domingo, 14 de setembro de 2014

Uma volta à Europa em bicicleta para abrir portas e possíveis



Sylvie e Jean-Louis à saída do Fundão, em Abril 
(foto Maria Marujo)

Chegaram neste sábado a Korinos, pequena aldeia à beira-mar, na Grécia, 440 quilómetros a norte de Atenas, próxima de Katarini e do Monte Olimpo. Nesta noite de domingo, deverão já descansar em Stomio, 80 quilómetros a sul, sempre seguindo a linha de costa. O final desta volta à Europa em bicicleta, que Sylvie e Jean-Louis Frison iniciaram dia 30 de Março, está previsto para daqui a mês e meio: dia 29 de Outubro deverão chegar a Cannes; dia 30, a viagem será de comboio até Estrasburgo e daqui, no dia seguinte, partirão para Mutzig, 25 quilómetros a oeste de Estrasburgo, para a última etapa, de novo em bicicleta.
“Temos o sentimento de estar a abrir portas e possíveis”, dizem ambos ao RELIGIONLINE, depois de terem percorrido já 13.800 dos 17 mil quilómetros previstos e atravessado 20 países – entre os quais Portugal, em AbrilAqui entraram por Almeida, passando depois pelo Fundão, Coimbra, Tomar, Lisboa, Fátima, Batalha, Aveiro, Porto e Braga. A 25 de Abril, em Lisboa, completaram 2000 quilómetros percorridos e viram, sem contar, 30 mil cravos lançados na Praça do Comércio por um helicóptero. 
Neste momento, visitaram já dez capitais europeias e utilizaram dez moedas diferentes, além do euro (há outras curiosidades que podem ser conferidas aqui).
Uma das questões que colocam é a do desconhecimento que temos, enquanto europeus, uns dos outros. Esta volta, dizem, ajudou a perceber que não se conhecem os vizinhos: “Temos todos um certo número de clichés, preconceitos, ideias falsas. E o encontro e a partilha permitem reajustar esses preconceitos.” Em Agosto, recordando os 100 anos do início da I Guerra Mundial, escreveram no blogue que o que estamos a viver actualmente “testemunha a importância de desenvolvermos pontos de encontro e de expressão”, que respeitem as especificidades de cada país e de cada pessoa. É preciso “ousar ir ao encontro do outro, com toda a simplicidade”, acrescentavam.
Numa altura em que se define a nova Comissão Europeia e a União continua mergulhada numa profunda crise económica, financeira e política, acrescentam que a redistribuição das riquezas não deve passar apenas “pelo mérito e o trabalho, mas pode ir buscar a sua fonte ao investimento do laço social”.
Com 53 anos, Sylvie é assistente social numa instituição gerida pela Associação dos Paralisados de França e que acolhe adultos com dificuldades físicas ou sensoriais. Jean-Louis, 51 anos, é director de uma instituição médico-social onde são acolhidas 80 crianças com défices cognitivos, gerida pela Arsea (Associação Regional de Acção Social, Educação e Animação).
Inicialmente, o trajecto previa uma passagem pela Ucrânia. Mas os ventos de guerra que sopram no país levaram-nos a alterar a rota, nas últimas semanas, descendo da Polónia pela Hungria, Sérvia, Roménia, Bulgária e Turquia, antes de entrar na Grécia.
“A passagem na Ucrânia foi-nos desaconselhada e não quisemos misturar a nossa volta com esta situação política complicada que se agrava desde há meses”, justificam. “Este conflito coloca em questão a estabilidade europeia instalada após muitos anos pela diplomacia.” Do que ouvem das pessoas, sentem “inquietação e medo do presidente da Rússia e um sentimento de tristeza com a ideia de que as populações ucranianas (logo, europeias) sejam tomadas reféns por uma minoria violenta”. Este procedimento “é contrário à nossa democracia”, afirmam.
A entrevista, feita por correio electrónico, após mais uma etapa desta volta original, fica aqui na íntegra:

P. – Para além de pedalar, qual é a razão de fazer esta volta através da Europa?
R. – A bicicleta foi sempre um meio de deslocação, nomeadamente por ocasião das nossas férias de Verão. Um meio ecológico, pouco oneroso, acessível e lúdico para todos (pequenos e grandes). Um tempo desportivo no quotidiano que permite igualmente a descoberta das paisagens e a abertura aos outros e estar em ligação directa com a natureza e com as outras pessoas.
Esta volta à Europa, depois de numerosas experiências de viagem itinerante, era antes de mais um sonho. Concretiza-se agora depois de um longo tempo de preparação.


(foto Maria Marujo)

P. – Depois dos 13 mil quilómetros já percorridos, o que vos tocou mais ao nível do conhecimento de diferentes povos e culturas?
R. – O interesse das pessoas que encontramos. As pessoas perguntam-nos na rua: “O que fazem? Onde vão? De onde vêm?” Todos reparam na presença da nossa bandeira europeia, bem como na bandeira bordada e na placa “Europa”, na parte de trás da bicicleta.
Esta volta tem, para nós, a ambição de fazer sonhar e de criar laços; temos o sentimento de estar a abrir portas e possíveis. As pessoas parecem projectar-se na nossa história. Não somos nem grandes desportistas nem aventureiros mas simplesmente um casal normal, à roda dos 50 anos. Em suma, cada pessoa poderia imaginar realizar esta volta à Europa. Não se trata nem de uma façanha nem de um êxito mas de um desejo, um sonho que estamos a concretizar.

P. – Há uma Europa dos povos, para lá da Europa política?
R. – A Europa é uma entidade concreta, de povos, de histórias, de culturas, de modos de viver, de línguas... descobrimos essas realidades e partilhamo-las com as pessoas que encontramos. O nosso blogue (http://www.tour-europe-velo.eu/) é um modo de partilha e comunicação da nossa experiência.

P. – No actual contexto de renascimento dos nacionalismos e da xenofobia, o conhecimento mútuo entre os povos e as culturas é o mais importante para contrariar essa tendência?
R. – No plano europeu e nacional, estamos a verificar um fechamento das pessoas sobre si mesmas (vejam-se os resultados das diferentes eleições e o crescimento dos nacionalismos). A nossa vivência durante esta volta mostra-nos que as pessoas que encontramos são muito receptivas ao nosso projecto, abertas – o que não está de acordo com o sentido do voto, porque as pessoas têm medo de perder o seu conforto. Podemos manter o nosso nível de vida ou não há uma escolha a fazer no sentido de uma melhor distribuição das riquezas? Esta redistribuição não passa unicamente pelo mérito e o trabalho, mas pode ir buscar a sua fonte ao investimento do laço social.

P. – Podemos dizer que há uma dimensão cultural e espiritual que liga os povos? Podemos chegar a essa compreensão através da bicicleta?
R. – A bicicleta é um meio de transporte económico e acessível a um grande número de pessoas; de bicicleta, ficamos acessíveis aos outros e vamos ao seu encontro. Esta busca de proximidade é muitas vezes saudada e apoiada, através de fórmulas de alojamento como o campismo, os warmshowers (rede internacional de partilha entre cicloturistas, um sistema baseado na gratuidade), programas como o Erasmus (de acolhimento a estudantes estrangeiros) ou o caminho de Santiago de Compostela e os encontros internacionais que ele proporciona. E há outros ciclistas que encontramos a percorrer igualmente a Europa. Verificamos ainda que as gares estão cheias de gente e que as autoestradas estão saturadas. Os europeus têm uma grande necessidade de se deslocar.
A Europa dos povos constrói-se através de numerosas relações que se desenvolvem entre pessoas como os estudantes (no Erasmus), as trocas económicas e o desenvolvimento dos média.
Todos estes aspectos positivos conhecem igualmente o seu reverso, uma vez que essa abertura das pessoas pode favorecer o fechamento de outros sobre si mesmos. A televisão e a internet permitem ainda fazer a Europa a partir da sua sala. 
Estes diferentes exemplos mostram que há uma Europa das relações que se está a criar, que certas pessoas têm um desejo de encontrar.

P. – Que conclusões retiram a partir dessas verificações?
R. – Após o percurso que já fizemos, percebemos que não conhecemos os nossos vizinhos. Temos todos um certo número de clichés, preconceitos, ideias falsas. E o encontro e a partilha permitem reajustar esses preconceitos.
A nosso modesto nível, temos o sentimento de estar a contribuir para um melhor conhecimento dos povos e de transmitir às pessoas que encontramos o mesmo desejo de descobrir os seus vizinhos europeus.

P. – Mesmo sem falar algumas línguas?
R. – Apesar disso, conseguimos partilhar. As pessoas têm desejo de nos fazer conhecer o que vivem, as suas riquezas históricas, a beleza da sua região. Muitas delas são orgulhosas do sítio onde vivem e que desejam valorizar.
Hoje, não se sente animosidade entre nações. Falámos com sul-coreanos que estavam de férias na Europa para fazer o Caminho de Santiago. Perguntámos-lhes o que mais os espantou na Europa. Eles estão impressionados pelo nosso grau de liberdade, uma vez que no seu país têm um sentimento de grande dependência do trabalho e de viver um stress permanente, tanto por essa ligação ao trabalho como por uma excessiva densidade da população, em particular nas grandes cidades.
A bicicleta permite o encontro, colocando as pessoas em proximidade: nós solicitamos e, logo, estamos em interacção. Mas como criar projectos entre países, entre pessoas de vários países?

P. – E a Europa dos povos existe para lá da Europa económica? Como fazê-la viver?
R. – Actualmente, descobrimos a história dos outros países e a sua situação geopolítica. Através dessa história e do conhecimento do passado, damo-nos conta de que numerosas permutas tiveram lugar no final da Idade Média, quando da construção das catedrais. Cerca de 270 catedrais foram construídas entre os séculos XIII e XV, na Europa, o que induziu deslocações importantes, trocas de técnicas e criações. O Renascimento impulsionado pela Itália trouxe um novo estímulo e dinamismo. Verificamos que uma parte da população se abriu à troca, enquanto outros se mantiveram fechados e no medo e, sobretudo, sem projecto.

Esta volta à Europa reconforta-nos, porque se tornou um projecto forte para cada um de nós os dois, para ambos enquanto casal, para o conhecimento dos outros, da história e da geografia, dos costumes e do quotidiano das pessoas que encontramos. Este projecto faz falta a numerosas pessoas que vivem esta crise que as amedronta.  

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