Sylvie e Jean-Louis à saída do Fundão, em Abril
(foto Maria Marujo)
(foto Maria Marujo)
Chegaram neste sábado a Korinos,
pequena aldeia à beira-mar, na Grécia, 440 quilómetros a norte de Atenas,
próxima de Katarini e do Monte Olimpo. Nesta noite de domingo, deverão já
descansar em Stomio, 80 quilómetros a sul, sempre seguindo a linha de costa. O
final desta volta à Europa em bicicleta, que Sylvie e Jean-Louis Frison
iniciaram dia 30 de Março, está previsto para daqui a mês e meio: dia 29 de
Outubro deverão chegar a Cannes; dia 30, a viagem será de comboio até Estrasburgo
e daqui, no dia seguinte, partirão para Mutzig, 25 quilómetros a oeste de
Estrasburgo, para a última etapa, de novo em bicicleta.
“Temos o sentimento de estar a abrir portas e
possíveis”, dizem ambos ao RELIGIONLINE, depois de terem percorrido já 13.800
dos 17 mil quilómetros previstos e atravessado 20 países – entre os quais
Portugal, em Abril. Aqui entraram por Almeida, passando depois pelo Fundão,
Coimbra, Tomar, Lisboa, Fátima, Batalha, Aveiro, Porto e Braga. A 25 de Abril,
em Lisboa, completaram 2000 quilómetros percorridos e viram, sem contar, 30 mil cravos lançados na Praça do Comércio por um helicóptero.
Neste momento, visitaram já dez
capitais europeias e utilizaram dez moedas diferentes, além do euro (há outras
curiosidades que podem ser conferidas aqui).
Uma das questões que colocam é a do
desconhecimento que temos, enquanto europeus, uns dos outros. Esta volta,
dizem, ajudou a perceber que não se conhecem os vizinhos: “Temos todos um certo
número de clichés, preconceitos, ideias falsas. E o encontro e a partilha
permitem reajustar esses preconceitos.” Em Agosto, recordando os 100 anos do início da I Guerra Mundial, escreveram no blogue que o que estamos a viver
actualmente “testemunha a importância de desenvolvermos pontos de encontro e de
expressão”, que respeitem as especificidades de cada país e de cada pessoa. É preciso “ousar ir ao encontro do outro, com toda a simplicidade”, acrescentavam.
Numa altura em que se define a
nova Comissão Europeia e a União continua mergulhada numa profunda crise
económica, financeira e política, acrescentam que a redistribuição das riquezas
não deve passar apenas “pelo mérito e o trabalho, mas pode ir buscar a sua
fonte ao investimento do laço social”.
Com 53 anos, Sylvie é assistente
social numa instituição gerida pela Associação dos Paralisados de França e que
acolhe adultos com dificuldades físicas ou sensoriais. Jean-Louis, 51 anos, é
director de uma instituição médico-social onde são acolhidas 80 crianças com
défices cognitivos, gerida pela Arsea (Associação Regional de Acção
Social, Educação e Animação).
Inicialmente, o trajecto previa
uma passagem pela Ucrânia. Mas
os ventos de guerra que sopram no país levaram-nos a alterar a rota, nas últimas
semanas, descendo da Polónia pela Hungria, Sérvia, Roménia, Bulgária e Turquia,
antes de entrar na Grécia.
“A passagem na Ucrânia foi-nos
desaconselhada e não quisemos misturar a nossa volta com esta situação política
complicada que se agrava desde há meses”, justificam. “Este conflito coloca em
questão a estabilidade europeia instalada após muitos anos pela diplomacia.” Do
que ouvem das pessoas, sentem “inquietação e medo do presidente da Rússia e um
sentimento de tristeza com a ideia de que as populações ucranianas (logo,
europeias) sejam tomadas reféns por uma minoria violenta”. Este procedimento “é
contrário à nossa democracia”, afirmam.
A entrevista, feita por correio
electrónico, após mais uma etapa desta volta original, fica aqui na íntegra:
P. – Para além de pedalar, qual é a razão de fazer esta volta através
da Europa?
R. – A bicicleta foi sempre um
meio de deslocação, nomeadamente por ocasião das nossas férias de Verão. Um
meio ecológico, pouco oneroso, acessível e lúdico para todos (pequenos e
grandes). Um tempo desportivo no quotidiano que permite igualmente a descoberta
das paisagens e a abertura aos outros e estar em ligação directa com a natureza
e com as outras pessoas.
Esta volta à Europa, depois de
numerosas experiências de viagem itinerante, era antes de mais um sonho.
Concretiza-se agora depois de um longo tempo de preparação.
(foto Maria Marujo)
P. – Depois dos 13 mil quilómetros já percorridos, o que vos tocou mais
ao nível do conhecimento de diferentes povos e culturas?
R. – O interesse das pessoas que
encontramos. As pessoas perguntam-nos na rua: “O que fazem? Onde vão? De onde
vêm?” Todos reparam na presença da nossa bandeira europeia, bem como na
bandeira bordada e na placa “Europa”, na parte de trás da bicicleta.
Esta volta tem, para nós, a ambição
de fazer sonhar e de criar laços; temos o sentimento de estar a abrir portas e
possíveis. As pessoas parecem projectar-se na nossa história. Não somos nem
grandes desportistas nem aventureiros mas simplesmente um casal normal, à roda
dos 50 anos. Em suma, cada pessoa poderia imaginar realizar esta volta à
Europa. Não se trata nem de uma façanha nem de um êxito mas de um desejo, um
sonho que estamos a concretizar.
P. – Há uma Europa dos povos, para lá da Europa política?
R. – A Europa é uma entidade
concreta, de povos, de histórias, de culturas, de modos de viver, de línguas...
descobrimos essas realidades e partilhamo-las com as pessoas que encontramos. O
nosso blogue (http://www.tour-europe-velo.eu/)
é um modo de partilha e comunicação da nossa experiência.
P. – No actual contexto de renascimento dos nacionalismos e da
xenofobia, o conhecimento mútuo entre os povos e as culturas é o mais
importante para contrariar essa tendência?
R. – No plano europeu e nacional, estamos
a verificar um fechamento das pessoas sobre si mesmas (vejam-se os resultados
das diferentes eleições e o crescimento dos nacionalismos). A nossa vivência
durante esta volta mostra-nos que as pessoas que encontramos são muito receptivas
ao nosso projecto, abertas – o que não está de acordo com o sentido do voto,
porque as pessoas têm medo de perder o seu conforto. Podemos manter o nosso
nível de vida ou não há uma escolha a fazer no sentido de uma melhor
distribuição das riquezas? Esta redistribuição não passa unicamente pelo mérito
e o trabalho, mas pode ir buscar a sua fonte ao investimento do laço social.
P. – Podemos dizer que há uma
dimensão cultural e espiritual que liga os povos? Podemos chegar a essa
compreensão através da bicicleta?
R. – A bicicleta é um meio de
transporte económico e acessível a um grande número de pessoas; de bicicleta,
ficamos acessíveis aos outros e vamos ao seu encontro. Esta busca de
proximidade é muitas vezes saudada e apoiada, através de fórmulas de alojamento
como o campismo, os warmshowers (rede
internacional de partilha entre cicloturistas, um sistema baseado na
gratuidade), programas como o Erasmus (de acolhimento a estudantes
estrangeiros) ou o caminho de Santiago de Compostela e os encontros internacionais
que ele proporciona. E há outros ciclistas que encontramos a percorrer
igualmente a Europa. Verificamos ainda que as gares estão cheias de gente e que
as autoestradas estão saturadas. Os europeus têm uma grande necessidade de se
deslocar.
A Europa dos povos constrói-se
através de numerosas relações que se desenvolvem entre pessoas como os
estudantes (no Erasmus), as trocas económicas e o desenvolvimento dos média.
Todos estes aspectos positivos
conhecem igualmente o seu reverso, uma vez que essa abertura das pessoas pode
favorecer o fechamento de outros sobre si mesmos. A televisão e a internet
permitem ainda fazer a Europa a partir da sua sala.
Estes diferentes exemplos mostram
que há uma Europa das relações que se está a criar, que certas pessoas têm um
desejo de encontrar.
P. – Que conclusões retiram a partir dessas verificações?
R. – Após o percurso que já
fizemos, percebemos que não conhecemos os nossos vizinhos. Temos todos um certo
número de clichés, preconceitos, ideias falsas. E o encontro e a partilha
permitem reajustar esses preconceitos.
A nosso modesto nível, temos o
sentimento de estar a contribuir para um melhor conhecimento dos povos e de
transmitir às pessoas que encontramos o mesmo desejo de descobrir os seus
vizinhos europeus.
P. – Mesmo sem falar algumas línguas?
R. – Apesar disso, conseguimos
partilhar. As pessoas têm desejo de nos fazer conhecer o que vivem, as suas
riquezas históricas, a beleza da sua região. Muitas delas são orgulhosas do
sítio onde vivem e que desejam valorizar.
Hoje, não se sente animosidade
entre nações. Falámos com sul-coreanos que estavam de férias na Europa para
fazer o Caminho de Santiago. Perguntámos-lhes o que mais os espantou na Europa.
Eles estão impressionados pelo nosso grau de liberdade, uma vez que no seu país
têm um sentimento de grande dependência do trabalho e de viver um stress
permanente, tanto por essa ligação ao trabalho como por uma excessiva densidade
da população, em particular nas grandes cidades.
A bicicleta permite o encontro,
colocando as pessoas em proximidade: nós solicitamos e, logo, estamos em
interacção. Mas como criar projectos entre países, entre pessoas de vários
países?
P. – E a Europa dos povos existe para lá da Europa económica? Como
fazê-la viver?
R. – Actualmente, descobrimos a
história dos outros países e a sua situação geopolítica. Através dessa história
e do conhecimento do passado, damo-nos conta de que numerosas permutas tiveram
lugar no final da Idade Média, quando da construção das catedrais. Cerca de 270
catedrais foram construídas entre os séculos XIII e XV, na Europa, o que
induziu deslocações importantes, trocas de técnicas e criações. O Renascimento
impulsionado pela Itália trouxe um novo estímulo e dinamismo. Verificamos que
uma parte da população se abriu à troca, enquanto outros se mantiveram fechados
e no medo e, sobretudo, sem projecto.
Esta volta à Europa
reconforta-nos, porque se tornou um projecto forte para cada um de nós os dois,
para ambos enquanto casal, para o conhecimento dos outros, da história e da
geografia, dos costumes e do quotidiano das pessoas que encontramos. Este
projecto faz falta a numerosas pessoas que vivem esta crise que as amedronta.
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