segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Laura Ferreira dos Santos (1959-2016): Católica das margens, em busca de uma ortodoxia maior


Laura Ferreira dos Santos, fotografada por José Caria/Visão 
(foto reproduzida daqui)

Em 2008, ela confessava imaginar o seu encontro com Deus como acontecendo num momento semelhante a um colorido pós-pôr do sol. “Tenho a sensação que só nessa altura, como se diz na Bíblia, todas as lágrimas do nosso rosto serão enxugadas e todas as dúvidas que temos e não conseguimos resolver racionalmente serão resolvidas. (...) A minha ideia do ‘outro lado’ é a de que simplesmente vamo-nos abraçar de imediato e dizer: ‘Finalmente!’” Laura Ferreira dos Santos, professora universitária e ensaísta, que se destacara nos últimos anos na defesa da morte assistida, morreu sexta-feira passada em Braga, após vários anos de luta contra um cancro. O funeral realizou-se sábado, para o Porto.
Autora de um Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença (ed. Angelus Novus, 2003 e 2008), em dois volumes, essa obra marcante no seu percurso foi ignorada nas notícias acerca da sua morte. Nela se definia como uma “católica nas margens”, mas em busca de “uma ortodoxia maior”.
Na entrevista que lhe fiz em 2008 e foi publicada no Público em 5 de Maio desse ano (entretanto também publicada no livro Diálogos com Deus em Fundo, ed. Gradiva), ela contava como escreveu este diário singular na literatura portuguesa, as suas distâncias e proximidades com o catolicismo e a fé.
Mais recentemente, numa entrevista ao suplemento Igreja Viva, do Diário do Minho, Laura Ferreira dos Santos actualizou as razões do seu envolvimento na causa da morte assistida, surgido precisamente por causa da experiência de sofrimento e de morte que enfrentou várias vezes entre os seus próximos e que levou mesmo a mudar o seu modo de entender a fé.
“Como acredito num Deus de amor, acredito também que Ele só pode querer o nosso melhor interesse. Infelizmente, em certas alturas, o nosso melhor interesse é morrermos, para assim escaparmos ao sofrimento atroz. Por isso, por vezes rezamos para que Deus ‘leve’ alguém o mais depressa possível”, dizia, na entrevista que pode ser lida aqui.
Nascida em Braga, a 27 de Março de 1959, Laura Ferreira dos Santos licenciou-se em 1982, na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa. No ano seguinte, passou a leccionar na Universidade do Minho. Trabalhou no Instituto de Educação da UM (Departamento de Teoria da Educação e Educação Artística e Física) e, em 1996, prestou provas de doutoramento em Educação, na mesma Universidade, com uma tese sobre Pensar o desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze.
Laura Ferreira dos Santos dedicou a sua investigação à Filosofia da Educação e bioética (neste último caso, especialmente às questões das escolhas de fim de vida). Entre as suas obras, incluem-se Educação e cultura em Nietzsche. Análise da primeira fase do seu pensamento, Pensar o desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze (ambos ed. da Universidade do Minho), Alteridades feridas. Algumas leituras feministas do cristianismo e da filosofia (ed. Angelus Novus), Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do século XXI e Testamento Vital – O que é? Como elaborá-lo? (ambos na Sextante). Integrou também, desde Janeiro de 2009, a Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte.

Como surgiu este Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença?
Já há muitos anos que escrevo. No segundo volume [do Diário…], de vez em quando há extractos de diários antigos. Escrevi sempre porque tinha vários problemas para resolver e porque a escrita foi sempre a melhor maneira de pensar sobre eles.
Há uma canção de Leonard Cohen, que diz mais ou menos: “Toca os sinos que ainda podes tocar,/ larga a tua oferta perfeita,/ em todas as coisas há uma fissura/ e é por aí que a luz entra.” Desde que a ouvi, tomei consciência de que andei sempre à procura dessa luz, não só em circunstâncias de sofrimento, mas também em outras mais favoráveis.
 
É uma escrita para curar feridas?
É uma escrita contra os afectos tristes, como diria Deleuze, e, portanto, também uma escrita que busca a alegria possível. Este segundo diário coincide com o meu primeiro cancro, que perpassa pelo texto, tal como a doença e a morte da minha mãe, porque foram cancros em simultâneo. A ideia não é fixar-me aí, é ir passando pela vida pensando sobre ela. E tentando encontrar soluções para poder continuar... a resistir.
Preciso de escrever para continuar a viver e por isso é que os diários continuam, há mais textos no meu computador. Se agora fôssemos editar o diário correspondente a 2007, veríamos diferenças em relação ao Diário II, não obstante a coincidência estranha de este sair numa altura em que eu tenho recidiva de cancro. A parte final do Diário II indica um caminho que se foi consolidando ao longo dos outros: já não tenho as dúvidas de religião que expressei no Diário I.

Nestes textos, revela-se como crente, mas crítica de um tipo de cristianismo sacrificial…
Sinto-me próxima de Cristo porque os evangelhos sempre tiveram uma grande importância para mim. Vejo, até certo ponto, que não posso ir plenamente a Cristo se não vou pela Igreja. A convicção na existência de Deus reforçou-se, mas serei uma católica nas margens. Algumas pessoas poderão considerar-me pouco ortodoxa. Digo sempre que estou à procura de uma ortodoxia maior.
Quando discordo de algumas posições do Vaticano, por exemplo em relação à morte assistida, é em busca de uma ortodoxia maior. Essa ortodoxia que dizem que me falta, considero-a uma ortodoxia menor. À imagem do que Santo Agostinho afirmava [em vez de “dizia”, pois antes já há outra forma do verbo “dizer”], sobre a procura de um Deus maior.
Para mim, é importante a luta contra um determinado cristianismo sacrificial, que insiste na ideia de que, a quem te bate numa face, deves oferecer-lhe a outra. Respirei de alívio quando uma psicanalista francesa, lendo o original, afirmou que se devia interpretar de outro modo: “A quem te bate numa face, mostra-lhe um outro caminho”. O cristianismo sacrificial não nos ajuda a mudar o mundo; pelo contrário, a sensibilidade ao sofrimento, tão típica de Cristo, torna o cristianismo uma grande energia crítica e emancipatória. Se queremos um exemplo de hospitalidade contrário aos ventos neoliberais dos nossos tempos, bem podemos encontrá-lo na parábola do bom samaritano.

Há também uma grande identificação com São João da Cruz e mesmo Teresa de Lisieux…
Houve uma época em que eu não conseguia largar a Subida do Monte Carmelo, de S. João da Cruz. Ele surgiu porque precisava de me entender. A “noite do espírito” correspondia muito ao que eu sentia. Teresa de Lisieux apareceu porque era uma personagem que me intrigava. Quando li as Obras Completas, vi que ela não era uma jovem pueril e aparentemente sem grande profundidade, mas uma rapariga que, não obstante ter morrido cedo, aprofundou muito o cristianismo. É notável a sua luta contra uma espécie de descrença, agarrando-se a uma forma desamparada de fé que até comoveu um estudioso distante como Jacques Maître. Antes disso, o Diário Íntimo de Unamuno marcara-me muito.

Mas a Igreja é uma questão difícil que a atravessa?
Lembro-me de uma entrevista com o padre João Resina, na Pública [publicada também em Diálogos com Deus em Fundo] em que ele dizia que, se fosse engenheiro e a Igreja uma fábrica, ele saía; mas como nem a Igreja é uma fábrica nem ele um engenheiro, permanecia. Como também tenho sentido essa impossibilidade de sair da Igreja, mas como a vivência dentro da mesma Igreja também não me é fácil, o diário serve também para pensar esta dificuldade.
Nietzsche foi o filósofo que mais se debateu com o cristianismo. Eu andava na Faculdade de Filosofia quando aderi ao cristianismo e quis confrontar-me com Nietzsche, para ver que razões ele tinha de queixa do cristianismo e ver se o conseguia “salvar” para o meu lado. E também tinha uma certa paixão pela maneira como ele escreve: simples, mas complexa.

Como escreve estes textos? Eles saem-lhe naturalmente ou precisa de alguma envolvência?
Escrevo o diário quase constantemente a ouvir música, o que nunca acontece quando escrevo textos académicos. Como se a música trouxesse ao de cima aquilo que, sem ela, não conseguiria captar no mais fundo de mim mesma.
Bach interessou-me não só pelo agrado que musicalmente me provoca, mas também pelo significado de muitas das letras das cantatas, que me dizem muito. Lembro-me daquela em que se afirma “última luz, irrompe, vem buscar-me”, referindo-se à morte. É uma afirmação de fé cantada de uma forma belíssima, como se a própria beleza da cantata nos pudesse conduzir à fé, mesmo que não a tivéssemos.

Pretende continuar a publicar o diário?
A minha ideia é continuar a publicá-lo, sim. Ele já existe no computador, em 700 ou mil páginas escritas. O diário faz parte da minha vida, é uma arma de resistência e de reflexão. O religioso é uma dimensão que abrange toda a pessoa, não é possível abstrair o que é religioso do resto da sua vida, como se fosse um produto quimicamente puro. O diário serve também, ou sobretudo, para pensar toda a realidade em função dessa dimensão.

Serve também para afirmar um modo feminino de olhar o fenómeno religioso?
Em dada altura, decidi deixar de ir à missa. Isso coincidiu com um período de maior afastamento da Igreja, quando descobri a teologia feminista. Eu já sabia que as religiões eram todas basicamente androcêntricas, mas não tinha ideia de que o cristianismo o fosse assim tanto.
A influência que o androcentrismo tem no cristianismo é enorme – os grandes patriarcas, a liturgia que só pode ser celebrada por homens, a pintura ocidental que mostra, por exemplo, Deus como um senhor de idade a criar um outro homem. Tudo isto faz-me lembrar uma passagem de A noite, de Elie Wiezel. A certa altura, no campo, depara-se com vários músicos. Um deles, violinista de renome, queixa-se de que não estava autorizado a tocar Beethoven, os judeus não podiam tocar música “alemã”. Quando as mulheres, do lado católico, são impedidas de celebrar uma eucaristia, não se está no fundo também a dizer que elas não têm “qualidade” ou mérito suficiente para o fazer, impedidas de tocar uma música que só deve ser tocada por homens?

Aliás, dedicou a esse tema o livro Alteridades Feridas – Algumas Leituras Feministas do Cristianismo e da Filosofia. Ele pretendeu continuar o diário…?
Há no diário passagens desse outro livro. A questão é que há reflexões ou pensamentos que começam no diário e depois passam para textos académicos, nos quais continuo a pensar sobre os problemas que tenho – ou me apaixono por aquilo que estou a fazer ou não consigo avançar.
Esse livro – Alteridades Feridas – diz-me muito. As questões sobre a invisibilidade das mulheres, o seu “disempowerment” e os diversos “roubos” a que estão sujeitas, brotaram inicialmente do diário. A temática do “roubo” já a captara há muitos anos em Deleuze e outros autores. Segundo eles, a principal diferença entre meninos e meninas reside no facto de, muito antes deles, elas serem roubadas duma série de potencialidades de desenvolvimento pessoal e social.

Tem escrito muitos artigos e também dois livros sobre o fim da vida. É um tema que a atormenta?
Não é a morte que me assusta. Acredito que há uma vida para além desta. Nunca me esqueci de um texto dos Irmãos Karamazov, quando um miúdo a quem falecera um amigo da sua idade, no regresso do funeral, rodeado dos outros amiguinhos, pergunta a Aliocha: “Achas mesmo que um dia nos vamos ver todos outra vez?” E Aliocha, na sua candura e simplicidade desarmantes, diz apenas: “Sim”. Quando li isto, veio-me uma lágrima aos olhos, de tal forma se sentia como chocante e injusto que aquela amizade entre aquele grupo de miúdos e o que falecera estivesse condenada a desaparecer para sempre. O “sim” de Aliocha significava que nem a morte nem as injustiças teriam a última palavra, por mais difícil que fosse acreditar nisso.
Não é a morte em si que me preocupa. É antes o filme de terror que pode ser, para uma pessoa, a sua despedida desta vida. E não me parece nada que Cristo pretendesse que essa passagem tivesse de ser tão difícil, que as pessoas tenham de sair desta vida numa tão grande agonia.

Daí o defender a possibilidade da morte assistida?
A morte é uma questão importante para ser decidida. Não gosto de utilizar o termo eutanásia, pois os nazis tinham um programa de eutanásia, que era de extermínio, que não tinha nada que ver com um pedido voluntário e reflectido. Morte assistida e cuidados paliativos não se devem opor.
É possível usufruir dos cuidados paliativos enquanto as pessoas acham que vale a pena mas, quando acharem que a situação já é de terror – como aconteceu em França, com Chantal Sébire – devem poder acabar com a vida, acompanhadas dos amigos... Do Oregon surgem-nos relatos em que por vezes há antes uma celebração litúrgica e depois as pessoas recolhem aos seus aposentos e morrem, junto dos mais próximos.

E os cuidados paliativos não bastam? Não são suficientes?
Precisamos imenso de cuidados paliativos. É uma vergonha Portugal ter tão poucos cuidados paliativos. Mas, geralmente, os profissionais dos cuidados paliativos não admitem colocar outras hipóteses, o que significa não respeitar as convicções mais íntimas de cada um quanto ao morrer e à morte. Chantal Sébire morreu na clandestinidade em França e, no mesmo dia, Hugo Klaus, o escritor belga, morreu legalmente através de uma eutanásia previamente acordada.
O que me faz confusão é que haja tanto pessoal de saúde que é a favor da vida, mas que depois se esqueça que essa vida é encarnada em pessoas. No Norte, por exemplo, é muito habitual os médicos tratarem por tu quem a eles recorre, sobretudo se se trata de pessoas pouco favorecidas economicamente. Parece-me que isso é um grande desrespeito pela vida daquelas pessoas. E quando não as cumprimentam à entrada do consultório, isso é também um grande desrespeito pela vida. O que não quer dizer que não haja muitos profissionais de saúde humanamente bons.

Sente algum tipo de pressão na universidade por ter as posições que tem?
Por parte da universidade, enquanto instituição, não. De qualquer modo, sobrevive-se mal na universidade. Pelo menos, as pessoas que querem fazer trabalho sério e que também gostam dos alunos e das alunas. A concorrência é muito grande e olha-se para o colega não como uma pessoa amiga mas como alguém que me impede de subir porque está a ocupar uma vaga. Se a pessoa morrer ou desaparecer do mapa, faz-me um favor. Este não é o verdadeiro espírito da universidade.
O que os professores do secundário têm dito à ministra não diriam aos reitores ou chefes de departamento, se fossem professores de universidade, porque há medo. Há uma nomeação definitiva que tem de ser aprovada por alguém, há provas, e os sistemas de avaliação começam a ser esquemas contáveis: conta-se o número de artigos que se fez ao longo da carreira, sem apreciar a qualidade. Tudo leva a não ter de ler e a não ter de fazer um juízo sobre o que se leu. Por alguma razão, no tempo de Hitler, as instituições universitárias foram as primeiras a pôr os judeus na rua.
Com apertos financeiros, o que mais se pretende da universidade – a inovação e a criatividade – fica mais bloqueado nas Letras do que nas Ciências. Até se tem acusado os filósofos de estarem ausentes em certos debates públicos – aborto, morte assistida. Mas em Portugal, ao contrário do que acontece em França, por exemplo, não se vê a televisão chamar uma pessoa de filosofia para comentar determinado acontecimento. São raríssimos os colunistas vindos da área da filosofia...
Repare-se que alguns blogues, especialmente destinados a comentar o funcionamento de determinada universidade, recebem sempre comentários anónimos embora sérios, o que evidencia o tal medo de falar.

Como imagina o seu encontro com Deus?
Gosto muito daqueles coloridos pós-pôr do sol. Espero que o meu encontro com Deus seja também num ambiente desses, que é para mim muito apaziguador e belo. Tenho a sensação que só nessa altura, como se diz na Bíblia, todas as lágrimas do nosso rosto serão enxugadas e todas as dúvidas que temos e não conseguimos resolver racionalmente serão resolvidas.

Imagino Deus sobretudo como uma força ou energia extremamente acolhedora, um ser de uma tão grande beleza e bondade que é impossível uma pessoa não se sentir atraída por ela ou não querer imediatamente abraçá-la. A minha ideia do “outro lado” é a de que simplesmente vamo-nos abraçar de imediato e dizer: “Finalmente!”

Texto anterior no blogue
Advento: Maria, José e a manjedoura - poemas de José Tolentino Mendonça e fotos de Rui Aleixo

1 comentário:

Teresa Toldy disse...

Laura Santos era de uma racionalidade “cartesiana”. Possuía uma capacidade de argumentação e uma acutilância nos seus comentários extraordinárias. A sua relação com a religião, nomeadamente, com o cristianismo, lembrava a luta entre Jacob e o anjo, na noite: querer ver, “discutir” com um Deus a quem teria muitas questões a colocar. Sofreu muito, muitíssimo. E face ao sofrimento concreto de uma pessoa concreta, ali, à nossa frente, argumentando pelo direito de morrer, por já não aguentar a vida, mas, mesmo assim, a querer viver, por considerar que a vida vale a pena, é de uma crueldade insustentável algo mais que o silêncio respeitoso diante da sua luta contra a morte e, simultaneamente, a favor da morte.