In Memoriam. D. António Marcelino (1930-2013)
É difícil distinguir, num momento destes, entre as memórias pessoais e as profissionais. Na última conversa que tivemos, aproveitámos para pôr a escrita em dia em ambos os âmbitos. Mas o tom principal foi o seu grande entusiasmo com o Papa Francisco: o Concílio Vaticano II está a ser retomado em vários aspectos em que tinha ficado parado ou bloqueado – tal era a sua convicção profunda.
O homem de
quem falo, entusiasmado sempre, hiperactivo por feitio, desmesuradamente
preocupado com tudo o que o rodeava, é D. António Marcelino, bispo emérito de
Aveiro, depois de ter sido coadjutor (1983-1988) e titular (1988-2006) da
diocese. D. António morreu esta quarta-feira no Hospital Infante Dom Pedro,
naquela cidade, poucos dias depois de completar 83 anos. O seu funeral será
esta sexta-feira na Sé de Aveiro, às 15h.
Há meses,
impressionara-me uma alusão, na sua crónica semanal no Correio do Vouga, ao seu
retiro na “cela de monge”. Foi apenas, confidenciou-me há um mês, quando
falámos, a maneira que encontrou de chamar a atenção para a forma como, na
Igreja como na sociedade, muitas vezes se atiram as pessoas para um canto, só
porque deixam se servir para determinadas tarefas.
Não era o
seu caso, mesmo se ele sentia que podia dar mais, muito mais, ainda. Assim
houvesse quem o convidasse, que ele estava disponível para animar debates,
fazer celebrações ou presidir até às liturgias dos dias de finados. Mas, por
mais que o convidassem, nunca estava satisfeito, porque essa era a sua têmpera.
Tendo
apanhado o Concílio enquanto jovem padre, António Marcelino contava, na sua
última crónica no Correio do Vouga
(que pode ser lida no sítio da diocese de Aveiro na net, de onde também se reproduz a foto), que emoções
lhe sobrevieram com o acontecimento e os documentos conciliares: “Senti ao vivo
a urgência de uma Igreja outra e do Povo de Deus como o grande obreiro do
Reino; descobri o significado do Colégio Apostólico e da hierarquia como
serviço; acordei mais para o dever de reconhecer e promover os leigos cristãos
na sua dignidade e missão própria, na Igreja e no mundo; tomei consciência de
que a santidade é vocação universal e dever de todos; vi com clareza a condição
normal da Igreja peregrina,
evangelizadora e missionária por sua natureza e sempre em caminho de
conversão:; agradeci a visão nova da liturgia, a descoberta da Palavra de Deus
para os cristãos e as comunidades; vivi a novidade das novas relações da Igreja
– Mundo; rejubilei com a abertura ecuménica e com a declaração sobre a
Liberdade Religiosa; agradeci a Deus os Papas João XXIII pelo seu gesto
corajoso, e Paulo VI pela sua lucidez e coragem…”
Não é de
estranhar que, nas suas crónicas do Correio
do Vouga o Concílio Vaticano II, a urgência de renovação na Igreja e a
preocupação com os mais pobres e desprotegidos da sociedade fossem marcas de
água constante. Vários textos sobre o Concílio foram, depois, reunidos no livro
Vaticano II ao Alcance de Todos (ed. Paulinas).
A sua última
crónica, lida por muitas pessoas como um testamento espiritual, é uma afirmação
de como ele sempre sentira “a necessidade de ler melhor a realidade e a [sua
própria] vida”. Insatisfeito permanente, exigente consigo e com os outros, não queria
uma Igreja acomodada em adquiridos de teias de aranha. Por isso rasgou
horizontes no âmbito social, desafiando permanentemente a novos campos de acção
e à intervenção dos cristãos, como a Cáritas Portuguesa recordou em comunicado.
Também na
comunicação social D. António deixou marcas: a ele se deve a existência do
programa Setenta Vezes Sete, actualmente o mais antigo da televisão pública. O
então bispo “das comunicações sociais”, como era conhecido, considerava que a
Igreja deveria estar presente na praça pública.
Por ironia,
foram os media, e a televisão, a provocar-lhe uma grande mágoa, no início dos
anos 1990: D. António aceitou participar num debate-entrevista, para o qual
foram convidadas apenas mulheres. O tom das perguntas nem sempre foi o acertado
e as respostas também nem sempre saíram na melhor forma. A sua acção como bispo
ligado a esse campo ressentiu-se nos tempos imediatos. Mas nem por isso D.
António deixou de vincar as suas opiniões, mesmo quando se pôs a hipótese de a
Igreja ser proprietária de um canal de televisão e ele foi um dos principais
opositores à ideia. Acabou por perder mas, mais uma vez, não se deixou abater e
seguiu para outros caminhos e outros entusiasmos.
Nesses
debates mais difíceis, a sua personalidade forte nem sempre deixava lugar ao
trato fácil. Seja-me permitido evocar a memória pessoal (e a de outros amigos),
para dizer que também tivemos alguns despiques e pequenos (ou grandes)
desaguizados. Mas todos sabíamos que podíamos afirmar perante D. António
Marcelino a nossa opinião, mesmo que ela fosse a oposta da dele. No final, não
haveria rancor. É isso mesmo que ele conclui na crónica já referida: “Vivo
reconciliado com a vida e comigo próprio. Sem inimigos. E amigos? Agora, talvez
mais amigos do personagem bispo que fui, do que da pessoa do bispo que sou. De
ontem ou de hoje os verdadeiros amigos não fazem distinções. São amigos.”
Na última
conversa que tive com ele, dia 13 de Setembro, mostrava-se entusiasmadíssimo
com os sinais que o Papa Francisco tem dado. No seu escritório, no seminário de
Aveiro, tocavam cantos de Taizé e, depois, uma belíssima peça barroca que não
identifiquei – e que não perguntei o que era. Em volta, livros, livros e
livros, nas prateleiras, nas cadeiras, alguns no chão, sinal de quem procura
estar actualizado ao momento. Lá fora, pela janela, via-se a cidade, presença do
universo que sempre desafiou D. António.
E sobre o
Papa, dizia que se trata de encarreirar de novo o Concílio, de reformar a Cúria
Romana de modo a que ela seja sinal de evangelho e não o seu contrário, de dar
maior protagonismo aos leigos (outras das suas insistências), de trazer os mais
desfavorecidos para o centro da acção da Igreja. D. António intuía que o
caminho do Papa não seria fácil, porque já havia pessoas e grupos a reagir a
posições e atitudes do Papa mas também estava esperançado nas capacidades e na
estratégia do Papa: “Ele sabe dizer as coisas sem ferir ninguém e é inteligente
a lidar com as estruturas”, dizia-me.
De resto,
estava presente sempre o seu humor, a sua esperança, a sua boa disposição, o
seu interesse por tudo e por todos. Na crónica já citada, para falar da sua
dedicação a Aveiro, ele, que viera de Portalegre, escrevia: “Mia Couto põe na
boca de um ancião africano esta palavra clarividente: ‘O importante não é casa
onde moramos, mas onde em nós a casa mora”. A minha casa mora no meu coração.
Aí a guardo, desde o dia 1 de Fevereiro de 1981, um amor incondicional e
irreversível. Este amor chama-se Diocese de Aveiro. “
A sua casa, D.
António, mora agora em muitas e muitos que o não esquecem.
Dois outros
textos de D. António Marcelino podem ser lidos aqui, sobre o papel dos leigos na Igreja, e aqui, sobre o testemunho da fé no mundo contemporâneo.)
1 comentário:
Sabia que não deixarias de assinalar a dívida da Igreja a D. António Marcelino. Sem ter tido com ele uma relação tão próxima como tu, partilho a tua consideração por um homem aberto às inquietações dos seus contemporâneos e que me ajudou a entender a missão do bispo na Igreja
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