quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Jesus, homem para Deus e para os outros - uma antologia de frei Bento Domingues

Texto de António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias

O livro A Insurreição de Jesus, segunda antologia de crónicas de frei Bento Domingues no Público, é esta semana posto à venda. Nele se recolhem textos de frei Bento, de entre as mais de mil crónicas já publicadas em 23 anos, sobre a questão de Deus, a figura histórica de Jesus e a sua mensagem, bem como sobre a relação entre as diferentes religiões. A apresentação deste volume procura situar algumas das ideias de Bento Domingues.
Este volume segue-se ao primeiro, Um Mundo que Falta Fazer (ambos são ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores), que recolhe textos sobre questões sociais e políticas. Como forma de apresentar estes dois volumes e homenagear frei Bento pelos 80 anos que acaba de completar, irá decorrer na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, dia 19 de Setembro, uma sessão com vários participantes, nomes destacados da sociedade e da cultura. O programa completo está no cartaz aqui reproduzido (deve acrescentar-se, no início da sessão, a participação do director-adjunto do Público, Nuno Pacheco). A entrada na sessão é livre.



A seguir, ficam excertos do texto de apresentação deste segundo volume:

Pode não ser fácil organizar as crónicas de frei Bento Domingues: muitas delas cruzam vários temas, num caleidoscópio aparentemente disperso. Mas é evidente que há um núcleo em todas elas, reflectindo a profunda convicção do autor: a pessoa de Jesus Cristo, cuja originalidade “consiste em estar ligado a um Deus que tem, em seu coração, todos os seres humanos e que pode ser encontrado ou esquecido de mil maneiras”, como frei Bento escrevia no texto de 1 de Outubro de 2006. 
Mesmo quando fala da Igreja ou da política, da espiritualidade ou das outras religiões, da economia ou do ateísmo, é a pessoa de Jesus que Bento Domingues coloca no âmago da sua reflexão. Um Jesus cuja vida e palavra tem as outras pessoas no centro e cujo único poder “é o de perdoar os próprios inimigos, desejar vida àqueles mesmos que O excluíam da vida.”
De que Jesus fala frei Bento? Ao longo destes já mais de mil textos e quase 23 anos de presença semanal no Público, ele regressa, de vez em quando, aos elementos que podemos conhecer ao certo sobre Jesus. Numa das crónicas, descrevia: “Nasceu, provavelmente, entre os anos 6 e 4, antes da era comum. Falava o dialecto da sua região, o aramaico da Galileia. Frequentava a Sinagoga e sabia ler textos bíblicos em hebraico. É normal que soubesse, também, um pouco de grego e alguns termos em latim. Este judeu da Galileia cresceu e viveu nessa parte setentrional da Palestina, herdeira directa do grande reino de Herodes.”


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Apesar do que ficou dito, é possível tentar encontrar um eixo em cada uma das crónicas de frei Bento. (...)
O volume começa, assim, por se concentrar na questão de Deus que, no cristianismo, se humaniza e vive em Jesus. Aprofunda, depois, o que sabemos ou não sobre o Jesus histórico, bem como alguns episódios centrais da sua vida: o nascimento, a morte e a ressurreição. Oferece, em seguida, a reflexão sobre a proposta de Jesus, a partir de três ideias diferentes embora relacionadas. Termina-se com a reflexão sobre o diálogo entre essa proposta de Jesus e outras religiões. (...)
O Deus de Jesus é, para frei Bento, um Deus universal e dos excluídos, próximo de cada pessoa, que cultiva a diferença e o humor e salva vidas arruinadas. “Faz parte da identidade de Jesus a relação com Deus, o Deus no qual vivemos, nos movemos e existimos. Para ele, não havia um Deus dos judeus, outro dos gentios. As raízes geográficas de Jesus estavam na Palestina, as suas raízes teológicas estavam no coração de um Deus onde há morada para todos.
A relação íntima de Jesus com Deus leva à fórmula trinitária do cristianismo – Deus Pai, Filho (Jesus Cristo) e Espírito Santo. Essa concepção do Deus Uno e Trino deu origem a muitas explicações enviesadas e mesmo disparatadas – e o nosso autor não se coíbe de ironizar, como ele bem sabe fazer, sobre algumas delas. Mas, como também explica, a simbólica trinitária pretende sobretudo explicar “a máxima unidade na máxima diversidade”, sem subordinações mas com “a alegria da comunhão nas diferenças”.
A concepção de um Deus universal e a recusa do poder sobre os outros são identitárias na proposta de Jesus. O cristianismo, defende frei Bento, só servirá o mundo “como fonte de resistência a todas as formas de dominação”. “A sua alma é o amor incondicional e sem fronteiras. O cristianismo pode ter inimigos, mas não pode ser, sem traição, inimigo de ninguém.”
Na experiência de Jesus, a própria religião, enquanto sistema organizado de poder e ritual, pode ser posta em causa se contrariar o desejo de Deus de liberdade humana. Por isso, frei Bento não tem dúvidas de que “qualquer preceito religioso que impeça a libertação humana deve ser sistematicamente violado”. O próprio “Cristo libertou-nos para um Deus que nos pergunta: que fazeis dos velhos e doentes que vivem e morrem na miséria e na solidão e das crianças a quem negais um futuro humano?” E, no “Novo Testamento, a insistência na libertação de rituais religiosos, enquanto prisões, destina-se à descoberta da religião verdadeira: abertura a um Deus livre, mas não indiferente à sorte dos pobres e dos explorados.
A liberdade está também, por isso, no centro da mensagem evangélica: “Foi para a liberdade que Cristo vos libertou”, escreveria Paulo aos Gálatas. Bento Domingues acrescenta que “Jesus recusa o destino e abre uma brecha de libertação no interior da história humana, através da conversão do desejo. (...) Deus não faz negócio com os seus dons. É por isso que o amor dos inimigos é divino, é o divino em humanidade. Quem faz o bem sem olhar a quem, seja amigo ou inimigo, saiba-o ou não, vem da zona de Deus com a alma transfigurada. (...)
O cristianismo é “um amor apaixonado pela libertação dos que sofrem” e não uma devoção sacrificial ou um agir por medo do castigo. Os que sofrem, as vítimas de todas as exclusões ou de todos os exercícios arbitrários do poder são outro dos eixos da fé cristã: o que é verdadeiro na humanidade e no próprio cristianismo – e que revela o rosto de Deus – é a prática da compaixão e da misericórdia. (...)
Mais uma vez, frei Bento não está a inventar nada, mas a limitar-se a ler a Bíblia: “No capítulo onze do Evangelho de S. João, o narrador interrompe as deliberações do Sinédrio, reunido de urgência, para revelar a alma da intervenção de Jesus na vida e na morte: ‘Congregar todos os filhos de Deus dispersos’, isto é, fazer do mundo inteiro uma grande família.”
Este sonho, esta loucura tem consequências. Desde logo, não pode deixar ninguém de fora. Vivemos tempos em que uma governação criminosa tem reduzido milhões de pessoas apenas a peças descartáveis de um sistema financeiro insaciável, como tem denunciado o Papa Francisco. Neste quadro, que frei Bento tanto censura, a proposta de Jesus é muito clara: “abrir o caminho da esperança e da alegria às vítimas da pobreza imposta e de enxugar as lágrimas dos infelizes; (...) perturbar os ricos, os fartos, os poderosos e os cínicos pela responsabilidade que têm, por acção e por omissão, no ódio, na violência e nas lágrimas que mancham a terra.
As trágicas consequências do modelo económico que nos tem desgovernado são objectivas: por exemplo, a intensificação dos conflitos armados ao redor do mundo e o aumento do número de refugiados (em Junho de 2014, pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, o número ultrapassou os 50 milhões de pessoas). Ou seja, tem razão o Papa Francisco quando diz que esta economia “mata”. 
Em síntese, enfim, o que diz Jesus e o “que a generosidade de Deus não pode tolerar é que se torne privilégio de alguns o que deve estar ao serviço de todos. Servir o dinheiro e o que ele consegue, como um absoluto, é deixar-se escravizar pelos êxitos que envenenam o mundo, sobretudo pelo comércio das armas e dos seres humanos. Dito de outra forma: “Chegamos, aqui, ao essencial. Jesus, a partir de uma experiência divina, vinha revelar que todos os seres humanos estão inscritos no coração de Deus e que a tarefa de cada um é inscrever os outros, mesmo os inimigos, no seu próprio coração. Neste reino não há excluídos. Jesus é “o homem para Deus e para os outros. Ele é o mundo às avessas”.

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(...) A vida e a mensagem de Jesus foram uma “insurreição permanente contra tudo o que degrada a vida humana”, numa atitude de profunda “obediência à vontade de Deus. Por causa disso, foi julgado num processo grosseiramente manipulado pelas autoridades religiosas e políticas. Acabou condenado à morte, com uma forma de tortura e execução reservada à escória social do tempo, assumindo de novo, mesmo aí, a condição dos mais excluídos.
Os seus amigos, no entanto, testemunharam que ele ressuscitara e vivia de outra forma. O que se passou, no entanto, será sempre da ordem do mistério, como escrevia E. P. Sanders. Os próprios protagonistas não conseguiam compreender plenamente o que se passava, mas sabiam que estavam perante “a aparição de uma pessoa viva, mas transformada, que tinha realmente morrido. Eles acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso. Neste processo, criaram um movimento que foi muito para além da mensagem de Jesus, em muitos aspectos.”

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A 9 de Novembro de 2003, escrevia frei Bento: “Segundo Jesus Cristo, a pátria de Deus é a aventura humana. Cuidar desta aventura é a autêntica vocação das religiões. E, referindo-se às narrativas evangélicas, dizia a 27 de Setembro de 2009: “Sem a paixão por Jesus Cristo, que as percorre, perdem todo o sal. Pode dizer-se destes textos teológicos de frei Bento Domingues que eles nos ajudam a cuidar da aventura humana. E que, sem a paixão por Jesus que os percorre, eles perderiam todo o sal.


24 de Junho de 2014, festa litúrgica de São João

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