Texto de António
Marujo e Maria Julieta Mendes Dias
O livro A Insurreição de Jesus, segunda
antologia de crónicas de frei Bento Domingues no Público, é esta semana posto à
venda. Nele se recolhem textos de frei Bento, de entre as mais de mil crónicas
já publicadas em 23 anos, sobre a questão de Deus, a figura histórica de Jesus
e a sua mensagem, bem como sobre a relação entre as diferentes religiões. A
apresentação deste volume procura situar algumas das ideias de Bento Domingues.
Este volume segue-se
ao primeiro, Um Mundo que Falta Fazer (ambos são ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores), que recolhe textos sobre
questões sociais e políticas. Como forma de
apresentar estes dois volumes e homenagear frei Bento pelos 80 anos que acaba
de completar, irá decorrer na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, dia 19 de
Setembro, uma sessão com vários participantes, nomes destacados da
sociedade e da cultura. O programa completo está no cartaz aqui reproduzido (deve acrescentar-se, no início da sessão, a participação do director-adjunto do Público, Nuno Pacheco). A entrada na sessão é livre.
A seguir, ficam
excertos do texto de apresentação deste segundo volume:
Pode não ser fácil
organizar as crónicas de frei Bento Domingues: muitas delas cruzam vários
temas, num caleidoscópio aparentemente disperso. Mas é evidente que há um
núcleo em todas elas, reflectindo a profunda convicção do autor: a pessoa de
Jesus Cristo, cuja originalidade “consiste em estar ligado a um Deus que tem,
em seu coração, todos os seres humanos e que pode ser encontrado ou esquecido
de mil maneiras”, como frei Bento escrevia no texto de 1 de Outubro de 2006.
Mesmo quando fala da
Igreja ou da política, da espiritualidade ou das outras religiões, da economia
ou do ateísmo, é a pessoa de Jesus que Bento Domingues coloca no âmago da sua
reflexão. Um Jesus cuja vida e palavra tem as outras pessoas no centro e cujo
único poder “é o de perdoar os próprios inimigos, desejar vida àqueles mesmos
que O excluíam da vida.”
De que Jesus fala frei
Bento? Ao longo destes já mais de mil textos e quase 23 anos de presença
semanal no Público, ele regressa, de
vez em quando, aos elementos que podemos conhecer ao certo sobre Jesus. Numa
das crónicas, descrevia: “Nasceu, provavelmente, entre os anos 6 e 4, antes da era
comum. Falava o dialecto da sua região, o aramaico da Galileia. Frequentava a
Sinagoga e sabia ler textos bíblicos em hebraico. É normal que soubesse,
também, um pouco de grego e alguns termos em latim. Este judeu da Galileia
cresceu e viveu nessa parte setentrional da Palestina, herdeira directa do
grande reino de Herodes.”
****
Apesar do que ficou
dito, é possível tentar encontrar um eixo em cada uma das crónicas de frei
Bento. (...)
O volume começa,
assim, por se concentrar na questão de Deus que, no cristianismo, se humaniza e
vive em Jesus. Aprofunda, depois, o que sabemos ou não sobre o Jesus histórico,
bem como alguns episódios centrais da sua vida: o nascimento, a morte e a
ressurreição. Oferece, em seguida, a reflexão sobre a proposta de Jesus, a
partir de três ideias diferentes embora relacionadas. Termina-se com a reflexão
sobre o diálogo entre essa proposta de Jesus e outras religiões. (...)
O Deus de Jesus é,
para frei Bento, um Deus universal e dos excluídos, próximo de cada pessoa, que
cultiva a diferença e o humor e salva vidas arruinadas. “Faz parte da
identidade de Jesus a relação com Deus, o Deus no qual vivemos, nos movemos e
existimos. Para ele, não havia um Deus dos judeus, outro dos gentios. As raízes
geográficas de Jesus estavam na Palestina, as suas raízes teológicas estavam no
coração de um Deus onde há morada para todos.
A relação íntima de
Jesus com Deus leva à fórmula trinitária do cristianismo – Deus Pai, Filho
(Jesus Cristo) e Espírito Santo. Essa concepção do Deus Uno e Trino deu origem
a muitas explicações enviesadas e mesmo disparatadas – e o nosso autor não se
coíbe de ironizar, como ele bem sabe fazer, sobre algumas delas. Mas, como
também explica, a simbólica trinitária pretende sobretudo explicar “a máxima
unidade na máxima diversidade”, sem subordinações mas com “a alegria da
comunhão nas diferenças”.
A concepção de um Deus
universal e a recusa do poder sobre os outros são identitárias na proposta de
Jesus. O cristianismo, defende frei Bento, só servirá o mundo “como fonte de
resistência a todas as formas de dominação”. “A sua alma é o amor incondicional
e sem fronteiras. O cristianismo pode ter inimigos, mas não pode ser, sem
traição, inimigo de ninguém.”
Na experiência de
Jesus, a própria religião, enquanto sistema organizado de poder e ritual, pode
ser posta em causa se contrariar o desejo de Deus de liberdade humana. Por
isso, frei Bento não tem dúvidas de que “qualquer preceito religioso que impeça
a libertação humana deve ser sistematicamente violado”. O próprio “Cristo
libertou-nos para um Deus que nos pergunta: que fazeis dos velhos e doentes que
vivem e morrem na miséria e na solidão e das crianças a quem negais um futuro
humano?” E, no “Novo Testamento, a insistência na libertação de rituais
religiosos, enquanto prisões, destina-se à descoberta da religião verdadeira:
abertura a um Deus livre, mas não indiferente à sorte dos pobres e dos explorados.
A liberdade está
também, por isso, no centro da mensagem evangélica: “Foi para a liberdade que
Cristo vos libertou”, escreveria Paulo aos Gálatas. Bento Domingues acrescenta
que “Jesus recusa o destino e abre uma brecha de libertação no interior da história
humana, através da conversão do desejo. (...) Deus não faz negócio com os seus
dons. É por isso que o amor dos inimigos é divino, é o divino em humanidade.
Quem faz o bem sem olhar a quem, seja amigo ou inimigo, saiba-o ou não, vem da
zona de Deus com a alma transfigurada. (...)
O cristianismo é “um
amor apaixonado pela libertação dos que sofrem” e não uma devoção sacrificial
ou um agir por medo do castigo. Os que sofrem, as vítimas de todas as exclusões
ou de todos os exercícios arbitrários do poder são outro dos eixos da fé
cristã: o que é verdadeiro na humanidade e no próprio cristianismo – e que
revela o rosto de Deus – é a prática da compaixão e da misericórdia. (...)
Mais uma vez, frei
Bento não está a inventar nada, mas a limitar-se a ler a Bíblia: “No capítulo
onze do Evangelho de S. João, o narrador interrompe as deliberações do
Sinédrio, reunido de urgência, para revelar a alma da intervenção de Jesus na
vida e na morte: ‘Congregar todos os filhos de Deus dispersos’, isto é, fazer
do mundo inteiro uma grande família.”
Este sonho, esta
loucura tem consequências. Desde logo, não pode deixar ninguém de fora. Vivemos
tempos em que uma governação criminosa tem reduzido milhões de pessoas apenas a
peças descartáveis de um sistema financeiro insaciável, como tem denunciado o
Papa Francisco. Neste quadro, que frei Bento tanto censura, a proposta de Jesus
é muito clara: “abrir o caminho da esperança e da alegria às vítimas da pobreza
imposta e de enxugar as lágrimas dos infelizes; (...) perturbar os ricos, os
fartos, os poderosos e os cínicos pela responsabilidade que têm, por acção e
por omissão, no ódio, na violência e nas lágrimas que mancham a terra.
As trágicas
consequências do modelo económico que nos tem desgovernado são objectivas: por
exemplo, a intensificação dos conflitos armados ao redor do mundo e o aumento
do número de refugiados (em Junho de 2014, pela primeira vez desde a II Guerra
Mundial, o número ultrapassou os 50 milhões de pessoas). Ou seja, tem razão o
Papa Francisco quando diz que esta economia “mata”.
Em síntese, enfim, o que diz Jesus e o “que a generosidade de Deus
não pode tolerar é que se torne privilégio de alguns o que deve estar ao
serviço de todos. Servir o dinheiro e o que ele consegue, como um absoluto, é
deixar-se escravizar pelos êxitos que envenenam o mundo, sobretudo pelo
comércio das armas e dos seres humanos. Dito de outra forma: “Chegamos, aqui,
ao essencial. Jesus, a partir de uma experiência divina, vinha revelar que
todos os seres humanos estão inscritos no coração de Deus e que a tarefa de
cada um é inscrever os outros, mesmo os inimigos, no seu próprio coração. Neste
reino não há excluídos. Jesus é “o homem para Deus e para os outros. Ele é o
mundo às avessas”.
****
(...) A vida e a mensagem de Jesus foram uma “insurreição
permanente contra tudo o que degrada a vida humana”, numa atitude de profunda “obediência
à vontade de Deus. Por causa disso, foi julgado num processo grosseiramente
manipulado pelas autoridades religiosas e políticas. Acabou condenado à morte,
com uma forma de tortura e execução reservada à escória social do tempo,
assumindo de novo, mesmo aí, a condição dos mais excluídos.
Os seus amigos, no entanto, testemunharam que ele ressuscitara e
vivia de outra forma. O que se passou, no entanto, será sempre da ordem do
mistério, como escrevia E. P. Sanders. Os próprios protagonistas não conseguiam
compreender plenamente o que se passava, mas sabiam que estavam perante “a aparição
de uma pessoa viva, mas transformada, que tinha realmente morrido. Eles
acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso. Neste processo, criaram um
movimento que foi muito para além da mensagem de Jesus, em muitos aspectos.”
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A 9 de Novembro de
2003, escrevia frei Bento: “Segundo Jesus Cristo, a pátria de Deus é a aventura
humana. Cuidar desta aventura é a autêntica vocação das religiões. E,
referindo-se às narrativas evangélicas, dizia a 27 de Setembro de 2009: “Sem a
paixão por Jesus Cristo, que as percorre, perdem todo o sal. Pode dizer-se
destes textos teológicos de frei Bento Domingues que eles nos ajudam a cuidar
da aventura humana. E que, sem a paixão por Jesus que os percorre, eles
perderiam todo o sal.
24 de Junho de 2014,
festa litúrgica de São João
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