segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A terceira margem da alma


Poeta e prosadora, Adélia Prado é, com certeza, uma das mais extraordinárias escritoras de língua portuguesa, como, aliás, o puderam comprovar os que, na segunda-feira e anteontem, escutaram, na Velha-a-Branca, poemas dela, ditos por Ana Arqueiro, Carolina Losa, Manuela Martinez, Marta Catarina e Sandra Andrade, do Sindicato de Poesia. Adélia Prado, que faz 74 anos no próximo domingo, é brasileira e católica. No início de Dezembro de 2007, a Agência Zenit deu conta do que afirmou sobre a linguagem poética e a linguagem religiosa em Aparecida, São Paulo, no âmbito de uma iniciativa que se intitulou “Vozes da Igreja”. “Missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum”, sublinhou a poeta na ocasião.

A missa, garantiu Adélia Prado, “é a coisa mais absurdamente poética que existe. É o absolutamente novo sempre. É Cristo se encarnando, tendo a sua Paixão, morrendo e ressuscitando. Nós não temos de botar mais nada em cima disso, é só isso”. Às vezes, parece que não é só isso: “Olha, gente, tem algumas celebrações em que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”.

Contou a Agência Zenit que, ao propor a discussão do resgate da beleza nas celebrações litúrgicas, Adélia Prado reconheceu que essa é uma preocupação que a tem ocupado desde há muitos anos: “Como cristã de confissão católica, eu acredito que tenho o dever de não ignorar a questão”.

A questão do canto usado na liturgia mereceu a atenção da escritora, que julga que muitas vezes ele não ajuda a rezar. “O canto não é ungido, ele é feito, fazido, fabricado. É indispensável redescobrir o canto oração”. Adélia Prado sublinhou que “o canto barulhento, com instrumentos ruidosos, os microfones altíssimos, não facilita a oração, mas impede o espaço de silêncio, de serenidade contemplativa”.

Explicou a autora de Bagagem, Com licença poética e Solte os cachorros, títulos das suas três obras editadas em Portugal, pela Cotovia, “a palavra foi inventada para ser calada. É só depois que se cala que a gente ouve. A beleza de uma celebração e de qualquer coisa, a beleza da arte, é puro silêncio e pura audição”. E o que sucede é que “nós não encontramos mais em nossas igrejas o espaço do silêncio. Eu estou falando da minha experiência, queira Deus que não seja essa a experiência aqui”. O relato não informa sobre se o “aqui” paulista a que Adélia Prado se refere é ou não uma excepção, mas, em Portugal, abundam os mesmíssimos exemplos do que tanto a constrange. Tal como no Brasil, entre nós, “parece que há um horror ao vazio. Não se pode parar um minuto”. Como Adélia Prado observa: “Não há silêncio. Não havendo silêncio, não há audição. Eu não ouço a palavra, porque eu não ouço o mistério, e eu estou celebrando o mistério”.

Para a poeta, “muitos procedimentos nossos são uma tentativa de domesticar aquilo que é inefável, que não pode ser domesticado, que é o absolutamente outro”. É por o indizível ser de imensa magnitude que faltam as palavras. “E não ter palavras significa o quê? Que existe algo inefável e que eu devo tratar com toda a reverência”.

“A liturgia celebra o quê?” À pergunta que formulou, Adélia Prado deu também uma resposta: “O mistério. E que mistério é esse? É o mistério de uma criatura que reverencia e se prostra diante do Criador. É o humano diante do divino. Não há como colocar esse procedimento num nível de coisas banais ou comuns”.

Supor que, para fazer com que o povo se aproxime de Deus, se deve falar o que se julga ser a linguagem do povo, é algo que considera errado pelo que explicou: “Mas o que é a linguagem do povo? É aí que mora o equívoco”. É que não há ninguém que se aproxime com maior reverência do mistério de Deus do que o próprio povo, afirmou, sublinhando que “o próprio povo é aquele que mais tem reverência pelo sagrado e pelo mistério”.

E pergunta Adélia Prado: “Como é que eu posso oferecer a esse povo uma música sem unção, orações fabricadas, que a gente vê tão multiplicadas e colocadas nos bancos das igrejas, e que nada têm a ver com essa magnitude que é o homem, humano, pecador, aproximar-se do mistério?”.

“Barateou-se”, prossegue a poeta, o espaço do sagrado e da liturgia “com letras feias, com músicas feias, comportamentos vulgares na igreja”. Poupada, talvez, à praga das missas com PowerPoint, karaoke e coisas assim, Adélia Prado dá alguns exemplos do empobrecimento litúrgico. “Está tão banalizado isso tudo nas nossas igrejas que até o modo de falar de Deus a gente mudou. Fala-se o “Chefão”, “Aquele lá de cima”, o “Paizão”, o “Companheirão”. “Deus não é um ‘Companheirão’, ele não é um ‘Paizão’, ele não é um ‘Chefão’. Eu estou falando de outra coisa. Então há a necessidade de uma linguagem diferente, para que o povo de Deus possa realmente experimentar ou buscar aquilo que a Palavra está anunciando”.

A linguagem religiosa “é a linguagem da criatura reconhecendo que é criatura, que Deus não é manipulável, e que eu dependo dele para mover a minha mão”. Com esse espírito, diz Adélia Prado, “a nossa Igreja pode criar naturalmente ritos e comportamentos, cantos absolutamente maravilhosos, porque verdadeiros”.

Insistindo em que a missa é como um poema e que não suporta enfeites, Adélia Prado considera que a celebração da Eucaristia é perfeita na sua simplicidade. “Nós colocamos enfeites, cartazes por todo lado, procissão disso, procissão daquilo, procissão do ofertório, procissão da Bíblia, palmas para Jesus. São coisas que vão quebrando o ritmo. E a missa tem um ritmo, é a liturgia da Palavra, as ofertas, a consagração… então ela é inteirinha”.

Afirma Adélia Prado: “A arte a gente não entende. Fé a gente não entende. É algo dirigido à terceira margem da alma, ao sentimento, à sensibilidade. Não precisa inventar nada, nada, nada”.

EDUARDO JORGE MADUREIRA, in Diário do Minho, 6.12.2009

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