de
bispo do Porto, apontou ainda o combate à pobreza como horizonte da acção da
Igreja. Na mesma entrevista, justificava: “Temos áreas muito marcadas pela
fragilidade, pela pobreza, pela injustiça, pelo desemprego. Somos muitos e, por
isso, maior é também o número dos que sofrem. Mais atento tem de estar o bispo
e mais presente tem de estar a Igreja, junto de todos, com iniciativas próprias
que eu desejo que sejam criativas e ousadas. E não podemos esperar, como dizia
o Papa, pois quando alguém sofre não pode esperar para o dia seguinte.” E
acrescentava, no que era uma crítica severa a muitas das coisas que se fazem,
não apenas na Igreja: “Temos de dar lugar aos pobres e não apenas esmola.” No sábado, em Fátima, a participação de 50 pessoas sem-abrigo na peregrinação diocesana foi uma forma de concretizar em gesto as ideias que D. António Francisco defendia (ver aqui a sua última entrevista, dada em Fátima à agência Ecclesia).
D. António sofreu muito com a
saída de Aveiro e a sua nomeação para o Porto. Em Aveiro, houve quem tentasse
evitar a saída, como na altura se noticiou no RELIGIONLINE. Na entrevista já citada, esse
processo levava-o a admitir que “as Igrejas locais deviam ser chamadas a
intervir na nomeação dos seus bispos”. Num caso como o que acabara de viver,
acrescentava que, na “mudança de diocese apenas é ouvida a diocese para onde
vai o bispo e não aquela de onde sai”.
No Porto, esperava-o uma grave
crise financeira da diocese, que ele tentou enfrentar através de uma
reorganização administrativa, para reduzir despesas e criar receitas, sempre
com a preocupação da coresponsabilidade e de apelar à participação dos leigos
nessas tarefas. O desgaste com essas questões, bem como com casos de conflito
que ele tentou gerir com a paciência e bondade que lhe eram características (como
em Canelas, Gaia), podem ter contribuído para a sua morte prematura. Porque o
sorriso transparente que D. António tinha nunca o deixava, mesmo quando falava
dos imensos problemas que tinha para resolver. Mas, sobretudo, um desfecho como
este – que abre agora uma vaga muito difícil de preencher – deveria levar a
Igreja a reflectir sobre processos de decisão e escolha que são feitos contra a
vontade dos envolvidos.
Onde estava, então, este homem,
que pouco aparecia nos grandes meios de comunicação para além das notícias de
Natal e Páscoa? D. António Francisco primava pela discrição, por preferir os
gestos pessoais a grandes acontecimentos. Além disso, era uma pessoa que
privilegiava o diálogo franco em vez de qualquer encenação mais ou menos
pública. Por isso, é unânime o sentimento de perda de tanta gente, mesmo de
fora da Igreja.
Sejam-me permitidas ainda três curtas
evocações pessoais, gestos que dizem muito sobre o modo de estar de António
Francisco dos Santos.
Em 2006, recebi pela segunda vez um
prémio europeu de jornalismo. D. António, então ainda bispo auxiliar de Braga,
não me conhecia pessoalmente. Mas
teve a amabilidade de me enviar um cartão a felicitar e a dizer-me que
acompanhava o meu trabalho.
Quando o meu pai morreu, há quase
cinco anos, enviei uma mensagem escrita a D. António Francisco, então ainda em
Aveiro, sabendo que ele tinha estado com o meu pai várias vezes durante a sua
doença. Dois segundos depois de a mensagem seguir, tocava o telefone: “Onde
estão vocês?” Meia hora mais tarde, D. António estava junto de nós, rezando por
alguém que ele conhecera apenas poucos anos antes.
Há meses, ele manifestou-me o
desejo de conversar comigo sobre o plano que a Conferência Episcopal Portuguesa
está a preparar para as comunicações sociais, pela consideração que ele tinha
para com o meu trabalho. Falámos uma primeira vez, dei-lhe sobretudo ideias de
coisas que se poderiam fazer (mais do que questões de organização) e ficou
prometida uma segunda conversa, em que ele queria sobretudo falar de planos de
revitalização dos meios de comunicação da diocese. Essa conversa ficou adiada.
Falaremos disso mais tarde, D.
António! Porque, para já, o senhor vai fazer-nos muita falta.
(na SIC, Joaquim Franco faz uma
bela evocação de D. António, que pode ser lida aqui.)
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