terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Calendário de Advento (15) - A Lapinha na Festa madeirense

Na Madeira celebra-se a Festa, mais do que dizer apenas o Natal., expressão que revela a alma enternecida e reconciliadora do verdadeiro ilhéu. Numa simbiose do sagrado e profano, atenuam-se conflitos, por momentos regressa-se ao arquétipo ideal de uma comunidade pacífica e incorruptível.
(Texto de Tolentino de Nóbrega, no Público de 15/12/2005; Foto: Ricardo Jardim, "Lapinha do Caseiro", ed. Assírio & Alvim)


Na cidade, cosmopolita, são as luzes, as músicas, as lojas convidando à compra de presentes. “Tudo aparência, visões especiosas para os olhos ingénuos da gente nova, mas não de toda”, como conta o escritor madeirense Horácio Bento de Gouveia (1901-1983). “No campo, nas freguesias rurais, donde não se vê a cidade, porque a montanha a encobre com seus refolhos, pelas azinhagas, no adro da igreja, à porta dos casais não se ouve falar do Natal e sim da Festa, a Festa do Menino Jesus”.

Na cidade “compra-se pinheiros, verduras para embrincar os presépios. Na aldeia vai-se às abas da serra buscar o alegra-campo e galhos de loiro, e das paredes rústicas trazem-se os fetos-cabrinhas para alindar a escadinha dos pastores e do menino”. E na Festa há festa de igreja com três padres e cantores de fora, pifes, gaitas, manchetes e estoirar de bombas que anunciam as Missas do Parto, as novenas de Natal que começam a ser celebradas a partir de amanhã, de madrugada com muita afluência de fiéis.

Entre as muitas tradições do meio rural ou urbano é costume comum, perdido nos primórdios da colonização e depois acaloradamente mantido pelo espírito franciscano, fazer-se o presépio, armar-se a lapinha. É esta última designação, como descreve José de Sainz-Trueva em Presépios de Meninos Jesus de Ontem e de Hoje (DRAC, Funchal, 1987), usada na ilha para identificar o conjunto de figuras denominadas no continente português genericamente de presépio. Contudo, ao procurar-se estabelecer uma tipologia local dessa manifestação, o termo desdobra-se numa dupla significação, traduzindo-se em resultados formais diferentes.

As lapinhas madeirenses fundamentalmente podem classificar-se em "escadinhas" e "rochinhas". Estas são ramadas em qualquer dependência da casa, embora nalgumas residências, e pelas suas grandes dimensões, exista o "quarto da lapinha". Tem como estrutura pedaços de madeira e outros objectos que sob o papel pintado ajudam a dar a ideia dos montes e vales, com os típicos sucalcos, nos quais se vêem as casinhas de colmo, as ovelhinhas pastando, grupos folclóricos dançando e bailando, carreiros, borracheiros e vilões na matança do porto ou num arraial com coreto, barracas de espetada e procissão.

As escadinhas, de três ou de mais degraus, tendo no topo a imagem do Menino Jesus ladeada por jarrinhas de oratório e "solitários" com flores de ensaião e de papel, colocam-se sobre uma cómoda ou mesa previamente forradas com colcha adamascada ou toalha de linho com bordado madeira. Nos degraus das escadinhas dispõem-se alternadamente pastores, fruta, pão “merendeiro” ou “brindeiro”", searinhas e passarinhos de confecção artesanal.

Como variantes das lapinhas e rochinhas encontramos alguns registos de natal e presépio de caixa, encerrados em maquinetas envidraçadas, recheados de minuciosos elementos de miolo de pão, barro ou papel provenientes dos extintos conventos do Funchal.

Entre os barristas e presepistas madeirenses, destacou-se Francisco Ferreira (1849-1931), o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar do poeta madeirense Herberto Hélder. De todos, diz Jayme Câmara (De San Loyrenço, Prosa do estio e do Outono, 1932), era a mais conhecida em toda a ilha, “povoada de grupos alegóricos, pastores pacientemente talhados em cedro, numerosas figuras plenas de um acentuado movimento, embora por vezes microcéfalas, e que se nos antolham confinadas nos domínios da teratologia”.


Poema - Toada do Natal, de José Régio

Natal. Eis que anunciando o Cristo que nasceu,
De branco, um Serafim voou do céu,
À fímbria do vestido a poeira dos sóis presa...
Vinte anos faz que o viste a par do Sete-Estrelo.
Cresceste... e nunca mais tornaste a vê-1o!
Pois basta-te querê-lo:
Ergue as mãos juntas,
Reza...

Natal. Eis que inviolada, uma Mulher foi Mãe,
E se venera agora (e para sempre, amém)
A que deu fruto e é pura — ideal pureza...
Não sabes já vencer-te e crer sem compreender?
Esquece o que os manuais dão a aprender:
Mergulha no teu ser,
Como num templo:
Reza...

Natal. Eis que ao luar, os mortos que dormiam
Dos frios leitos lôbregos se erguiam,
E vinham consoar à sua antiga mesa...
Não tens que lhes dizer desde que te hão deixado?
Não sentes os teus mortos a teu lado?
Pois fala-lhes calado,
Para que te ouçam:
Reza...

Natal. Eis que uma paz, que ao certo é doutra vida,
Abranda toda a terra empedernida,
E é cada mesa em festa uma igrejinha acesa...
Abre hoje o coração — portal que se franqueia.
São todos teus irmãos: até os da cadeia,
As que andam na má sina e os que não têm ceia...
Por todos e por ti, Ave, Maria:
Reza...

(In Natal... Natais – Oito Séculos de Poesia sobre o Natal,
antologia de Vasco Graça Moura, ed. Público)

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