Por vezes não se entende muito bem como é que algumas pessoas aparecem a escrever em jornais. Ou talvez se perceba: basta defenderem o neoliberalismo vigente e usar uma linguagem aparentemente moderna para serem alcandorados a grandes cronistas da actualidade.
No Expresso da semana passada, Henrique Raposo escrevia outra vez sobre a encíclica Caritas in Veritate, depois de José Tolentino Mendonça já lhe ter dito que ele, de cristianismo, perceberá pouco, como se contou no texto anterior. Mas o cronista quis ripostar, confessando que fôra "leviano".
A ignorância de Henrique Raposo sobre o cristianismo (e, mais grave ainda, sobre a realidade) é mais do que leviana: primeiro, começa por falar de um cardeal "mui sul-americano (e mui vermelho)" que "destilou todos os clichês do livro de estilo marxista"; depois, cita uma frase do cardeal Maradiaga (que por acaso tem nome e é das Honduras), sobre a "cobiça" do mercado (que aliás nem se viu nas causas da actual crise) chamando-lhe "padre de passeata". Sobre o nível da prosa, que pelos vistos queria ser engraçada, está tudo dito.
O mais grave é que Raposo descobre que, cruzes credo!, a encíclica Caritas in Veritate mostra "pontos de contacto entre Bento XVI e a esquerda". Se o cronista ler alguns dos teólogos dos primeiros séculos do cristianismo, vai descobrir certamente perigosos pontos de contacto com a extrema-esquerda (será que na altura já existiriam esse perigosos?), na defesa que faziam da primazia do bem comum sobre a propriedade privada (ideia que continua a ser repetida pela doutrina social da Igreja) ou quando diziam que era um crime menor alguém com fome roubar para comer...
Mas ainda não chegava. E eis que o cronista descobre que a globalização "retirou centenas de milhões de pessoas da pobreza no 'resto do mundo'". Aliás, temo-las visto, a afogarem-se no Mediterrâneo ou no Atlântico, ávidas de gozarem as delícias da praia e da natação depois de descobrirem a riqueza, o emprego, o desenvolvimento, os seguros de saúde e todas as coisas boas do bem-estar... Temo-las visto no Darfur, nos Grandes Lagos, nas bolsas de miséria à volta as grandes cidades do hemisfério Sul. Ah: e temos visto também como as coisas estão tão bem que a pobreza em Portugal não só subsiste, como passa de geração em geração, como se alarga a camadas que antes não eram atingidas...
A crónica acaba com uma ameaça: que Bento XVI coloca a ideologia (??) da caridade à frente da realidade e que isso será tema para outra conversa. Não, por favor, queremos ser poupados. É que quem não entende que a caridade é antes uma atitude de vida e que, sim, está muitas vezes na linha da frente na transformação da dura realidade que tanta gente... - quem não entende isto, é melhor poupar-nos a mais "leviandades".
Sem comentários:
Enviar um comentário