sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (11) - S. José um pai emprestado?

É uma das figuras mais enigmáticas ligadas à história de Jesus. Dele pouco se sabe, dele pouco se fala, o próprio não é nunca citado dizendo alguma coisa. É uma espécie de personagem passiva, de figurino. Faz de pai, mas diz-se que não é o verdadeiro pai. Quem é este José, o carpinteiro?


[Ilustração: Mestre de Flémalle, José na sua Oficina (pormenor), 1425-28/Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque]

“Chamado para esposo de Maria/ E para pai de Deus feito menino,/ Tu protegeste e deste alimento/ Ao próprio Deus.// Patriarca do silêncio e do trabalho/ Escondes na humildade o coração/ Cheio de amor a Cristo e sua mãe/ Em Nazaré.”
(Hino da Liturgia das Horas)


São mais as perguntas que as certezas que, mesmo entre investigadores e especialistas da Bíblia, se formulam a propósito de José, o “pai putativo” de Jesus, como lhe chamou o Papa João Paulo II [exortação Redemptoris Custos (O protector do redentor), sobre a figura e missão de S. José na vida de Cristo]. De José, supõe-se que ele é o que não é, para seguir à risca a definição do dicionário. Mas, de facto, ele é o que foi, acredita a tradição cristã.

Confuso? O biblista francês Charles Perrot, do Insituto Católico de Paris, descreve o quadro da situação antes de sintetizar alguns dos problemas que se colocam aos teólogos: “Maria estava noiva ou já era casada com José. Ora, ela encontrou-se grávida por obra do Espírito Santo, isto é, pela força de Deus, conforme o sentido que habitualmente se dá a esta palavra.” (Narrativas da Infância de Jesus, ed. Difusora Bíblica) Ou seja, tal como acredita a tradição cristã, a partir dos relatos evangélicos, Jesus nasceu sem qualquer intervenção de José.

Esta descrição contém já “um paradoxo: Maria é a esposa de José e a criança que ela trás no seio vem de Deus. Isto é uma dificuldade” para demonstrar que Jesus é da linhagem do rei David, como afirmam os relatos evangélicos. Há uma segunda dificuldade, regista Perrot, citando a Bíblia: “José, que era um homem justo e não queria difamá-la [Maria], resolveu deixá-la secretamente.”

Tal afirmação bíblica colide com as práticas judaicas conhecida do repúdio no casamento. Situando-se exclusivamente n texto, Perrot verifica que “o casamento de José e Maria fica posto em questão pela presença da criança”. E só a adopção legal, a que corresponde a decisão de José, permite converter Jesus em seu filho, “com todos os direitos e pretensões”. Se Maria dá a vida a Jesus, é a atitude de José que acaba por fazer de Jesus um ser social, assumindo, mesmo se misteriosamente, a paternidade.

José era carpinteiro – uma profissão especializada que, no tempo, equivaleria a uma classe média actual, pelo importante estatuto social que tinha. Nada a ver, portanto, com a descrição do “humilde” carpinteiro com que tantas vezes a hagiografia cristã o descreve. E foi entre essas lides que Jesus cresceu e pela profissão do pai ficou também conhecido. De tal modo que um dia, quando regressa à Nazaré da sua infância, conta o evangelho de Mateus, “ensinava os habitantes na sinagoga deles, de modo que todos se enchiam de assombro e diziam: ‘De onde lhe vem esta sabedoria e o poder de fazer milagres? Não é ele o filho do carpinteiro? (13, 54).

Na carta citada, de Agosto de 1989, João Paulo II escreve que “o filho de Maria é também filho de José”. Mas os evangelhos “não registam palavra alguma que ele tenha dito”. E foi nesse mistério, nessa paternidade escondida e muda, no silêncio de José e no silêncio feito à sua volta, que a espiritualidade cristã construiu a sua figura. Mas “esse silêncio tem uma especial eloquência”, regista o anterior Papa. “Graças a tal atitude pode captar-se perfeitamente a verdade contida no juízo que dele nos dá o evangelho: ‘o justo’.”


Um velho piedoso na iconografia tradicional
Na iconografia tradicional, a figura de S. José é representada essencialmente como um velho piedoso, por vezes quase simplório. Em Portugal, e em regiões como o Alentejo, por exemplo, S. José é objecto de uma grande devoção, mas as representações que dele são feitas são, na maior pare dos casos, daquele tipo. José António Falcão, director do Departamento de Património Histórico da Diocese de Beja, já explicou que tal figuração remete para a “herança de todos os cultos patriarcais” anteriores ao cristianismo, que afirmavam o homem como esteio da família. Mas há imagens que contrariam essa figuração: na Igreja da Senhora do Carmo, em Cuba, pode ver-se um S. José jovem e vigoroso. Mas também há algumas onde se vê um jovem feliz pela sua paternidade. É o caso de uma Natividade do século XIII, dos frescos provenientes da abside de Poliñá, séc. XIII, actualmente no Museu Diocesano de Barcelona.


Poema - Natal, de Fernando Pessoa

Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)

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